Marco Caldeira

Advogado na Vieira de Almeida & Associados, Assistente Convidado da FDUL e Árbitro no Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD).

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Mesmo no estado de emergência e no de calamidade, os “serviços públicos essenciais” não podem ser interrompidos – pelo contrário, nestas ocasiões críticas, a continuidade na sua prestação revela-se ainda mais fundamental.

1. Os serviços públicos essenciais consistem em determinadas prestações indispensáveis para assegurar a satisfação de necessidades básicas e a qualidade de vida da população.

Nos termos da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho[1], consideram-se serviços essenciais[2] (i) o fornecimento de água, (ii) o fornecimento de energia eléctrica, (iii) o fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados, (iv) as comunicações electrónicas, (v) os serviços postais, (vi) a recolha e o tratamento de águas residuais, (vii) a gestão de resíduos sólidos urbanos e (viii) o transporte de passageiros.

2. Atendendo à sua importância, o legislador considerou que o Estado não se deve desinteressar do modo como estes serviços são prestados – por entidades públicas ou privadas –, pelo que a sua prestação deve estar sujeita ao cumprimento de princípios fundamentais como o da universalidade, da igualdade, da continuidade, da imparcialidade, da adaptação às necessidades e do bom funcionamento. A sua especificidade justifica ainda que sejam reconhecidos ao utente (sobretudo, quando este surge apenas como consumidor final) direitos especiais face à sua contraparte[3] [4].

3. Naturalmente que, tendo o estado de emergência sido declarado – pela primeira vez durante a vigência da Constituição de 1976 – e já por duas vezes renovado, tal circunstância não poderia deixar de se repercutir, como repercutiu, no regime dos serviços públicos essenciais, não sendo de surpreender que, no “ordenamento jurídico paralelo e ad hoc” que (passe o pleonasmo) emergiu da emergência, se encontrem diversas disposições que incidem sobre os serviços públicos essenciais. E, de resto, mesmo após se ter transitado do estado de emergência para o estado de calamidade, estes serviços continuaram a merecer uma atenção especial por parte do legislador.

Como é compreensível, o principal foco do Governo tem-se prendido com a garantia da continuidade na prestação destes serviços, evitando interrupções que possam privar os utentes de tais prestações, num período particularmente crítico da vida nacional, preocupação que se manifestou logo desde o início do estado de emergência e que tem vindo a ser reiterada em diversos momentos.

4. Desde logo, o Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de Março – que procedeu à execução da declaração do estado de emergência –, depois de prever uma suspensão generalizada de actividades no âmbito do comércio a retalho e da prestação de serviços, exceptuou precisamente dessa suspensão os “[s]erviços públicos essenciais e respetiva reparação e manutenção (água, energia elétrica, gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados, comunicações eletrónicas, serviços postais, serviço de recolha e tratamento de águas residuais, serviços de recolha e tratamento de efluentes, serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos e de higiene urbana e serviço de transporte de passageiros)”.

Esta mesma solução seria depois replicada pelo Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de Abril, e pelo Decreto n.º 2-C/2020, de 17 de Abril, tendo sido agora reiterada, no contexto do estado de calamidade, pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, de 30 de Abril (cf. o artigo 6.º e o respectivo Anexo II, ponto 14).

5. Imediatamente após a publicação do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de Março[5], foi aprovado, pelo Ministro do Ambiente e da Ação Climática, o Despacho n.º 3547-A/2020, de 22 de Março, que regulamentou a declaração do estado de emergência, assegurando o funcionamento das cadeias de abastecimento de bens e dos serviços públicos essenciais, bem como as condições de funcionamento em que estes devem operar.

Não se justificando entrar aqui em detalhe sobre o regime constante desse Despacho, assinale-se apenas que o mesmo procura concretizar a aplicação prática de duas ideias-chave, ali expressamente afirmadas: a continuidade e a ininterruptibilidade da prestação dos serviços públicos essenciais.

6. Mais relevante nesta matéria é a Lei n.º 7/2020, de 10 de Abril, que, depois de proclamar o objectivo de não interrupção de serviços essenciais [cf. artigo 1.º, alínea c)], estabelece, em coerência, uma proibição de suspensão do seu fornecimento.

