
Inês Costa Queirós
Licenciada em Direito e Mestre em Direito Laboral pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Advogada.
Consulte a sua obra neste link.
Num cenário laboral em constante transformação, marcado pela digitalização dos processos e pela crescente recolha de dados pessoais, a relação entre empregador e trabalhador enfrenta novos desafios. Entre eles, destaca-se a questão do consentimento do trabalhador para o tratamento dos seus dados pessoais — tema que tem gerado ampla discussão no seio do direito laboral e da proteção de dados.
À primeira vista, a ideia de consentimento parece simples: uma manifestação livre e informada da vontade do titular dos dados. No entanto, quando transposta para o contexto laboral, onde existe uma relação de subordinação e um desequilíbrio de poder entre as partes, a sua validade levanta sérias dúvidas. Pode um trabalhador, verdadeiramente, recusar o tratamento dos seus dados sem receio de consequências? Pode o seu consentimento considerar-se livre, se dele depender a celebração ou manutenção do contrato de trabalho?
Durante a relação contratual o empregador tem legitimidade para tratar dos dados pessoais dos seus trabalhadores para as finalidades e com os limites definidos no Código do Trabalho (CT) e na legislação complementar. Contudo, é importante destacar que muitas dessas finalidades não se encontram expressas na lei, pelo que se torna necessário realizar uma análise casuística sobre a possibilidade desse tratamento.[1]
O tratamento de dados pessoais no contexto laboral desenvolve-se ao abrigo do artigo 6.º do Regulamento Geral Sobre a Proteção de Dados (RGPD) – salvo nas situações de tratamento de dados sensíveis. Ao analisar esses dados as entidades empregadoras devem salvaguardar o respeito pelos direitos fundamentais dos seus titulares, consagrados no Código do Trabalho (artigos 14.º a 22.º do CT) e no RGPD.[2]
Nos termos do artigo 6.º, n.º 1, al. a) do RGPD, o primeiro fundamento para a licitude do tratamento dos dados pessoais é o consentimento do titular dos mesmos.[3]
Conforme mencionado no 4.º, n.º 11 do RGPD, o consentimento do titular dos dados traduz-se
[n]uma manifestação de vontade, livre, específica, informada e explícita, pela qual o titular dos dados aceita, mediante declaração ou ato positivo inequívoco, que os dados pessoais que lhe dizem respeito sejam objeto de tratamento.
Não obstante, consciente da existência de relações contratuais nas quais existe um forte desequilíbrio entre as partes, como é o caso da relação laboral, o legislador comunitário determinou, no Considerando 43 do RGPD, que o consentimento
não deverá constituir fundamento jurídico válido para o tratamento de dados pessoais em casos específicos em que exista um desequilíbrio manifesto entre o titular dos dados e o responsável pelo seu tratamento, (…) [uma vez] que é improvável que o consentimento tenha sido dado de livre vontade em todas as circunstâncias associadas à situação específica em causa.[4]
Face ao exposto, a prestação do consentimento no âmbito laboral tem estado no centro dos debates juslaboralistas, no sentido de se criar um consenso sobre a legitimidade do mesmo nas relações entre empregadores e trabalhadores. Ainda assim, a tendência vai no sentido de que o consentimento prestado pelo trabalhador não é fundamento válido para o tratamento dos seus dados pessoais.[5] Entendem os autores que, face à sua relação de subordinação para com a entidade empregadora, o consentimento prestado pelo trabalhador não se traduz numa manifestação livre da sua vontade.[6] Como explicado por Teresa Coelho Moreira,[7]
As relações de trabalho são um exemplo paradigmático da existência de relações privadas desiguais não só no plano factual, mas também no plano jurídico. Na verdade, no plano factual, os sujeitos contraentes – trabalhador e empregador – não dispõem da mesma liberdade no que concerne à celebração do contrato nem à estipulação de cláusulas contratuais, o que origina o aparecimento de um desequilíbrio contratual que se acentua em alturas de desemprego generalizado. No plano jurídico, a conclusão do contrato de trabalho coloca o trabalhador numa situação de subordinação face ao empregador. Assim, figurando-se o domínio económico e social de uma parte, não se pode invocar, sem mais, o princípio da liberdade contratual para se poder escolher arbitrariamente a contraparte, ou seja, o trabalhador.
Ainda assim, temos alguma dificuldade em concordar com tal posição.
Como referimos, o consentimento deverá ser simultaneamente esclarecido e livre. Relativamente ao primeiro pressuposto, como comprovam os diferentes estudos estatísticos, a taxa de analfabetismo tem vindo a diminuir consideravelmente desde a década de 1960[8], sendo esta a geração mais bem formada dos últimos anos. É, pois, de concluir que uma comunidade devidamente formada tem as condições necessárias para compreender, quando devidamente informada, os pressupostos e o alcance da prestação do seu consentimento. A este propósito, refira-se que, em matéria de tratamento de dados, a entidade empregadora encontra-se obrigada, independentemente da (i)legitimidade da prestação de consentimento, de informar, de forma completa e precisa, os seus trabalhadores sobre o tratamento de dados pessoais.[9]/[10]
Se o primeiro requisito não gera grande contestação é no segundo, referente à liberdade de prestação do consentimento, que as águas se dividem.
