Daniela Martins Pereira da Silva

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Doutoranda em Direito, Especialidade de Ciências Jurídicas Internacionais e Europeias na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e Mestre em Direito e Ciência Jurídica, Especialidade de Ciências Jurídico-Internacionais pela mesma instituição. Investigadora no Centro de Investigação de Direito Público da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (CIDP-ICJP) e bolseira FCT, estando envolvida em projectos de investigação na área do Direito Internacional do Mar. Assistente de Investigação da Professora Doutora Patrícia Galvão Teles (membro da Comissão de Direito Internacional).


As alterações climáticas têm acentuado as consequências dramáticas dos eventos climáticos extremos na vida das populações. A esses fenómenos atribui-se uma natureza imprevisível e incerta – típica da chamada mudança de Era Geológica (do Holoceno para o Antropoceno) a que o Direito Internacional procura dar resposta. Em especial, a subida do nível do mar gera mutações territoriais nos Estados particularmente vulneráveis a este fenómeno a que o Direito Internacional não é imune. Os problemas que se colocam no seu âmbito são, por isso, de natureza tríplice: ao nível do território terrestre (i), ao nível do território marítimo (ii) e ao nível da população (iii).

1. A TERRA. Implicações jurídicas da subida do nível do mar ao nível da personalidade jurídica dos Estados – pode o Estado sobreviver à falta de território?

O território de um Estado é entendido como um requisito necessário para a formação e continuidade estatal[1]. A subida do nível do mar gera perda de território dos Estados – uma redução do território, que pode ser parcial ou total – à qual se associa uma perda de integridade territorial. A perda de integridade territorial levanta questões ao nível do estatuto soberano daqueles Estados. Segundo o Princípio da Continuidade dos Estados, existe uma presunção segundo a qual os Estados continuam a existir mesmo que sofram alterações nos seus elementos constituintes – como o seja, no seu território. Contudo, a aplicabilidade desta presunção num cenário de desaparecimento físico do território não é isenta de dificuldades. Além disso, uma extinção estatal por decorrência do desaparecimento físico do seu território (e não do elemento do “governo efectivo” ínsito na Convenção de Montevidéu, que tem sido o elemento no qual se funda a extinção estatal) levanta problemas ao nível da sucessão de Estados, pois seria impossível uma sucessão na ausência de território sobre o qual se pudesse exercer soberania.

2. O MAR. Implicações jurídicas da subida do nível do mar no âmbito do Direito Internacional do Mar – pode o Estado manter as suas zonas marítimas e os correspondentes direitos soberanos?

O impacto da subida do nível do mar no Direito Internacional do Mar é visível em vários segmentos: i) nas zonas marítimas, ii) nas delimitações marítimas, iii) no exercício dos direitos marítimos e na jurisdição do Estado costeiro, iv) no estatuto jurídico das ilhas, v) na abertura de novas rotas do Ártico e impacto nas fronteiras dessa região. De facto, a subida do nível do mar gera mutações ao nível da geografia costeira, o que coloca em causa a estrutura das zonas marítimas e a construção dos direitos marítimos do Estado soberano em face da afectação das linhas de base e dos pontos de medição das zonas marítimas. Está, por isso, em causa a perda dos direitos dos Estados afectados pelo fenómeno da subida do nível do mar em relação às suas zonas marítimas uma vez que é comummente aceite a premissa segundo a qual a situação terrestre constitui o ponto de partida para a determinação dos direitos marítimos dos Estados costeiros, nos termos do Princípio Land Dominates the Sea[2]. Sem território terrestre não seriam gerados direitos sobre o território marítimo. Além disso, a natureza ambulatória das linhas de base (movem-se de acordo com as alterações físicas na costa) fará com que as mesmas regridam em resultado das alterações costeiras causadas pela subida do nível do mar, conduzindo a uma perda das zonas marítimas por parte do Estado afectado e a uma reversão das antigas zonas marítimas dos Estados para o Alto Mar. Contudo, tem sido defendido que a submersão do território não afectará as linhas de base e os pontos de medição das zonas marítimas, adoptando-se uma teoria que fixe ou congele as linhas de base antes que se verifique a regressão costeira, como defendido pelas conclusões do estudo levado a cabo pelo Comité sobre International Law and Sea-Level Rise[3] e pela recente Declaração sobre a preservação de zonas marítimas pelos líderes políticos do Fórum das Ilhas do Pacífico (PIF)[4].

3. AS GENTES. Implicações jurídicas da subida do nível do mar no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos e Direito Internacional dos Refugiados – que direitos terão as populações afectadas pelo fenómeno da subida do nível do mar e que estatuto terão elas no âmbito do Direito Internacional?