Nesta linha, sob a epígrafe “Garantia de acesso aos serviços essenciais”, o artigo 4.º, n.º 1 da referida Lei dispõe que, “[d]urante o estado de emergência e no mês subsequente, não é permitida a suspensão do fornecimento” dos seguintes serviços essenciais previstos na Lei n.º 23/96: o fornecimento de água, o fornecimento de energia eléctrica, o fornecimento de gás natural e o serviço de comunicações electrónicas. Quanto a este último, porém, a suspensão só é proibida “quando motivada por situação de desemprego, quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20%, ou por infeção por COVID-19” (cf. artigo 4.º, n.º 2)[6]. Noutro plano, justifica-se ainda fazer referência ao artigo 16.º, alínea d) do Decreto n.º 2-C/2020, de 17 de Abril, que autoriza o exercício da actividade de aluguer de veículos de passageiros sem condutor (rent-a-car), quando os veículos se destinem à prestação de serviços públicos essenciais – solução que agora consta do artigo 8.º, alínea d) da Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020.

7. Menção especial merecem os serviços de comunicações electrónicas, que, pela sua importância – em particular, num contexto em que se impôs aos cidadãos uma obrigação alargada de confinamento –, foram objecto de um diploma próprio, o Decreto-Lei n.º 10-D/2020, de 23 de Março.

Como resulta deste diploma, as empresas que oferecem redes de comunicações públicas ou serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público devem dar prioridade à continuidade da prestação dos denominados serviços críticos (cf. artigo 2.º, n.º 1), integrando-se neste conceito os serviços de voz e de mensagens curtas (SMS) suportados em redes fixas e móveis, o acesso ininterrupto aos serviços de emergência (incluindo a informação sobre a localização da pessoa que efectua a chamada, e a transmissão ininterrupta dos avisos à população), os serviços de dados suportados em redes fixas e móveis em condições que assegurem o acesso a um conjunto alargado de serviços[7], bem como os serviços de distribuição de sinais de televisão linear e televisão digital terrestre (cf. artigo 2.º, n.º 2).

Antecipando que a necessidade de assegurar a prestação ininterrupta e prioritária destes serviços críticos possa comprometer o regular funcionamento dos demais serviços prestados pelas empresas que oferecem redes de comunicações públicas ou serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público, o legislador prevê expressamente que tais empresas podem, quando necessário, implementar medidas excepcionais de gestão de rede e de tráfego (incluindo a reserva de capacidade na rede móvel) e de priorização na resolução de avarias e de perturbações nas redes e serviços de comunicações electrónicas (cf. artigo 3.º, n.º 1). Entre as medidas de gestão para prevenir os efeitos de congestionamento das redes encontram-se as de (i) conceder prioridade ao encaminhamento de determinadas categorias de tráfego, (ii) limitar ou inibir determinadas funcionalidades (nomeadamente, serviços audiovisuais não lineares, de que são exemplo o de videoclube, as plataformas de vídeo e a restart TV, e o acesso a serviços de videojogos em linha), (iii) determinar o bloqueio, abrandamento, alteração, restrição ou degradação de conteúdos, bem como (iv) reservar, de forma preventiva, capacidade ou recursos de rede para os serviços de voz e de SMS (cf. artigo 4.º, n.os 1, 2 e 4).

Do mesmo modo, para garantir os meios necessários para dar prioridade à continuidade da prestação dos serviços críticos, o legislador suspendeu diversas obrigações especialmente aplicáveis ao sector das comunicações electrónicas, designadamente o cumprimento dos parâmetros de qualidade de serviço previstos na lei, o cumprimento dos prazos de resposta a reclamações de utilizadores finais, apresentadas através do livro de reclamações em formato físico ou electrónico, ou o cumprimento da obrigação de portabilidade, sempre que ela implique deslocação de técnicos para a concretizar (sendo o seu prazo dilatado para cinco dias úteis, quando ela puder ser cumprida por meios exclusivamente não presenciais), entre outros (cf. artigo 8.º).

Adicionalmente, o legislador aprovou ainda algumas medidas de simplificação para assegurar o cumprimento integral e célere das obrigações impostas pelo Decreto-Lei n.º 10-D/2020, nomeadamente dispensando (i) a participação das forças policiais nas intervenções necessárias para assegurar a reposição dos serviços críticos, para garantir a resposta a solicitações especiais de clientes prioritários e para a instalação de infra-estruturas temporárias de aumento de capacidade ou de extensão de redes a locais relevantes (excepto quando os proprietários não a dispensarem), bem como (ii) a obrigação de licenciamento temporário de estação ou de rede de radiocomunicações, para suporte à rede móvel e prestação de serviços a clientes prioritários (cf. artigo 9.º).