Como sabemos, as relações contratuais são compostas por declarações de vontades que, ainda que opostas, convergem entre si para atingirem um objetivo. No direito laboral encontramo-nos perante uma relação em que, pela prestação de trabalho pelo trabalhador, existe uma contrapartida pecuniária paga pela entidade empregadora. No sentido de atingirem um entendimento e finalizarem o negócio, as partes mostram-se, frequentemente, dispostas a fazerem cedências mútuas.
Ora, o trabalhador devidamente informado (esclarecido) terá sempre o direito a aceitar ou recusar o tratamento dos seus dados sem que, para tal, tenha de ser prejudicado. Não obstante, é importante notar que os interesses das partes têm de convergir para que o contrato se forme. Note-se que não falamos dos interesses da entidade empregadora, mas sim de ambas as partes. Isto significa dizer que, recebendo uma oferta de trabalho cuja remuneração fique aquém das suas expectativas, terá o trabalhador toda a legitimidade para a recusar. Do mesmo modo, entendendo a entidade empregadora que o consentimento do trabalhador para o tratamento de determinados dados é fundamental para finalizar a contratação, tal não deve, nem pode, ser visto como um mecanismo de coação.[11] Se assim não fosse rumaríamos para um entendimento segundo o qual todo e qualquer consentimento prestado pelo trabalhador se encontra viciado por falta de liberdade o que, na prática, não acontece.[12]
De referir que esta abordagem incide sobretudo na prestação de consentimento pelo trabalhador numa fase pré-contratual. Ainda assim, é fundamental ter em consideração que o consentimento é prestado, com frequência, durante o desenrolar da relação laboral. Nessas situações adotamos um entendimento similar ao do European Data Protection Board[13] segundo o qual
Atendendo ao desequilíbrio de poder entre empregadores e empregados, estes só podem dar o seu consentimento livremente em circunstâncias excecionais, quando o ato de dar ou recusar o consentimento não produza quaisquer consequências negativas. (…) o consentimento só pode ser válido se o titular dos dados puder exercer uma verdadeira escolha e não existir qualquer risco de fraude, intimidação, coação ou consequências negativas importantes (p. ex. custos adicionais substanciais) se o consentimento for recusado. O consentimento não será dado livremente nos casos em que exista qualquer elemento de obrigatoriedade[14], pressão, incapacidade de exercício da livre vontade
Contudo, reforçamos a ideia de que o trabalhador não pode ser taxado como um mero submisso da entidade empregadora e que, portanto, é livre de prestar o seu consentimento sempre que assim o entender e se encontre devidamente esclarecido.
Todavia, a entidade empregadora deve salvaguardar-se, adotando mecanismos próprios para a prestação de consentimento pelo trabalhador (e.g., resposta a um questionário que comprove a compreensão do alcance do consentimento prestado, nos termos dos artigos 13.º e 14.º do RGPD). Isto porque, como explica Rodrigo Serra Lourenço[15]
no âmbito do RGPD, é o empregador, enquanto responsável pelo tratamento, que deve demonstrar ter legitimidade e causa de licitude válida para cada operação de tratamento de dados pessoais do trabalhador ao seu serviço.
Não obstante a ampla controvérsia que envolve a questão do consentimento, no contexto das relações laborais é sempre possível legitimar o tratamento de dados sem consentimento, desde que tal tratamento se revele necessário para a execução de um contrato no qual o titular dos dados seja parte – artigo 28.º, n.º 3, alínea b) do LPDP. Esta e outras matérias serão analisadas numa obra a publicar brevemente, que procurará oferecer uma perspetiva abrangente e prática sobre o tema.
[1] A título de exemplo veja-se o artigo 217.º, n.º 1, al. b) do CT, no qual o legislador impôs ao empregador o pagamento pontual do salário. Ainda que indiretamente, através desta obrigação foi criada uma finalidade legitima para o tratamento dos dados do trabalhador (o processamento salarial). Simão de Sant’ana e Vitorino Gouveia, O RGPD e os recursos humanos: guia prático para a conformidade, Almedina, junho 2022, p. 155.
[2] Teresa Coelho Moreira, Dados pessoais: breve análise do art. 28.º da lei n.º 58/2019, de 8 de agosto, Revista Questões Laborais (Ano XXVI, n.º 55, julho/dezembro 2019), 2020, p. 54.
[3] Joana Magina, Fundamentos de licitude do tratamento de dados pessoais em contexto laboral, In Maria do Rosário Palma Ramalho e Teresa Coelho Moreira, O regulamento geral de proteção de dados e as relações de trabalho – Estudos APODIT 6, Lisboa, AAFDL Editora, 2020, p. 58.
