Paulo Faria
Paulo Faria nasceu em 1967, em Lisboa. Licenciou-se em Biologia por mero acidente. É, há longos anos, tradutor literário, tendo traduzido obras de autores como George Orwell, Jack Kerouac, James Joyce, Don DeLillo e Cormac McCarthy. Viajou em busca das nascentes de algumas das obras que traduziu, o que o levou ao Tennessee, ao Texas, ao Novo México. Venceu, em 2015, o Grande Prémio de Tradução APT/SPA, pela tradução de História em Duas Cidades, de Charles Dickens. Publicou Estranha Guerra de Uso Comum (romance, 2016) e crónicas nas páginas da revista Ler e do jornal Público.
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Chegaram à Costa da Caparica sem percalços. Jorge morava numa praceta de prédios altos, dispostos em meia-lua à volta de um parque de estacionamento.
— Vais falar assim com o teu tio? — perguntou Álvaro a Carlos, apontando para a máscara cirúrgica com a boca à Rolling Stones que este trazia no rosto.
— E porque não? — ripostou Carlos, com ar desenvolto. Ou antes, com voz desenvolta, porque Álvaro não lhe via o rosto. — O meu tio, fica sabendo, grama imenso o Mick Jagger. Vais ver que ainda se ri.
E, pegando no telemóvel, marcou o número.
— Estou, tio? Já chegámos, venha à varanda.
Jorge apareceu à varanda do primeiro andar e ali se debruçou, de braços no parapeito, um cigarro aceso entalado nos dedos. Falou na sua voz rouca, arranhada, em carne viva. De vez em quando, recuava e tossia violentamente, como alguém que se engasgou e está prestes a sufocar. Ao emergir destes acessos de tosse, parecia exausto e exangue, como se viesse à tona depois de lhe mergulharem a cabeça à força num tanque. Cumprimentou o sobrinho, perguntou pela família, saudou Álvaro.
— Então, o que é que vos traz por cá nesta altura tão complicada?
Carlos começou por se oferecer para ir ao supermercado ou à farmácia fazer as compras de que o tio precisasse, sugestão esta que Jorge recusou com um «eh, pá, agradeço-te do fundo do coração, mas não preciso de nada». Carlos disse-lhe então:
— Tio, conte-nos coisas da guerra de África. Sempre lhe quis perguntar e nunca tive oportunidade. Aqui o Álvaro também está muito interessado.
Jorge endireitou-se, soprou uma fumaça enérgica, como o repuxo impaciente de um cetáceo:
— Querem saber da Guiné? Ah, isso tem muito que contar… ficávamos aqui a tarde toda.
— Nós temos tempo — acudiu Álvaro, puxando a máscara para baixo, para se fazer ouvir melhor. Reparou que, nas janelas e varandas da praceta, chamados pelos estampidos da voz de catarro de Jorge, começavam a assomar rostos.
Sónia tinha um irmão, doze anos mais velho, chamado Augusto. Já se emancipara, morava num apartamento alugado com outros jovens advogados como ele. Era obcecado por dinheiro. Ou antes, vivia obcecado com a ideia de ficar sem dinheiro, de empobrecer. Melhor ainda: afligia-se com a ideia de, quando os pais morressem, a herança ter sido delapidada, as contas bancárias esvaziadas, o apartamento hipotecado ou vendido. Os pais de Sónia não eram propriamente ricos, tinham poupanças sólidas, algum dinheiro nas contas à ordem, o apartamento, o automóvel. Augusto passava a vida a falar dos «chulos», dos «aproveitadores», dos «oportunistas». Era isto que mais lhe tirava o sono, afinal, a ideia de o dinheiro dos pais passar, num abrir e fechar de olhos, para as mãos de gente sem méritos, obscura, de passado duvidoso e hábitos bizarros. Ainda na faculdade, ganhara o hábito de dar sugestões de toda a ordem aos pais em matéria de despesas domésticas. As meras sugestões tinham-se convertido em conselhos benévolos, depois em recomendações insistentes, e agora quase todas as compras importantes feitas naquela casa, onde Augusto já nem sequer morava, passavam pelo crivo dele: pequenos e grandes electrodomésticos, material informático, férias, telemóveis, seguros. Dizia-se perito em relações qualidade-preço, em investimentos de curto, médio e longo prazo, em manigâncias fiscais.