Própria do regime de telecomunicações é também a possibilidade de os utentes se desvincularem unilateralmente (e sem custos) dos contratos celebrados, prevendoo artigo 4.º da Lei n.º 7/2020 que, durante a vigência deste diploma, “os consumidores que se encontrem em situação de desemprego ou com uma quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20% face aos rendimentos do mês anterior podem requerer a cessação unilateral de contratos de telecomunicações, sem lugar a compensação ao fornecedor” (n.º 3). Caso, no momento da cessação, existam valores em dívida relativos ao fornecimento destes serviços, deve ser elaborado um plano de pagamento (n.º 4), o qual é definido por acordo entre o fornecedor e o cliente, devendo iniciar-se no segundo mês posterior ao estado de emergência (n.º 5).

8. A terminar, refira-se que a essencialidade destes serviços públicos, reforçada pelo estado de emergência e reafirmada pelo legislador em múltiplos diplomas, já conheceu também afloramentos na jurisprudência administrativa: com efeito, num aresto recente, em que se discutia o levantamento ou manutenção do efeito suspensivo automático provocado pela instauração de uma acção de contencioso pré-contratual[8], no âmbito de um concurso para aquisição de serviços de manutenção correctiva e preventiva de infra-estruturas de águas e águas residuais lançado pela entidade gestora dos serviços de água e saneamento relativos ao Sistema de Águas da Região de Aveiro, o levantamento da suspensão assentou inequivocamente na natureza (de serviço público essencial) do objecto do contrato a que o concurso se destinava, cuja essencialidade seria ainda mais premente em tempos de pandemia.

Assim, o Tribunal Central Administrativo Norte entendeu que, por um lado, não poderia “ser desconsiderada a circunstância de o contrato (…) visa[r] assegurar a manutenção dos sistemas, (…) isto quando os sistemas de água e saneamento são serviços públicos de carácter estrutural, essenciais ao bem-estar geral e à saúde pública”; e que, por outro lado, posteriormente à entrada da acção em juízo, tinha sobrevindo a pandemia, sido declarado o estado de emergência e sido adoptadas pelo legislador as medidas acima descritas, o que constitui uma “circunstância, nova, (…) mas que atualmente não se pode ignorar” (cf. Acórdão de 3 de Abril de 2020, processo n.º 00955/19.1BEAVR-S1, disponível em www.dgsi.pt).

Mesmo que não possa – e nem sequer deva – extrair-se deste Acórdão uma regra geral ou absoluta (no sentido da insusceptibilidade de suspensão judicial da prestação de serviços públicos essenciais em estado de emergência), não há dúvida de que o quadro legal especificamente criado para fazer face à COVID-19, e que o Tribunal convocou em auxílio da sua decisão, reforçou as garantias de continuidade na prestação destes serviços públicos aos utentes, como que afirmando que, neste contexto excepcional, os mesmos são ainda mais essenciais do que em épocas de normalidade.


[1] Já alterada pela Lei n.º 12/2008, de 26 de Fevereiro, pela Lei n.º 24/2008, de 2 de Junho, pela Lei n.º 6/2011, de 10 de Março, pela Lei n.º 44/2011, de 22 de Junho, pela Lei n.º 10/2013, de 28 de Janeiro, e pela Lei n.º 51/2019, de 29 de Julho.

