
David Falcão
Professor Coordenador com Agregação
A entrada em vigor do DL n° 66/2018, de 16 de agosto, que estabeleceu o (novo) Regime Jurídico de Reconhecimento de Graus Académicos e Diplomas de Ensino Superior Atribuídos por Instituições de Ensino Superior Estrangeiras conduziu a algumas (poucas felizmente) interpretações enviesadas, quer da sua letra, quer do seu espírito. Na qualidade de Professor Coordenador com Agregação no domínio das Ciências Jurídicas que, com a devida humildade, julga ter algum domínio da hermenêutica jurídica, senti-me compelido a escrever a respeito. Assim, com o intuito de colocar um ponto de ordem e contribuir para debelar eventuais dúvidas que, a propósito, ainda subsistam, cumpre dissecar os aspetos relevantes do diploma.
Todos aqueles que tendo concluído os respetivos doutoramentos em Instituição de Ensino Superior (IES) estrangeira, e procedido ao registo dos diplomas e/ou dos certificados ao abrigo da legislação vigente à data do pedido (Decreto-Lei n.º 283/83, de 21 de junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 341/2007, de 12 de outubro) viram reconhecidos os graus de Doutor em Portugal.
Nesse sentido, sou de entender que não pode ser exigido, por nenhuma Instituição de Ensino Superior (IES), como requisito/formalidade de admissão a concurso público o reconhecimento específico de ditos graus, à luz de legislação posterior, no caso, DL n° 66/2018, de 16 de agosto. Tal exigência beliscaria os princípios da Irretroatividade da Lei (artigo 12.º, n.º 1 do Código Civil), tempus regit actum, da Segurança Jurídica e Confiança (artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa) que impõem um mínimo de certeza, previsibilidade e estabilidade, tutelando, por sua vez, direitos subjetivos e relações jurídicas consolidadas.
Ora, funda-se tal raciocínio na letra e espírito do artigo 26.º, n.º 1 do DL n° 66/2018, de 16 de agosto, com as alterações introduzidas pelo DL n° 86/2023, de 10 de outubro, que, entrando em vigor no dia 1 de janeiro de 2019, passou a determinar que se “consideram reconhecidos nos termos do presente decreto-lei os graus reconhecidos ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 216/97, de 18 de agosto, nos termos fixados pela Deliberação n.º 120/98, publicada no Diário da República, 2.ª série, n.º 49, de 27 de fevereiro, e pelos Despachos n.ºs 22017/99, e 22018/99, ambos publicados no Diário da República, 2.ª série, n.º 267, de 16 de novembro, todos da comissão de reconhecimento de graus estrangeiros, os reconhecidos ou considerados equivalentes ao abrigo do Decreto-Lei n.º 283/83, de 21 de junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 341/2007, de 12 de outubro e os reconhecidos ao abrigo do Decreto-Lei n.º 93/96, de 16 de julho”.
Além disso, o n.º 2 do mesmo artigo determina: “Mantêm-se em vigor, com todos os efeitos legais, as deliberações genéricas da comissão de reconhecimento de graus estrangeiros, publicadas ao abrigo do DL n.º 341/2007, de 12 de outubro.”
Ainda quanto à produção de efeitos, o artigo 29.º estabelece que “As alterações decorrentes do presente decreto-lei aplicam-se aos processos de reconhecimento que sejam requeridos após a data da sua entrada em vigor”, ou seja, 1 de janeiro de 2019, não sendo aplicável, pois, a graus obtidos e reconhecidos anteriormente. Tal ideia é reforçada pelo artigo 14°, n° 3 da Portaria n° 43/2020, de 14 de fevereiro, que dispõe que “aos processos de reconhecimento requeridos até 31 de dezembro de 2018 é aplicável o regime jurídico vigente à data do requerimento inicial”.
Destarte, o DL n° 66/2018, de 16 de agosto, com as alterações introduzidas pelo DL n° 86/2023, de 10 de outubro, no n° 5 do artigo 4° é claro e apenas exige reconhecimento específico aos titulares de grau académico ou diplomas que não possam ser alvo de reconhecimento automático, naturalmente, pelo facto de não constarem no elenco de graus e diplomas fixados pela Comissão de Reconhecimento de Graus e Diplomas Estrangeiros. E este é o cerne da questão. É dizer, só se pode exigir reconhecimento específico a quem não possa obter reconhecimento automático, evidentemente pelo facto do grau ou diploma não constar do elenco de graus e diplomas fixado pela Comissão de Reconhecimento de Graus e Diplomas Estrangeiros. Como tal, subsistirem dúvidas quanto à sua similitude com a dos graus ou diplomas conferidos em Portugal, relativamente à natureza, nível, objetivos, área de formação e duração. Por outras palavras, a quem possa obter reconhecimento automático não se pode exigir reconhecimento específico. Vejamos a letra do supramencionado artigo:
“Os titulares de graus académicos ou diplomas que não possam ser alvo de reconhecimento automático, podem solicitar, relativamente ao mesmo grau académico ou diploma:
a) Reconhecimento de nível;
b) Reconhecimento específico.”