Nos sentimentos que ele nutria pela irmã mesclavam-se um certo instinto protector e laivos de superioridade moral. No fundo, porém, dava impressão que não se sentia, nem nunca se havia sentido verdadeiramente, irmão dela. As diferenças entre ambos, a começar pelo fosso etário, eram demasiado acentuadas. Nunca haviam partilhado muita coisa, nem segredos nem brincadeiras. Também Sónia dava por si a perguntar a si mesma como era possível que ela e Augusto, sendo tão diferentes, fossem filhos dos mesmos pais, tivessem um genoma tão parecido. Várias vezes Augusto fizera, na presença dela, em tom brincalhão, mas cortante, alusões a uma qualquer conta-corrente que ele mantinha sempre actualizada, na qual compilava os valores gastos pelos pais com cada um deles, mesadas, propinas universitárias, viagens, computadores, aulas e exames de condução. Aludia a obscuros amigos bancários que lhe deviam favores e que lhe facultavam acesso aos extractos das contas do pai e da mãe, aos valores das transferências e movimentos. Dava a entender que, chegado o momento certo, toda aquela contabilidade, obtida por meios mais ou menos ilegítimos, assente em premissas e critérios questionáveis, seria trazida à luz do dia. Uma vez, Sónia perguntou-lhe, sem se desmanchar, se ele também contabilizara o valor das fraldas descartáveis e das chuchas que cada qual tinha consumido. Ele riu-se, achou imensa piada. Augusto tinha, por vezes, acessos fugazes de sentido de humor. Num jantar de família, um ano antes, levantara objecções ao facto de Sónia ir para Milão fazer o programa Erasmus, dando a entender que ela não «merecia», que ela deveria trabalhar para, ao menos, ajudar na despesa. Quando Sónia lhe disse que não lhe admitia juízos daqueles, ele respondeu: «Não me digas que te ofendeste. Olha que quem se ofende são as sopeiras.» Era este o salvo-conduto a que recorria para dizer as maiores enormidades. Dominava como ninguém a difícil arte de fazer o ofendido sentir-se responsável pela ofensa de que acabava de ser alvo. Pediu desculpa com acinte, e o pedido de desculpas soou como mais uma ofensa atirada à cara de Sónia. Voltando-se para os pais, rematou com o seu comentário sibilino habitual: «Mas eu não tenho nada que ver com isso, vocês é que sabem, o dinheiro é vosso.» Comia pouco, não bebia álcool. Era frugal, quase ascético. Havia nele uma aridez árctica. Naquela noite, como de costume, Carlos ouviu o filho em silêncio, sem discutir. Depois de Augusto sair, disse a Sónia:
— Vais para Milão, eu é que decido, não te preocupes.
E depois, como que a desculpar-se:
— Criámos o teu irmão no tempo das vacas magras, sabes. Éramos muito novos, tínhamos pouco dinheiro. Não foi fácil. Ele é assim, mas gosta muito de ti. As dificuldades endurecem as pessoas, mas também as aproximam.
Sónia lembrava-se de ter pensado, ao olhar para o pai, que se esforçava por sorrir: «O Augusto não gosta de mim nem de ti. Talvez goste da mãe, à sua maneira doentia. O sofrimento, mesmo que seja só mental, não enobrece ninguém. O sofrimento torna-nos piores.» Não dissera nada ao pai, limitara-se a fazer que sim com a cabeça, para o sossegar. Conhecia bem o impulso natural das pessoas para recusarem todos os pensamentos que as possam magoar. Recordou uma frase de Art Spiegelman: «A vida toma sempre o partido da vida.»
