
Joana Reis Barata
Advogada Sénior na Vieira de Almeida & Associados, Sociedade de Advogados.
Investigadora do Centro de Investigação de Direito Privado (CIDP/FDUL) e do Centro de Investigação de Direito Penal e Ciências Criminais (CIDPCC/FDUL).
Consulte a sua obra neste link.
No âmbito do Direito Processual Penal, especialmente no que se refere ao objeto do processo, a questão da alteração de factos tem sido alvo de significativo destaque nos estudos realizados nesta área. Acontece, porém, que a alteração da qualificação jurídica poderá ser tão inócua ou tão perniciosa para a posição processual do arguido quanto a alteração de factos, pelo que considerámos proficiente encetar um estudo renovado sobre esta figura, assente em premissas atuais.
Vejamos um exemplo prático: se o arguido é acusado da prática de um crime de furto no valor de cinco mil euros e, no decurso do julgamento, se apura que o valor da coisa é, afinal, de seis mil euros, o Tribunal só poderá conhecer e considerar este novo facto com o acordo dos sujeitos processuais, atendendo a que se trata de uma alteração substancial de factos. Assim será uma vez que o arguido passa a poder ser punido com uma pena de prisão até cinco anos, e já não até três anos, o que, na ótica do legislador ordinário português, seria inaceitável. Porém, se o arguido for acusado da prática de um crime de homicídio privilegiado e, com base nos mesmos factos, o julgador entender que o fator privilegiado tomado em consideração pela acusação não se verifica ou não é apto a privilegiar o homicídio, a qualificação jurídica poderá ser alterada. Nesse caso, o arguido inicialmente acusado da prática de um crime punível com pena de prisão até cinco anos, poderá vir a ser condenado numa pena de prisão até dezasseis anos.
Parece-nos que o legislador ordinário se ocupou de positivar um regime extremamente adstringente no que concerne à alteração de factos – com uma adstringência diríamos até singular no contexto europeu –, tratando com insustentável leveza o regime da alteração da qualificação jurídica, sempre permitida mediante o exercício prévio do contraditório pelo arguido, em prazos tendencialmente exíguos.
A abordagem legislativa manifesta um tratamento díspar entre a alteração de factos e a qualificação jurídica, realidades que, como bem apontava Castanheira Neves na sua obra “Questão-de-facto questão-de-direito ou o problema metodológico da juridicidade”, se encontram profundamente interligadas e dificilmente dissociáveis. Essa dicotomia legislativa, longe de resolver os desafios do processo penal, acaba por gerar incoerências que afetam a lógica jurídica e o equilíbrio processual.
Esta discrepância de tratamento entre alteração de factos e alteração da qualificação jurídica suscita questões profundas sobre a aplicação do Direito e a prossecução da Justiça. Por isso, cumpre-nos perguntar: e se, em vez de aplicar cegamente um único regime, adaptássemos as soluções às especificidades de cada caso, construindo um sistema mais flexível e equilibrado? Foi precisamente com este propósito que nasceu a obra “A Alteração da Qualificação Jurídica no Processo Penal”, oferecendo caminhos inovadores para aprimorar o tratamento dessa matéria essencial no contexto processual penal.