Tal entendimento pode, do mesmo modo, ser aferido da nota explicativa facultada pela prestigiada Universidade de Coimbra, no seu site[1]–[2]
Seria estranho que os titulares de grau académico estrangeiro tivessem de lançar mão de novos processos de reconhecimento (repita-se, apesar de já obtido), proceder ao pagamento de emolumentos elevados e sujeitarem-se a eventuais devaneios do legislador, aquando da entrada em vigor de alterações legislativas – tal colidiria, objetivamente e sem margem de dúvidas, com os valores de certeza, justiça e segurança jurídica.
Mais, se a admissão a concurso não dependia, anteriormente, de equivalência de grau, mas apenas de reconhecimento, porquê exigir-se agora reconhecimento específico, em detrimento do referido reconhecimento, também previsto na legislação vigente? Não vislumbro quaisquer fundamentos subjacentes a esta alteração de paradigma que, no fundo, dificulta, injustificadamente, o acesso de doutorados a concursos públicos e atenta contra a dignidade profissional. Aliás, os concursos públicos são abertos em áreas disciplinares e não em áreas CNAEF e tais áreas disciplinares são perfeitamente sindicáveis nos diplomas e certificados de Doutoramento obtido no estrangeiro (mesmo que tal demande tradução oficial) e consta das fichas do RENATES – Registo Nacional de Teses e Dissertações.
Assim, é inexigível o reconhecimento específico a quem haja obtido reconhecimento, registo ou equivalência ao abrigo de legislação anterior, uma vez que os efeitos de tal formalidade são acautelados pela mais recente legislação. Aliás, se assim não fosse, o próprio legislador teria levantado um problema massivo às IES (principalmente do Ensino Politécnico) que nos seus quadros contam com elevado número de docentes doutorados no estrangeiro, nomeadamente no que aos rácios relativos à aprovação de cursos diz respeito.
Concluo, então, que não é exigível reconhecimento específico a quem tenha ou possa obter reconhecimento automático pelo que o argumento seguinte é aplicável unicamente aos casos em que se exige reconhecimento específico. Isto é, aos titulares de grau académico que não conste do elenco fixado pela Comissão de Reconhecimento de Graus Estrangeiros e aos candidatos internacionais.
2. Pode ler-se no preâmbulo do DL n° 86/2023, de 10 de outubro, que alterou o DL n° 66/2018, de 16 de agosto, que “em virtude da experiência ocorrida desde o início da vigência do referido decreto-lei, importa ampliar as condições em que é possível proceder ao reconhecimento automático de graus académicos bem como ao reconhecimento específico, especialmente quando este é relevante para efeitos de recrutamento de doutorados por instituições do sistema científico e tecnológico nacional. Tendo em vista a promoção de uma maior abertura daquelas instituições a candidatos com habilitações estrangeiras, a redução dos níveis de endogamia existentes em algumas instituições, a aceleração dos processos de recrutamento, bem como o aproveitamento do trabalho de avaliação de mérito científico e académico já realizado pelas instituições, atribuem-se competências aos júris de recrutamento para, em simultâneo com a análise dos demais elementos documentais do procedimento concursal, procederem ao reconhecimento do grau académico de doutor”. Nesse sentido, foi aditado ao DL n° 66/2018, de 16 de agosto, o artigo 21.º-A que estabelece que os júris dos concursos de recrutamento para carreira constituídos ao abrigo do Estatuto da Carreira Docente Universitária, do Estatuto da Carreira Docente do Pessoal Docente do Ensino Superior Politécnico e do Estatuto da Carreira de Investigação Científica e os júris de contratação de doutorados constituídos nos termos do artigo 13.º do DL n.º 57/2016, de 29 de agosto, na sua redação atual, podem proceder ao reconhecimento específico de graus e diplomas estrangeiros de nível, objetivos e natureza idênticos ao grau de doutor dos candidatos a esses concursos, devendo o processo ser instruído nos termos fixados pela portaria do membro do Governo responsável pela área do ensino superior a que se refere o n.º 2 do artigo 4.º. A seu turno, o artigo 4.º, n.