Jorge parecia ávido de contar a sua guerra. Relatou as peripécias do curso de comandos, em Lamego, duríssimo, no pino do Verão. À primeira vista, achava normal que, naquelas circunstâncias excepcionais, os instrutores, emboscados nos cumes, fizessem fogo com munições reais sobre os instruendos quando estes escalavam as encostas da Serra das Meadas. E também achava normal que, à maneira dos peles-vermelhas dos filmes, que cruzam o deserto sem beber uma gota de água aquando das suas provas iniciáticas, os candidatos a comandos saíssem para a serra com dois cantis de água cheios presos ao cinturão e que, à noite, no quartel, fossem obrigados a esvaziá-los, intactos, aos pés dos instrutores. «É por isso que eu, ainda hoje, não bebo água», disse, com toda a naturalidade. E depois, em catadupa, sem ordem cronológica aparente, pontuadas por violentos acessos de tosse, que assinalavam reviravoltas e guinadas no relato, vieram as histórias da guerra propriamente dita, de 1971 a 1973. Contou uma operação nocturna em que levaram dois prisioneiros para lhes indicar uma base do PAIGC.
— Amarrei uma corda ao pescoço de cada um deles e prendi a outra ponta da corda ao cinturão de dois dos meus homens. Senão, eles desatavam a correr e em três pinotes metiam-se no mato e nunca mais os víamos.
O trilho bifurcou. O prisioneiro que ia à cabeça da coluna, um tipo muito gordo, disse que era para a esquerda, o outro, a medo, num gesto a pedir desculpa, apontou para a direita.
— Eu disse ao furriel Coelho, que trazia a corda do gordo atada ao cinturão: «Vamos os dois com este gajo para a esquerda, os outros esperam aqui. Mas atenção, olho vivo.» E ele para mim: «Não se preocupe, meu alferes, que eu já vou preparado.» Avançámos uns trezentos metros e às tantas vimos à nossa frente um campo de algodão. O gordo atirou-se para o chão e não se mexeu mais. Percebemos depois que havia ali um campo de minas. Era essa a fisgada dele. O Coelho disse para o gajo: «Ai é, não te mexes?» Desatou a dar-lhe pontapés no corpo todo, na cabeça. O gajo levantou-se logo, foi à nossa frente, a levar porrada do Coelho o caminho todo de regresso, até à bifurcação. Chegou lá lavado em sangue. O Coelho tinha cravado três pregos enormes na biqueira da bota.
Nas janelas e varandas, onde se viam agora dezenas de pessoas, havia quem chamasse para dentro de casa, com gestos frenéticos dos braços, convocando outros para assistirem. Havia quem filmasse com os telemóveis. A praceta tinha boa acústica, o prédio de Jorge ocupava uma posição central. Ele parecia nem reparar na agitação que se levantara à sua volta.
Augusto tinha com os pais uma relação de chantagem permanente. «E se a mãe ou o pai adoecem? Como vai ser? Temos de contar com isso…», eis o seu estribilho, desde que Sónia se lembrava. Dava sempre a entender que, se eles não seguissem os conselhos dele, os deixaria entregues à sua sorte. Tratava-os como atrasados mentais. Dizia muitas vezes a Sónia: «Os pais não sabem nada de nada.» O seu trabalho de advogado fornecia-lhe um manancial de histórias, condimentadas com pormenores credíveis, de gente que «não se sabia defender», que «se deixava levar». A pandemia constituiu, para ele, um mero pretexto para carregar nas tintas, para apertar o cerco. Sónia sabia que ele não tinha medo nenhum da doença, mas esta pôs-lhe nas mãos uma arma de destruição maciça para coagir os pais. A libertação dos presos das cadeias sobrelotadas, logo para começar, forneceu a Augusto matéria de sobra para telefonemas alarmados, infindáveis avisos aos pais sobre os novos ardis dos larápios para assaltarem residências. Se já antes não se podia confiar em ninguém, agora, então, todos os desconhecidos que lhes batiam à porta, além de potenciais portadores do vírus, tinham passado a ser, igualmente, potenciais criminosos.
