
Ricardo Tavares da Silva
Docente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Direito Penal).
Docente da Unidade Politécnica Militar do Instituto Universitário Militar (Criminologia).
Interpretação Artificial: Sobre a Possibilidade de os Novos Sistemas de Inteligência Artificial Fazerem Interpretação Jurídica é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponível no mercado desde 13 de Fevereiro de 2025.
Estamos em 2045. As últimas versões de Inteligência Artificial generativa dominam a maioria das atividades sociais, outrora realizadas por humanos. O receio de que as máquinas dominem os próprios humanos agudizou-se. Alguns partidos políticos incitam mesmo a um embargo generalizado ao uso de sistemas de Inteligência Artificial generativa, causando um alarme social tal que resulta, inclusivamente, em alguns episódios de “massacre tecnológico”, com raids de destruição de computadores. Já para a história ficou a chamada ‘noite de aço’ ou ‘noite do aço partido’, na qual milhares de máquinas e empresas de tecnologia foram atacadas. Um manifesto anti-IA é colocado em circulação, contando com centenas de assinaturas de grandes personalidades.
Invoca-se, aí, que todos os sistemas de Inteligência Artificial, já começando no machine learning e continuando no deep learning e nas redes neuronais, não possuem os traços fundamentais que caracterizam a natureza humana. Especial preocupação foi demonstrada com o uso de tais sistemas nos tribunais. Efetivamente, começaram a proliferar os juízes-robots, já tendo alcançado a esfera criminal. De acordo com os signatários, a Inteligência Artificial é incapaz de conhecer as normas jurídicas – ainda que seja capaz de proceder à interpretação dos textos legais –, porque é incapaz de proceder a valorações. De um modo geral, faltar-lhe-á uma mente, capaz de conhecer, avaliar e decidir em consonância com essa informação. Também foi demonstrada desconfiança relativamente ao “processo de decisão”, já que este permanece opaco (não se tem acesso ao algoritmo decisório: problema da caixa negra).
Do outro lado, igualmente radical, formou-se um movimento pró-IA, absolutamente convicto de que as mais recentes versões de Inteligência Artificial generativa já atingiram o patamar da consciência. Possuem mente, ainda que o seu suporte não seja biológico. São mentes artificiais, não mentes naturais. Mas são mentes. Também pensam, sentem e desejam. Mais especificamente, também são capazes de conhecer normas e de as aplicar aos casos concretos que surgem em tribunal. Várias manifestações de defesa do uso de sistemas de Inteligência Artificial generativa foram realizadas, transmitindo-se a mensagem principal de que os humanos não devem temer as máquinas porque estas se encontram ao seu serviço.
O certo é que as máquinas, com um acervo de informação cada vez maior e um treino cada vez mais apurado, são bastante bem-sucedidas em todas essas atividades sociais nas quais foram utilizadas. Nomeadamente, os processos judiciais começaram a ser encerrados a um ritmo estonteante, tendo as sentenças um nível técnico e argumentativo tão ou mais sofisticado do que as anteriores sentenças humanas. Também começaram a surgir rumores, dentro dos círculos jurídicos, de que as mesmas são, inclusivamente, justas. E isto deixa os juristas – incluindo os juízes aposentados – desconcertados.
Será que isso significa que as máquinas possuem mentalidade? São os juízes-robot como os juízes humanos, mas com capacidades mentais superiores? Será que essas últimas versões de Inteligência Artificial generativa alcançaram mesmo o patamar da consciência, mas estão a arquitetar um plano de domínio dos humanos? Se os processos envolvidos nas “sentenças artificiais” não envolverem perceções, emoções, raciocínios e volições, como podem as mesmas ser tecnicamente corretas e, até, justas?
Estas são algumas das questões a que se visa dar resposta no ensaio Interpretação Artificial. Sobre a Possibilidade de os Novos Sistemas de Inteligência Artificial Fazerem Interpretação Jurídica. Discute-se, aí, a possibilidade conceptual – abstraindo da possibilidade tecnológica – de a Inteligência Artificial conhecer as normas de Direito e de as aplicar na resolução de casos concretos, pensando especialmente nos sistemas de Inteligência Artificial generativa que surgiram nas últimas décadas, mas sendo as reflexões generalizáveis a qualquer versão aprimorada dos mesmos.