David Falcão

Professor Coordenador com Agregação em Ciências Jurídicas

Doutor em Direitos Humanos


Quero começar por realçar que esta reflexão nada tem a ver com ideologias de esquerda ou de direita ou com confissões religiosas. Resulta, pois, da minha experiência académica, pautada pela independência e imparcialidade e pretende refletir a máxima honestidade intelectual e basear-se em Princípios Basilares do Estado de Direito.   

Assim, na qualidade de Doutor em Direitos Humanos, defendo acerrimamente a Igualdade de Género, a Liberdade Religiosa, a tolerância e, ao mesmo tempo, condeno qualquer uso ou costume que seja suscetível de beliscar a dignidade da pessoa humana. É sobre a dignidade que me quero, primeiramente, debruçar.

A existência de um catálogo de Direitos Humanos, disperso por diversos textos de Direito Internacional Público, funda-se, justamente, na dignidade, conceito de fácil compreensão, mas de difícil definição. Desde o ponto de vista kantiano, a dignidade, tratando-se de um valor absoluto, constitui condições para que cada ser humano seja “um fim em si mesmo” e não um meio para se atingir fins alheios.

Portanto, a questão que se coloca é a seguinte:

O uso de burka/niqab atenta contra a dignidade humana das mulheres Islâmicas?

No imediato, sou obrigado a responder negativamente. Tendo tido a fortuna de nascer e crescer num país civilizado, num Estado de Direito, o meu barómetro ocidental não está preparado culturalmente para entender, pese embora discorde, o porquê de outras culturas não verem a Mulher enquanto ser dotado de dignidade. Portanto, se a Mulher não é digna, no âmbito de determinado grupo cultural enraizado num Estado que pactua com esta visão, não encontro fundamentos que me permitam censurar a obrigação da utilização de burka/niqab. Entre Estado alheio e respetivos cidadãos “não se deve meter a colher”. É dizer, não é legítimo querer impor a cultura de um determinado país tentando fazê-la prevalecer sobre a cultura de outro.

No entanto, se se tratar de um Estado de Direito, como “o meu”, já se pode – e se deve – “meter a colher”. É perfeitamente legítimo repudiar-se qualquer expressão cultural externa suscetível de atentar contra a dignidade humana, tutelada por um conjunto considerável de Direitos Fundamentais.

Não sendo meu intuito direcionar o presente texto rumo a uma argumentação técnico-jurídica exaustiva, cabe dizer que o uso de burka/niqab é o corolário da masculinidade tóxica por estar assente na ideia de que a mulher não pode exibir a sua beleza!
É por demais evidente que qualquer movimento feminista, e bem, devia difundir e denunciar esta prática, por avessa à promoção da Igualdade de Género, da Liberdade, da Independência, enfim, da dignidade da pessoa humana.

Por outro lado, a utilização de vestuário que seja suscetível de cobrir totalmente do rosto em espaços público é incompatível com o Direito à Segurança (e com a própria integração social).

Outrossim, a obrigação de utilização deste tipo de vestuário, que sujeita a Mulher a um tratamento degradante, que limita a sua dignidade, que belisca a sua Liberdade, que é incompatível com o Direito à Segurança e impede a sua integração social, não pode ser escamoteada em prol de uma interpretação enviesada dos Direitos à Liberdade Religiosa, de Consciência e de Pensamento.

Tampouco a proibição se trata de uma medida discriminatória, uma vez que o que se pretende proibir é o uso de qualquer vestuário suscetível de cobrir o rosto, em espaços públicos (e não em quaisquer outros).

Acresce, ainda, o argumento dos Princípios e valores seculares dos Estados ocidentais, enquanto padrões de conduta ético-morais assentes na razão e na ciência, em detrimento de crenças religiosas.

Destarte, existe jurisprudência nesse sentido produzida pelo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que veio, por ex., a considerar legítima a proibição do uso de burka/niqab em França.

Assim, como não condeno, não posso sob pena de incoerência, o uso de burka/niqab num Estado que imponha essa prática, também não admito que nativos desses Estados tentem impô-la no meu. É uma questão de respeito mútuo e que, acima de tudo, decorre de Princípios Basilares de um Estado de Direito e de regras de Direito Internacional Público.
Concluo, chamando à atenção para o facto de que a Liberdade para se discutir e debater este tipo de questões, podendo assumir-se distintas opiniões, é a evidência de que Portugal é uma das Nações mais tolerantes do planeta. Talvez, noutras partes do globo, as Liberdades Públicas só existam quando convenha e só sejam asseguradas a um número limitado de pessoas, principalmente em função do género. Portanto, não deixa de ser, de certa forma, curioso, que se invoque a Liberdade Religiosa enquanto fundamento tendente à supressão da Liberdade de Expressão!