[2] Sobre a matéria, cf., na doutrina nacional, Carlos Ferreira de Almeida, “Serviços públicos, contratos privados”, in AA.VV., Estudos em homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 117-143, João Calvão da Silva, “Serviços públicos essenciais: alterações à Lei n.º 23/96 pelas Leis n.ºs 12/2008 e 24/2008”, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 137, n.º 3948, Janeiro-Fevereiro de 2008, pp.165-181, Elionora Cardoso, Os serviços públicos essenciais: a sua problemática no ordenamento jurídico português, Wolters Kluwer Portugal, Coimbra, 2010, Ana Rita Bastos Batista, “Serviços públicos essenciais: Lei 23/96 de 26 de Julho: análise legal e jurisprudencial”, in Revista Portuguesa de Direito do Consumo, n.º 70, Junho de 2012, pp. 83-109, Ricardo J. Amaral da Costa, “Os serviços públicos essenciais: perspectiva geral”, in Revista Portuguesa de Direito do Consumo, n.º 70, Junho de 2012, pp. 51-81, Adelaide Menezes Leitão, “Alterações à Lei dos serviços públicos essenciais”, in AA.VV., Centenário do nascimento do Professor Doutor Paulo Cunha: estudos em homenagem, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 95-117, Jorge Pegado Liz, “Serviços públicos essenciais: públicos ou privados? Uma perspectiva comunitária”, in Revista Portuguesa de Direito do Consumo, n.º 81, Março de 2015, pp.13-80, Mário Frota, “Serviços públicos essenciais”, in Revista Portuguesa de Direito do Consumo, n.º 88, Dezembro de 2016, pp.13-126, Idem, “Serviços públicos essenciais”, in AA.VV., Estudos de direito do consumo, AAFDL, Lisboa, 2017, Marcelino Abreu, Lei dos serviços públicos essenciais: anotada e comentada, Nova Causa, Famalicão, 2017, e Pedro Falcão, Novos estudos sobre serviços públicos essenciais, Petrony, Lisboa, 2018.

[3] Neste sentido, veja-se a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 20/VII, que esteve na origem da aprovação da Lei n.º 23/96 (esta Proposta de Lei encontra-se publicada no Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 33, de 4 de Abril de 1996, pp. 590-592).

[4] Não obstante o inegável interesse público subjacente a estes serviços, os litígios respeitantes aos contratos em apreço encontram-se excluídos da jurisdição administrativa, por força do disposto na nova alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aditada pela da Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro.

Para uma crítica fundamentada e desenvolvida a esta solução legal, cf. Jorge Pação, “O âmbito da jurisdição administrativa e considerações renovadas sobre as alíneas i), l) e n) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF”, in AA.VV.., Comentários à legislação processual administrativa (coord. Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves e Tiago Serrão), 4.ª edição, 2020, pp. 296-304.

[5] E na sequência do disposto no artigo 26.º, que previa que “[o] membro do Governo responsável pela área do ambiente (…) determina (…) as medidas necessárias para garantir o ciclo urbano da água, eletricidade e gás, bem como dos derivados de petróleo e gás natural, a recolha e tratamento de resíduos sólidos”.

[6] Esta exigência não mereceu a concordância da ANACOM, que considera estarmos perante “um regime menos garantístico dos direitos dos utilizadores de comunicações eletrónicas, em comparação com os utilizadores de outros serviços essenciais”, uma vez que, “enquanto para os utilizadores de comunicações eletrónicas se exige que tenham de estar numa situação de desemprego ou redução de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20%, nos outros casos não existe esta exigência” (cf. o comunicado desta entidade reguladora de 17 de Abril de 2020, disponível em https://www.anacom.pt/render.jsp?contentId=1522761).

[7] Como sejam, entre outros, o correio electrónico, os motores de pesquisa, as ferramentas de formação e educativas de base em linha e do ensino a distância, a procura de emprego e instrumentos de procura de emprego, as ligações em rede a nível profissional (v.g., ligações VPN), serviços bancários, financeiros e seguros via Internet e a utilização de serviços da Administração Pública em linha (v. Anexo ao Decreto-Lei n.º 10-D/2020).

[8] A este propósito, refira-se que as entidades adjudicantes que operam nos denominados “sectores especiais” (da água, energia, transportes e serviços postais) não foram abrangidas por qualquer dos regimes excepcionais de contratação pública aprovados para fazer face à pandemia. Com efeito, mesmo após a clarificação introduzida pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 10-E/2020, de 24 de Março, o artigo 1.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, continuou a ser aplicável apenas às entidades adjudicantes previstas no artigo 2.º (mas não às do artigo 7.º) do Código dos Contratos Públicos. E o Decreto-Lei n.º 18/2020, de 23 de Abril, também não modificou este cenário.

Contudo, as entidades adjudicantes dos “sectores especiais” também podem ser convocadas para a “resposta” à COVID-19, pelo que não são inteiramente compreensíveis os motivos que terão estado na origem desta exclusão pelo legislador (neste sentido, subscrevendo  a crítica já antes formulada por Miguel Assis Raimundo, cf. José Duarte Coimbra, Tiago Serrão e Marco Caldeira, Direito Administrativo da Emergência – Organização Administrativa, Procedimento Administrativo, Contratação Pública e Processo Administrativo na resposta à COVID-19, Almedina, Coimbra, 2020, página 97).