As questões que se colocam a respeito do Direito Internacional dos Direitos Humanos e no Direito Internacional dos Refugiados no contexto climático são múltiplas e, a par das duas anteriores, sem precedentes. Verifica-se deslocamentos, isto é, movimento forçado de pessoas por força de eventos climáticos extremos ou processos cuja duração é mais gradual (como é o caso do aumento do mar) principalmente nas zonas costeiras ou de Ilhas de reduzida dimensão[5]. Não existe um termo jurídico determinado para definir o regime jurídico dessas pessoas – não há reconhecimento de uma categoria legal afecta ao grupo dos deslocados/refugiados ambientais, uma vez que estes não se podem reconduzir ao conceito de “refugiado”[6] –, apesar de em 1985 El-Hinnawi[7] ter usado o termo “refugiado climático” para definir aqueles afectados pelos impactos das alterações climáticas que se vêem forçados a deixar o seu país. A melhor forma de proteger os direitos das pessoas afectadas pela elevação do nível do mar deve assentar numa abordagem jurídica assente em três pilares temporais: i) antes, ii) durante e iii) após a deslocação das populações. Só uma abordagem ampla pode garantir a protecção dos direitos humanos em todas as fases daquele processo, levando em consideração planos de migração e realocação. Os Estados devem garantir que tomam medidas para mitigar as alterações climáticas e prevenir os impactos negativos das mesmas sobre os direitos humanos, privilegiando medidas de adaptação naquele contexto (por exemplo, a realocação planeada das populações). São necessários quadros jurídicos adequados a ajudar as populações a i) permanecer no país de origem, quando for possível e desejável, ii) a deslocarem-se para outro país, em antecipação do dano, e iii) a serem protegidas e assistidas se forem deslocadas.

Mais recentemente, o caso pioneiro Teitiota c. Nova Zelândia[8](Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas) debruçou-se sobre as consequências da subida do nível do mar nas Ilhas de reduzida dimensão e sobre o estatuto daqueles que se vêem forçados a abandonar o seu país de origem em função das condições de inabitabilidade decorrentes de fenómenos naturais; prevê-se que emerja mais litigância climática em torno do estatuto das pessoas afectadas pela subida do nível do mar.

Os pontos ii) e iii) da nossa breve análise estão a ser alvo de estudo por parte da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas no seio do Grupo de Estudo sobre subida do nível do mar em relação ao Direito Internacional[9], depois dos trabalhos do Committee on International Law and Sea Level Rise[10] conduzidos pela Associação de Direito Internacional nas áreas do Direito Internacional do Mar e do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Prevê-se que o trabalho futuro do Grupo de Estudos da Comissão de Direito Internacional venha a delinear uma resposta a alguma das questões que abarcam o estudo dos impactos da subida do nível do mar ao nível do Direito Internacional do Mar e ao nível da protecção jurídica das pessoas afectadas por esse fenómeno.

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[1] Vide artigo 1.º da Convenção de Montevidéu sobre os Direitos e Deveres dos Estados.

[2] O Princípio Land Dominates the Sea (ou a Terra domina o Mar) é um dos axiomas base do Direito Internacional do Mar segundo o qual as zonas marítimas só são geradas a partir do território terrestre sobre o qual o Estado exerce soberania.

[3] O Comité sobre Linhas de Base (ou ILA’S Committee on Baselines Under International Law of the Sea) foi estabelecido em 2008 com um mandato que inclui a identificação e clarificação ou desenvolvimento do quadro legal existente sobre linhas de base em resposta ao possível aumento do nível do mar que acompanha o fenómeno das alterações climáticas e os efeitos particulares nas Ilhas de pequena dimensão. Cfr. Proposal for the establishment of a new committee on baselines 2002, para. 2. Disponível em: https://www.ila-hq.org/index.php/committees

[4] Declaration on Preserving Maritime Zones on Preserving Maritime Zones in the Face of Climate Change-Related Sea-Level Rise, Pacific Islands Forum, Agosto 2021.

[5] Isto é, ao nível dos Estados Insulares em Desenvolvimento (SIDS – Small Island Developing States). A categoria dos SIDS ou Estados Insulares em Desenvolvimento foi reconhecida pelas Nações Unidas enquanto grupo distinto de 57 Ilhas de pequena dimensão em desenvolvimento que enfrentam um conjunto específico de vulnerabilidades, quer sociais, quer económicas e principalmente ambientais. Vide http://unohrlls.org/about-sids/ e http://unohrlls.org/about-SIDS/country-profiles/.

[6] A definição de “refugiado” nos termos da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951) e respectivo Protocolo (1967) abarca um conjunto de elementos definidores. São eles a existência de perseguição ou fundado temor de perseguição, motivação específica e necessidade de protecção noutro Estado. Relativamente ao primeiro elemento enumerado, esse não estaria preenchido no caso do “refugiado ambiental” por ficar de fora daquele conceito eventos como desastres naturais por deles não se extrair um agente de perseguição.

[7] 1985 UNEP Report (UN Environment Programme), Expert Essam El-Hinnawi.

[8] Ioane Teitiota v. New Zealand (advance unedited version), CCPR/C/127/D/2728/2016, UN Human Rights Committee (HRC), 7 January 2020

[9] Vide Syllabus Sea-Level Rise in Relation to International Law (A/73/10); Official Records of the General Assembly, Seventy-third Session, Supplement No. 10 (A/73/10), para. 369. Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas, Report of the Work of its Seventieth Session, UN DOC. A/73/10 (2018), International Law Commission Report on the work of the seventy-first session, A/74/10, 2019, Capítulo X, paras. 263-273

[10] Os trabalhos do Comité podem ser consultados aqui.