Álvaro começou a sentir-se incomodado com os mirones às janelas da praceta, com a atmosfera de festa popular que ali reinava agora. Como José Gil, que citava abundantemente aos seus alunos, achava que, em Portugal, não se fizera o luto do passado autoritário e das suas feridas, e que essa ausência de luto nos condenava a um jogo incessante de sombras, de espectros. Mas aquilo que estava a acontecer na praceta, a maneira como os vizinhos acolhiam aquele relato da guerra colonial na primeira pessoa, não era, pareceu-lhe, um luto. O luto exige recolhimento, exige silêncio. O luto nunca é festivo. Os mirones às janelas pareciam estranhamente febris, agitavam-se, comiam sandes, bebiam sumos, nem por um momento paravam de filmar com os telemóveis. Ao mais pequeno pretexto, estalavam chuvas de gargalhadas, mesmo quando Jorge contava peripécias que pouco tinham de divertido. Pareciam os espectadores na plateia de certos filmes, que se riem histericamente à mais leve sugestão de humor. Álvaro pensou: «Isto parece uma feira. É preciso chocar esta gente, abaná-la. É preciso fazê-la tapar os ouvidos de horror.» Perguntou a Jorge:
— Então e mulheres? Como é que aquilo era de mulheres, lá pela Guiné?
Sem se fazer rogado, como se estivesse sozinho com eles e não houvesse ninguém por perto, Jorge pôs-se a explicar:
— Eu, quando lá cheguei, fui para Teixeira Pinto. Passado um mês ou dois, já conhecia bem aquilo, era uma cidade grande. Havia o aldeamento lá em baixo, um quilómetro fora do quartel. A etnia eram os manjacos, uns cabrões. Eram uma malta desgraçada. Eram gajos que não queriam trabalho. Só viviam da prostituição da mulher. Da mulher e das filhas. Recordo a primeira vez que fui lá, à tabanca, eu e o furriel Coelho. «Vamos lá engatar duas gajas.» Andámos lá à procura delas. E lá nos foram apresentadas duas gajas, e o preço era consoante o estatuto. Capitão era tanto, 120 pesos, alferes era 100 pesos, furriel era 50, soldado era 20. Pesos era o escudo dos gajos. Tenho algumas histórias engraçadas. Nunca me dei com putas, atenção. Ainda hoje. Nunca me dei com putas.
Pelo canto do olho, Álvaro avaliou a reacção das pessoas nas janelas a esta palavra forte. Houve um momento de silêncio absoluto, depois uma gargalhada atroadora. Jorge prosseguiu, indiferente:
— Um dia, lá fui eu e o furriel Coelho, engatámos duas gajas na tabanca, e o corno cá fora, a apanhar ar. E digo eu para o Coelho: «Eu trago esta gaja para aqui, tu levas essa para aí.» Era uma palhota. Às tantas, estávamos lá os dois, sai-me um corno dum porco de baixo da cama. E eu: «Caralho!» Sim, um porco verdadeiro debaixo da cama. Aquilo foi uma guerra dos diabos. Levou tantas nos cornos, aquela preta. Então mas eu venho para aqui, porra, para dar uma trancada ou duas e sai-me um porco de baixo da cama? E o Coelho: «Ó meu alferes, o que é que está a fazer?» E eu: «Esta puta anda aqui com os porcos debaixo da cama!» Passado um mês, um mês e meio, você queria lá saber que houvesse meia dúzia de porcos debaixo da cama! Passava-lhe tudo ao lado. Mas havia gajas lindas, havia gajas lindas. Havia gajas espectaculares.
Nas janelas, homens e mulheres faziam que sim com a cabeça, como se tivessem ouvido uma verdade insofismável, intemporal.