º 2 estabelece que o reconhecimento é requerido pelo titular das qualificações estrangeiras de ensino superior, ou por representante legal, através da apresentação de documento que comprove de forma inequívoca que o grau ou diploma foi atribuído, nos termos fixados por portaria do membro do Governo responsável pela área do ensino superior. Ora, o eventual argumento de que a questão não foi devidamente regulamentada via Portaria, por forma a não consagrar tal vicissitude nos Regulamentos Internos, não procede, na medida em que foi e o referido artigo 21.°-A passou a fazer parte integrante do DL n.° 66/2018 que é regulamentado pela Portaria n.° 43/2020, de 14 de fevereiro. Portanto, a instrução dos processos deve ser feita nos termos previstos na referida Portaria, como é por demais evidente. Nesta senda veja-se, por ex., o Regulamento n.º 130/2024, de 29 de janeiro da Universidade de Aveiro, publicado em DR (Alteração ao Regulamento da Universidade de Aveiro para o Reconhecimento de Graus Académicos e Diplomas de Ensino Superior Atribuídos por Instituições de Ensino Superior Estrangeiras) que estabelece no artigo 24.º-A o reconhecimento específico por júris de recrutamento ou o Regulamento n.º 1217/2024, de 23 de outubro, da Universidade da Beira Interior (Regulamento da Universidade da Beira Interior para o Reconhecimento de Graus Académicos e Diplomas de Ensino Superior atribuídos por Instituições de Ensino Superior Estrangeiras) que estatui exatamente no mesmo sentido no artigo 20.º-A .
Tratando-se de concursos públicos de escopo internacional, uma IES que exigisse reconhecimento específico, limitando, em simultâneo, a possibilidade de tal pedido aos júris de concurso, excluiria, imediatamente, candidatos de outros países que não conseguiriam obter reconhecimento específico dentro do prazo de candidatura, dada a morosidade na sua obtenção. Tal, viola, claramente, o Princípio da Igualdade e põe em causa o da Liberdade de Escolha de Profissão e Acesso à Função Pública, ambos plasmados na Constituição da República Portuguesa.
Portanto, a aplicação do artigo 21.º-A do DL n° 66/2018, de 16 de agosto com as alterações introduzidas pelo DL n° 86/2023, de 10 de outubro, não carece de emissão de qualquer Portaria, porque já existe tal Portaria (Portaria n° 43/2020, de 14 de fevereiro). Contudo, a verdade é que demanda alteração imediata dos Regulamentos de Recrutamento e Contratação do Pessoal Docente das IES que ainda não os tenham adequado à Lei Geral. A inércia regulamentar não pode, em momento algum, prejudicar os interessados na apresentação de candidaturas a procedimento concursal.
Assim sendo, como resultado de um eventual erro de interpretação que prejudica, claramente, quem realizou estudos de doutoramento em IES estrangeira, será nula, em conformidade com o disposto no artigo 24º do DL n° 66/2018, de 16 de agosto com as alterações introduzidas pelo DL n° 86/2023, de 10 de outubro, qualquer decisão relativa à exigência de reconhecimento específico a quem obteve ou pode obter reconhecimento automático, bem como aquelas que tendam a suprimir o direito a solicitar reconhecimento específico aos júris de concurso.
Concluindo,
cumpre realçar que a subordinação da Administração Pública ao Princípio da
Legalidade implica que todas as IES estão constituídas no dever de cumprir as
disposições legais. Trata-se in casu, por um lado, de salvaguardar os
legítimos interesses dos docentes que realizaram os seus doutoramentos no
estrangeiro e, por outro, de erradicar potenciais situações discriminatórias
presentes e futuras, evitando desnecessários, morosos e dispendiosos processos
judiciais que resultem da exigência de reconhecimento específico. Tal exigência
deve, no imediato, ser suprimida, por forma a promover o bom funcionamento das
Instituições e adequar as suas práticas às boas práticas e à Lei vigente.
[1] Disponível em https://www.uc.pt/academicos/graus/reconhecimentos
[2] De realçar que a informação disponibilizada no site da DGES – Direção-Geral do Ensino Superior é confusa e pouco precisa, limitando-se à transcrição da letra da Lei. Tal transcrição devia ser acompanhada de interpretação rigorosa e tendente a revelar não só a referida letra, como a dilucidar o seu espírito.