[4] É de notar que, antes da entrada em vigor do RGPD, o Parecer 15/2011 já referia que “[o] consentimento apenas será válido se a pessoa em causa puder exercer uma verdadeira escolha e não existir nenhum risco de fraude, intimidação, coacção ou consequências negativas importantes se o consentimento for recusado. Se as consequências do consentimento comprometerem a liberdade de escolha da pessoa, o consentimento não será livre”. Neste sentido, confirmar Grupo de Trabalho Artigo 29.º para a Proteção de Dados, Parecer 15/2011 sobre a definição de consentimento, WP187, adaptado em 13 de julho de 2011, p. 14.
[5] Refira-se, contudo, que existem autores que entendem que o único fundamento legitimo para o tratamento de dados pessoais na relação laboral é a prossecução de interesses legítimos da empresa, nos termos da al. b) do n.º 1 do artigo 6.º. Neste sentido, confirmar Teresa Coelho Moreira, Dados pessoais: breve análise do art. 28.º da lei n.º 58/2019, de 8 de agosto, Revista Questões Laborais (Ano XXVI, n.º 55, julho/dezembro 2019), 2020.
[6] No entendimento do Grupo de Trabalho do Artigo 29.º para a Proteção de Dados “pode haver situações em que seja possível ao empregador demonstrar que o consentimento foi dado livremente. Atendendo ao desequilíbrio de poder entre empregadores e empregados, estes só podem dar o seu consentimento livremente em circunstâncias excecionais quando o ato de dar ou recusar o consentimento não produza quaisquer consequências negativas”. Não obstante, temos sérias dúvidas da capacidade de prova da liberdade do consentimento por parte da entidade empregadora. Grupo de Trabalho do Artigo 29.º para a Proteção de Dados, Orientações relativas ao consentimento na aceção do Regulamento (UE) 2016/679, adotadas em 28 de novembro de 2017, última redação revista e adotada em 10 de abril de 2018, WP259 rev. 01, p. 8.
[7] Teresa Coelho Moreira, Dados pessoais: breve análise do art. 28.º da lei n.º 58/2019, de 8 de agosto, Revista Questões Laborais (Ano XXVI, n.º 55, julho/dezembro 2019), 2020, p. 54.
[8] Prodata, Taxa de analfabetismo segundo os Censos: total e por sexo, disponível para consulta aqui.
[9] Alexandre Sousa Pinheiro, Cristina Pimenta Coelho, Tatiana Duarte, Carlos Jorge Gonçalves e Catarina Pina Gonçalves, Comentário ao Regulamento Geral de Proteção de Dados, Coimbra, Edições Almedina, dezembro 2018, p. 323.
[10] Veja-se, a título meramente exemplificativo, a Deliberação/2019/494 da CNPD.
[11] Assumindo a licitude do tratamento desses dados nos termos do RGPD.
[12] A este propósito veja-se o artigo 28.º, n.º 3 da Lei da Proteção de Dados Pessoais (LPDP) segundo o qual o consentimento do trabalhador só constitui requisito de legitimidade (i) se resultar uma vantagem jurídica ou económica para o trabalhador ou (ii) se for necessário para a execução do contrato. Ora, parece-nos que seria mais coerente uma disposição legal segundo a qual seria proibido o consentimento em situações que acarretem uma desvantagem jurídica ou económica. Caso contrário, o trabalhador não teria legitimidade de prestar o seu consentimento para utilização da sua imagem em publicações do empregador (veja-se, a título exemplificativo, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 29.06.2021, proferido no âmbito do processo n.º 302/19.2T8MGL.C1, disponível para consulta em www.dgsi.pt), uma vez que não lhe traria qualquer vantagem jurídica ou económica, nem seria necessário para a execução do contrato (salvo se se tratasse de uma profissão cuja imagem é fundamental, e.g., modelo).
[13] Diretrizes EDPB 05/2020 relativas ao consentimento na aceção do Regulamento 2016/679, adotadas em 4 de maio de 2020, p. 10 e 11.
[14] Não obstante partilharmos do mesmo entendimento que o European Data Protection Board, cremos que a subsunção do consentimento prestado pelo trabalhador na fase pré-contratual a um consentimento não livre pela existência de um elemento de obrigatoriedade é excessiva. Isto porque, como referimos previamente, a relação de trabalho assenta numa combinação de interesses opostos, mas convergentes entre si. Se assumirmos que a exigência da prestação de consentimento para o tratamento de dados nessa fase é opressora vamos perpetuar condutas discriminatórias camufladas, segundo as quais o trabalhador será taxado de “pouco apto” para aquele posto quando, na verdade, os interesses das partes apenas não se mostram em harmonia.
[15] Rodrigo Serra Lourenço, Consentimento e acordo do trabalhador para tratamento dos seus dados pessoais – Comentário ao Acórdão da RC de 19/06/2021, In Revista do Centro de Estudos Judiciários, Privacidade e Dados Pessoais, 2023 – II, p. 163.