Augusto gostava de contar as peripécias de um programa de voluntariado em Inglaterra, no jardim zoológico de Bristol, em que participara com dezasseis anos, num mês de Agosto. Fora numa outra vida, dir-se-ia, num tempo em que ele ainda não calculava ao milímetro todos os passos. Com efeito, para um futuro advogado, e já então ele sabia que ia ser advogado, incluir no currículo um estágio de Verão num jardim zoológico seria inútil, ou até mesmo ridículo. Para alguém que não suportava o desperdício de tempo e de dinheiro, aquele voluntariado fora o seu derradeiro tributo pago ao desperdício e à leviandade, a sua despedida da juventude, antes de se tornar definitivamente um velho com corpo de jovem. Fora o seu último deve sem haver, o seu último ponto sem nó. E ele gostava de o revisitar, precisamente como um velho a recordar a sua juventude perdida. Nesses momentos, tornava-se divertido, havia nele uma certa candura. Sónia achava-o então suportável, quase simpático. As histórias que ela preferia era as do recinto dos lémures. Augusto contava:
— A rede à volta dos lémures nem se via, o recinto tinha montes de plantas, árvores altíssimas, uma coisa como deve ser, o chão era um relvado sempre verdinho. Tínhamos lá lémures-de-cauda-anelada, daqueles com uma cauda enorme, muito vistosa, às riscas. Os lémures não são lá muito inteligentes, estão um degrau abaixo dos macacos. Não têm o polegar oponível como nós, têm os dedos todos uns ao lado dos outros, não conseguem descascar a fruta e as bagas, metem tudo na boca e depois cospem o que não lhes interessa, cospem-se todos, é um bocado nojento. Cagam constantemente, eu ia para casa todo cagado, comecei a não achar muita graça. O meu trabalho era dizer às pessoas para não tocarem nos lémures e para não levarem comida para dentro do recinto. Mas as pessoas esqueciam-se sempre, principalmente as que tinham miúdos, era fatal. Havia sempre bebés com bananas na mão em carrinhos de bebé. Os lémures nisso são inteligentes, sempre que viam um carrinho de bebé atiravam-se lá para cima, ficavam histéricos, metiam-se logo lá dentro, já sabiam que nos carrinhos de bebé havia sempre comida. Outra coisa que eu tinha de fazer era estar atento ao que as pessoas diziam, porque muitas delas viam os lémures de perto e punham-se logo assim: «Ai, que giro, que fofinho, gostava tanto de ter um lá em casa…» E eu então tinha de ser pedagógico, tinha de dizer: «Não, nem pense nisso, eles cospem a comida toda, cagam por todo o lado, cheiram muito mal.» As pessoas também levavam com merda em cima, mas eu ficava lá uma manhã inteira de cada vez, levava com muito mais porcaria, sem comparação. O pessoal da limpeza vinha lavar aquilo todos os dias, para ficar tudo impecável. Ao fim de uma semana, falei com o responsável e disse-lhe: «Já tive a minha conta de lémures. Agora, se quiser, ponha-me no borboletário. Ali é que eu não entro mais.»
Apesar de se rir com gosto, juntamente com o pai e com a mãe, de cada vez que ouvia o irmão contar aquela história, Sónia não conseguia deixar de pensar que ele via naquele recinto dos lémures uma metáfora da sociedade. Talvez tivesse sido ali, até, que ele construíra a sua visão do mundo, dividido em categorias estanques. Um lugar onde havia hordas de indolentes exóticos, pouco argutos, mas rapaces, prontos a apropriar-se daquilo que não lhes era devido. Onde inúmeras pessoas, iludidas pela aparência sedutora e pelas falinhas mansas destes apaches, se deixavam depenar e estavam até dispostas a adoptá-los, a metê-los em sua casa. E onde ele próprio aprendera, à sua custa, que só havia uma maneira de nos defendermos dessa gente: distância. Sónia percebia que ele identificava os pais com os visitantes apalermados, fascinados pelos bichos. Só não compreendera ainda uma coisa: se ele a tinha também na conta de uma tolinha ou se, ao invés, a considerava uma perigosa salteadora, disposta a tudo para saciar os seus apetites.
Ao fim de três horas, quando o Sol ameaçava esconder-se atrás dos prédios, Jorge, depois de um acesso de tosse que ameaçou silenciá-lo de vez, sacudindo-o dos pés à cabeça, dobrado em dois, como um forcado velho agarrado à cabeça de um toiro, disse:
— Vou só contar mais uma história, que se está a fazer tarde.
Ninguém arredara pé das janelas e varandas.
