Ricardo Pedro

Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Professor Convidado da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Investigador do CEDIS – Centro de Investigação & Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

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I. INTRODUÇÃO

1. O cenário de emergência de saúde pública de âmbito internacional causado pela doença COVID-19 impôs, nomeadamente (e para o que aqui interessa) aos Estados-Membros da União Europeia a necessidade de reagir depressa e bem num contexto de incerteza, não apenas para efeitos de cura da referida doença de caracter pandémico, mas ainda para – face aos imediatos, visíveis, fortes e indeterminados impactos económicos e financeiros – apoiar a economia europeia que, à data, se encontra a resvalar para uma crise de pendor económico. Importa, contudo, não esquecer que, apesar deste contexto de protecção do mercado interno, mantém-se a necessidade de preservação, desde logo, da concorrência.

Destarte, a Comissão Europeia anunciou de imediato a disponibilidade da União para apoiar os Estados-Membros, e, em particular, para aprovar um regime jurídico temporário enquadrador de auxílios de Estado que permita aos Estados-Membros implementar medidas de apoio financeiro às empresas, nomeadamente para a promoção da liquidez destas. Ou seja, as opções a tomar pelos Estados-Membros nesta matéria, nomeadamente, pelo Estado português devem cumprir a legalidade europeia sobre auxílios de Estado sob pena de mais tarde poder haver lugar à anulação e posterior recuperação dos referidos auxílios juntos das empresas beneficiárias.

2.No cenário de legalidade ordinária, os Estados-Membros estão sujeitos a um regime jurídico de auxílios de Estado não excepcional, podendo desenvolver todas as medidas de apoio às empresas que considerem adequadas a cada momento contanto que cumpram o referido regime. Ainda que num contexto de emergência, como o aqui referido, os Estados-Membros não devem deixar de explorar o quadro jurídico europeu de auxílios públicos não excepcional disponível. Neste âmbito, destacam-se os seguintes tipos de auxílios:

(i) Auxílios destinados a remediar os danos causados por calamidades naturais ou por outros acontecimentos extraordinários;

(ii) Auxílios de emergência e à reestruturação concedidos a empresas não financeiras em dificuldade;

(iii) Auxílios de minimis;

(iv) Auxílios ao abrigo do Regime Geral de Isenção por Categoria;

(v) Auxílios para sanar uma perturbação grave da economia de um Estado-Membro.

3. Num cenário de emergência que convoca regimes de legalidade extraordinária, in casu, de resposta ao impacto económico e financeiro provocado pelo surto do COVID-19 impõe-se que os Estados-Membros actuem em cumprimento do princípio de que situações excepcionais exigem medidas excepcionais. O regime a que agora nos referimos é revelador disso mesmo, uma vez que foi aprovado em poucos dias. Assim, no dia 13 de Março de 2020 poderia ler-se na Declaração da Vice-Presidente Executiva da Comissão, Margrethe Vestager, que estava em preparação uma proposta de quadro temporário de auxílios estatais para apoiar a economia no contexto do surto de COVID-19. No dia 19 de Março de 2020, o regime em análise estava aprovado, tendo sido nessa mesma data publicada a Comunicação da Comissão – Quadro temporário de auxílios estatais para apoiar a economia no contexto do surto de COVID-19.

Antes de se avançar na compreensão do referido regime, importa ter em conta que não se trata de uma intervenção europeia de apoio, como é revindicado por alguns, mas de um quadro jurídico que procura o equilíbrio entre a garantia da não distorção da concorrência e afectação do mercado e a resposta imediata aos efeitos negativos que o surto de COVID-19 está a causar na economia europeia e mundial – ponderação da política da concorrência com uma política de emergência.

4. O presente regime assenta no disposto no artigo 107.º, n.º 3, alínea b), do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, que dispõe: “Podem ser considerados compatíveis com o mercado interno: b) Os auxílios destinados a fomentar a realização de um projecto importante de interesse europeu comum, ou a sanar uma perturbação grave da economia de um Estado-Membro”.

O fundamento da possível compatibilidade assenta na necessidade de sanar uma perturbação grave da economia de um Estado-Membro. Não assenta, portanto, no artigo 107.º, n.º 2, alínea b), do Tratado, que admite auxílios públicos, nomeadamente, para fazer face a “ocorrências excepcionais”, tal como se qualifica o COVID-19 e com base na qual já foi aprovada uma primeira medida de apoio neste contexto – medida apresentada pelo Governo dinamarquês e aprovada pela Comissão para compensação dos danos causados aos organizadores de eventos pelo cancelamento de grandes eventos, no período de 6 a 31 de Março de 2020, com mais de 1.000 participantes, devido ao surto de COVID-19, em conformidade com as regras de auxílios públicos da União.

A distinção entre as diferentes bases legais é importante em termos práticos uma vez que as ocorrências excepcionais previstas no artigo 107.º, n.º 2, alínea b), do Tratado podem não se reflectir imediatamente no mercado, isto é, pode levar algum tempo até que a extensão dos danos na economia real se torne aparente e isso poderá tornar mais difícil estabelecer uma relação causal entre a “ocorrência excepcional” e os efeitos económicos que um regime de auxílio particular é projectado para remediar. Esta relação causal é essencial para que se possa lançar mão do regime previsto no artigo 107.º, n.º 2, alínea b), do Tratado. Nesta linha de argumentação, a base jurídica assente no artigo 107.º, n.º 3, alínea b), do Tratado estabelece um quadro que proporciona maior certeza, permitindo aos Estados-Membros desenvolverem regimes direccionados para os sectores que sofrem com as repercussões económicas da crise.

