António Correia de Campos

Presidente do Conselho Económico e Social. Foi duas vezes Secretário de Estado e duas vezes Ministro da Saúde. Foi deputado à Assembleia da República e Deputado ao Parlamento Europeu. Professor Catedrático da ENSP/UNL, na situação de reforma. Estudou em Lisboa, Coimbra, França, Estados Unidos e Reino Unido. Ensinou e escreveu sobre Economia e Administração de Saúde, Gestão Pública e Políticas Públicas. Presidiu ao INA, à Comissão do Livro Branco da Segurança Social, ao Conselho Científico do Instituto Europeu de Administração Pública (Maastricht), e ao Conselho Científico da ENSP/UNL. Trabalhou no Ministério da Saúde, na FLAD, no Banco Mundial, e foi consultor de diversas organizações internacionais.

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Os tempos que correm geram doenças sociais novas que reeditam fraquezas antigas. Identificámos sete e consideramo-las síndromes, no sentido de “reunião de sinais e sintomas que ocorrem em conjunto e que caraterizam uma doença ou perturbação” (Dicionário Texto Ed.). São as seguintes:

Síndrome “contentor do lixo sim, mas não na minha porta”.

Muito popular na ecologia moderna: tem que haver recolha de lixo em contentores pelas ruas mas, por favor, não na minha porta. Diretores de faculdades e até reitores, diretores de escolas secundárias, públicas e privadas e outros responsáveis pela educação de dois milhões de Portugueses, ao primeiro sinal de perigo exigiram o encerramento, com receio de contágio. Foram eficazes no alarme social, em menos de 24 horas o Governo cedeu e encerrou escolas de todos os níveis de ensino. O Governo da Lombardia tinha feito o mesmo, só que com resultados desastrosos, espalhando o vírus pelas residências secundárias de pais e velhas casas de avós em toda a rica Lombardia e ao longo das costas e do centro de Itália, fazendo explodir a contaminação. Na fase de contenção em que nos encontrávamos, seria sempre mais fácil conter casos surgidos em concentrações de população que em população disseminada na natureza. Entre nós, o resultado inicial, em dias soalheiros foi a massificação e concentração do lazer diurno nas praias e noturno nos bares e ruas. Só não houve um desastre como o italiano, por a contaminação inicial ser menor e por ter sido rapidamente decidido o confinamento obrigatório e quatro dias depois o estado de emergência. Tiveram aí origem os primeiros heróis da crise, os previdentes dirigentes escolares, com honras mediáticas e grande apreço da cidadania agradecida. Não durou muito a glória, já foram esquecidos, tal como os riscos a que forçaram o País. Tivemos sorte, eles e nós.

Síndrome “somos todos epidemiologistas”.

Durante dias a fio o País foi aterrorizado com as projeções matemáticas de sábios académicos. Para o dia em que escrevo (27 de março), com 4268 novos casos confirmados, um académico, qual alucinado Padre Malagrida a proclamar o Terramoto de 1755 como castigo divino, anunciava um mínimo de 7454 e um máximo de 17876 casos. A natureza trocou-lhe as voltas, demonstrando o erro. Refutação feita, a vaga de sabichões acalmou e deixou o espaço livre para produção cuidadosa de informação, conhecimento partilhado e decisão racional. Pode haver outras vagas, estejamos atentos.

Síndrome do lazareto.

A peste vem sempre de fora. Uma Região Autónoma, onde o confinamento é fácil (ilhas são paraíso de epidemiologistas), mal se registou o primeiro caso logo as autoridades regionais suspenderam voos da sua companhia doméstica. Em outra região, o turismo foi barrado mal um hotel contou um hóspede contaminado. Apesar de tanto se ter falado na imunidade de grupo, foi privilegiado o tamponamento. Não admira que os novos casos se extingam com facilidade. Mas como estas regiões vivem dos que lhes vêm de fora, passado este episódio que celebrarão, terão que se abrir de novo ao vírus deambulante. Adiaram o problema, defendendo a virgindade contra a imunidade, o que irá atrair dezenas de epidemiologistas para seguir o próximo surto em ambiente fechado. Em outro caso, o dos emigrantes regressados, a Provedoria de Justiça interveio para recomendar acalmia de excessos sanitários locais.

Síndrome do bode expiatório.