— A Caboiana era uma zona terrível. Aquilo era a doer. Nesse dia, fui com o meu grupo, mais o capitão, que levou o grupo dele, e levámos um gajo, um preto, que dizia que sabia onde era lá o acampamento dos gajos. Nós levávamos sempre esses gajos connosco. Até que, a certa e determinada altura, o preto diz: «O acampamento dos gajos é ali.» Aquilo veio de boca em boca, os homens passaram palavra: «Acampamento», «Acampamento». Fui até à cabeça da coluna. Acampamento o tanas. Só se via mata, não se via acampamento nenhum. Mas depois, quando começámos a meter a cabeça lá para dentro, a afastar os ramos do arvoredo com as mãos, meus amigos, eu nunca na minha vida vi uma coisa tão linda. Aquilo eram mais de cem cubatas. Era uma aldeia que estava ali dentro, escondida naquele valezito. Uma autêntica aldeia, impecável. Asseada, uma coisa limpa, mais limpa do que estas casas onde a gente mora. Foi a coisa mais bonita que eu alguma vez vi. Ainda havia panelas ao lume, fumo. Só que não se via ninguém. Nem vivalma. Era uma aldeia-fantasma. O coronel estava a acompanhar a operação de avioneta, e o capitão disse lá para cima, pelo rádio, que tinha encontrado aquilo. E o outro gajo, lá de cima, mandou queimar. E eu pensei: «Então nós vamos queimar isto? Uma coisa assim?» Até me doeu a alma. Aquilo parecia a aldeia dos meus sonhos, o lugar dos meus sonhos para morar. Mas o gajo mandou pegar fogo, o capitão deu a ordem, e um comando obedece, não faz perguntas. Entrámos na aldeia, deitámos lume aqui e além, aquilo pegou num instante, viemo-nos embora a correr, para não ficarmos encurralados. Quando voltámos ao trilho, já a aldeia era um braseiro enorme. Começámos a ouvir gritos, uma coisa de meter medo. Depois percebemos que aquilo tinha túneis de umas cubatas para as outras, e que as pessoas, quando nos viram chegar, se esconderam todas lá dentro. Eram as mulheres da aldeia, os homens não estavam. Para não morrerem sufocadas, as gajas tiveram de sair, mas o fogo apanhou-as. Cá de cima, vimos uns rastos de fogo a sair do incêndio, como se fossem os raios dum sol. Eram mulheres a arder, a correr pelo meio do mato, uma para cada lado, a pegarem fogo a tudo por onde passavam. Uma coisa do inferno. Depois foram caindo, uma aqui, outra além, e aquele sol ficou lá traçado no mato, com uns raios compridos, outros mais curtos, consoante o lugar onde cada uma delas tinha perdido as forças. A gritaria acabou-se, o capitão disse «Vamos embora», continuámos pelo trilho. Não tardou nem dez minutos e sofremos uma emboscada. Foi nesse dia que morreu o furriel Coelho.
Jorge acenou uma despedida, retirou-se para dentro, quase à pressa, para esconder a comoção. As pessoas às janelas romperam em aplausos, houve quem agitasse bandeiras de Portugal. Meia dúzia de vozes soltas, depois muitas mais, num coro desafinado, começaram a entoar o hino nacional. Álvaro e Carlos entreolharam-se, siderados.
— Não perceberam nada. Não perceberam um corno — soltou Álvaro para o amigo.
— Vamos embora — disse Carlos. E, quando Álvaro fez menção de se dirigir para a bagageira: — Não, vens comigo aqui à frente. Para palhaçada, já bastam estes. — E fez um gesto largo a indicar as janelas, que as pessoas interpretaram como um adeus exuberante e a que reagiram com gritos de «Obrigado!» por entre os versos do hino. Os dois amigos meteram-se no carro à pressa, arrancaram no momento em que as vozes se esganiçavam: «Às armas, às armas!»
Quando passaram sob o Aqueduto das Águas Livres e planaram ao encontro da Praça de Espanha, Carlos, que, tal como Álvaro, não dissera uma palavra o caminho todo, ligou o rádio. No silêncio da noite, na via rápida deserta, ouviu-se uma voz a cantar:
Daqui, desta Lisboa compassiva,
Nápoles por Suíços habitada…