Todavia, tal não quer significar que a base jurídica prevista no artigo 107.º, n.º 2, alínea b), do Tratado não possa ser mobilizada – pode e deve (assim como já o foi para aprovação da medida apresentada pelo Governo dinamarquês – acima referida), apenas quer significar que não é a base eleita para o regime temporário em análise.

5. Com um objectivo enquadrador, importa ainda ter em conta que o regime temporário de auxílios recentemente aprovado também, por ora, não seguiu a opção, de 2008, de aumentar o limiar quantitativo do regime de minimis geral para 500,000 euros ou para outro limiar quantitativo que presumivelmente não afectasse o mercado.

Importa ainda referir que uma das lições que se pode retirar da aplicação do regime temporário de auxílios de Estado previsto para reagir à crise de 2008 – quadro temporário de auxílios estatais para apoiar a economia – é a de que as medidas de apoio devem respeitar os princípios fundamentais do direito da União Europeia, nomeadamente, o princípio da não discriminação – que se verifica logo que algum player seja excluído do acesso a medidas de apoio.

III. MEDIDAS TEMPORÁRIAS DE AUXÍLIOS ESTATAIS

6. As medidas temporárias de auxílios estatais referidas encontram, como já sinalizado, cabimento jurídico enquadrador no n.º 3, alínea b), do artigo 107.º do Tratado, devendo o Estado-Membro demonstrar que as medidas de auxílio estatal notificadas à Comissão, ao abrigo da comunicação em apreciação, são necessárias, adequadas e proporcionais para sanar uma perturbação grave da economia do Estados-Membros em causa e que todas as condições desta comunicação são plenamente respeitadas.

No que tange à cumulação, os auxílios concedidos sob a forma subsídios directos, benefícios fiscais selectivos e adiantamentos, referidos infra em (i) podem ser cumulados com os auxílios referidos infra em (ii), (iii) ou (v).

Ainda numa lógica preliminar, maxime numa leitura de emergência, deixam-se referidas abaixo as linhas gerais das medidas adoptadas pelo regime transitório em apreciação:

(i) Auxílios sob a forma de subvenções directas, adiantamentos reembolsáveis ou benefícios fiscais, incluindo subsídios até 800.000 euros por empresa para fazer face às suas necessidades urgentes de liquidez, embora se apliquem limites mais baixos às empresas dos sectores da agricultura, pescas e aquacultura;

(ii) Auxílios sob forma de garantias sobre empréstimos, podendo ser para fins de capital de exploração imediato, bem como para necessidades de investimento;

(iii) Auxílios sob forma de taxas de juro bonificadas para os empréstimos, visando assegurar o acesso à liquidez a empresas que subitamente deixam de a ter, a taxas de juro bonificadas durante um período limitado e para um montante de empréstimo limitado;

(iv) Auxílios sob forma de garantias e empréstimos canalizados através de instituições de crédito ou de outras instituições financeiras, estando previstasas condições em que os auxílios canalizados através dos bancos serão considerados como auxílios directos aos clientes dos bancos e não aos próprios bancos; e

(v) Seguro de crédito à exportação de operações garantidas a curto prazo, introduzindo o regime em apreciação uma flexibilidade adicional que permita a utilização da cláusula de derrogação relativa aos riscos não negociáveis em sede de seguros de crédito à exportação em operações garantidas a curto prazo, quando necessário.

III.VIGÊNCIA

7. Este regime vigora desde 19 de Março até 31 de Dezembro de 2020. Deve, no entanto, ter-se presente que se aplica a todas as medidas notificadas a partir de 19 de Março de 2020, como ainda às medidas que tenham sido notificadas antes dessa data.

IV. ESPERANDO O INESPERADO…

8. Por fim, para além de outros enquadramentos jurídicos que a CE deva aprovar; a esta distância, parece tornar-se cada vez mais necessária uma intervenção, em particular para apoiar a indústria aérea em dificuldades. O quadro temporário referido permitirá que a liquidez seja rapidamente injectada na economia, mas isto pode não ser suficiente para responder às preocupações de várias companhias aéreas sobre questões de solvência.

De notar a este propósito que o regime temporário de auxílios públicos de resposta ao impacto económico e financeiro provocado pelo surto do COVID-19 esclarece que o princípio do “auxílio único” para salvar e reestruturar empresas em dificuldades não impede que essas empresas recebam novos auxílios, que são notificados à Comissão com base numa “ocorrência extraordinária”. De referir que a base jurídica enquadradora, para já, será o artigo 107.º, n.º 2, alínea b), do Tratado, que admite auxílios públicos, nomeadamente, para fazer face a “ocorrências excepcionais”, tal como se qualifica o COVID-19, e com base no qual já foi aprovada uma primeira medida de apoio neste contexto (e não o artigo 107.º, n.º 3, alínea b), do Tratado, no qual se baseia o regime temporário referido).

A referida previsão – ponto 15 do regime temporário – será bem acolhida pelas empresas do sector da aviação que podem já ter recebido auxílios de emergência e à reestruturação, mas que agora se encontram novamente em dificuldades devido a esta crise.

Lisboa, 26 de Março de 2020