Quando a desgraça se abatia, o primeiro recurso espiritual dos pagãos era encontrar o bode expiatório e liquidá-lo. Hoje como então, a solução fácil é culpar os outros: a falta de dispositivos de proteção, a demora nos testes, a relutância oficial em aceitar testes com fiabilidade limitada, o número de ventiladores e de camas para cuidados intensivos, a impossibilidade física de os serviços de saúde terem obtido medidas preventivas para lares mal desenhados, sobrelotados de utilizadores e infradotados de pessoal qualificado. De nada vale as lacunas serem preenchidas, os imprevistos colmatados, os equipamentos e dispositivos de proteção apesar de universalmente escassos estarem a chegar, os maiores hospitais garantirem boas condições para suporte de vida, o pessoal se multiplicar em esforços e sacrifícios. Haverá sempre queixas e a culpa será sempre do Ministério da Saúde, da Direção-Geral da Saúde, das administrações regionais, dos delegados de saúde, dos institutos que gerem os recursos científicos, em suma, do Estado. A agressividade mal disfarçada das perguntas na ronda diária da DGS é o melhor indicador deste clima. A culpa será sempre dos poderes públicos. Surgem depois soluções salvíficas: testes para todos, mesmo que inadequados para o fim pretendido; pavilhões municipais para testes PCR rápidos, já que o SNS se não desembrulha; queixas em canal aberto contra o estado central e seus órgãos desconcentrados; estranheza pela demora de soluções para riscos que bem poderiam ter sido previstos e solucionados a nível local se seguissem instruções dadas em tempo útil; queixas, queixas, queixas. Também surgem soluções práticas e inteligentes, de iniciativa local, como a utilização de hotéis vazios para separar idosos institucionalizados contaminados, dos que ainda possam não o estar. O comportamento geral pouco se afasta do de há 120 anos, até que a evidência se imponha. Ricardo Jorge, já não podendo ser expulso da sua cidade, mantém o fantasma a pairar.

Síndrome da anti-burocracia.

Mesmo espíritos bem pensantes podem julgar que galgar níveis de serviço, fazer curto-circuitos administrativos, marginalizar a linha da administração é a solução ideal. Ou, no limite, a tentação secreta de criar em cada concelho uma DGS autónoma. Como se enganam! Confundem a vontade de agir com agir com acerto, o voluntarismo com determinação, o desembaraço com a eficácia, quando não o espalhafato com a perseverança ou o protagonismo de atores com a modéstia dos resultados. Alterar regras e saltar patamares pode ser popular, mas quase sempre prejudica o resultado final. Livremo-nos dessa falsa assertividade e da improvisada resiliência que a acompanha.

Síndrome do cometa.

Um astro com luz forte que lança uma cauda de grande visibilidade, mas de passagem fugaz e ocasional. Transformar um bom hospital geral em especializado em infeciologia, expulsando os serviços que nele se desenvolveram com qualidade e tradição, não é apenas fantasia, é grossa asneira. Tem que haver alternativas. As instituições não são apenas edifícios, andares, alas, quartos e leitos, são sobretudo pessoas e com elas uma cultura: de conhecimento de experiência, de relacionamento, de liderança. Se nenhum serviço hospitalar é descartável sem evidência de ser inútil, como aceitar que serviços prestigiados possam ser despejados e transferidos sob promessa de transitoriedade? Muito cuidado, pois, para não jogarmos fora a criança com a água do banho.

A síndrome da descrença, que se transforma em descrédito a prazo.

Clama-se que os números são falsos, incompletos, manipulados, atrasados. As conferências de imprensa longas e demasiado detalhadas. A Direção-Geral da Saúde teria poder a mais, sem recursos à altura da missão. Em breve se dirá que os políticos se servem da crise em proveito da sua reputação. Estaremos a dar cabo da economia com esta paragem? (Ninguém como Trump o afirmou com a brutalidade habitual). Talvez fosse melhor deixar morrer uns tantos idosos para ganhar imunidade de grupo! Bem sei que ainda não se concretizaram entre nós estas afirmações, mas vê-las-emos surgir, a princípio com timidez, depois com arrogância e rancor. Já alguns duvidam dos números, a primeira das insídias. Por muito que seja explicado como eles surgem, quem os gera, ou como é colhida, reunida, tratada, transmitida e publicada a informação, a elevada exigência de rigor que preside ao processo, o longo e prestigiado registo profissional dos responsáveis, por muito diligentes que sejam os media a apresentar líderes e atores qualificados, responsáveis, honestos, humildes e até sacrificados, haverá sempre teorias de conspiração, descrença idiota, invejas do protagonismo alheio, ignorância arrogante, ou simplesmente malformação congénita. Semearão pedras, escolhos, cavarão alçapões, lançarão o veneno da descrença. Tudo isto já se imagina, mas em nada poderá afetar a marcha do trabalho.

Há muito que fazer. Poderão surgir motins de fome, roubos de casas abandonadas e na via pública, jovens e velhos rebelando-se contra a disciplina do confinamento, manifestações contra o desemprego ilegal, mercado negro de medicamentos essenciais, violência doméstica inesperada, abandono de familiares isolados e de sem-abrigo.

Não esperemos o melhor, a não ser em altruísmos aqui e ali. Ninguém experimentou crise semelhante. Não tivemos a II Grande Guerra para aprendermos, a não ser em algumas restrições alimentares e os que a viveram estão a desaparecer. Não fomos grandemente educados na solidariedade, a não ser por fogachos. Estamos embebidos em valores individuais de consumismo, competição desleal, cultura do prazer imediato, do material, do faz-de-conta. Deixámos seduzir os mais novos pelas roupas de marca, pelos automóveis vistosos, pelas férias exóticas, por escassas fidelidades.

Todavia, há valores adormecidos que podem ser despertados, solidariedades cultivadas em grupo para servir terceiros que não reconhecíamos no nosso tempo, desprendimentos e desapegos também libertadores. O mundo será um pouco diferente do que é hoje, não muito, talvez mais sensível aos valores ambientais, aos animais, aos marginais da nossa margem. Talvez nos valores de cidadania possa haver diferenças, também. E podem ser para melhor.