João Leal Amado
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Teresa Coelho Moreira
Doutora em Direito. Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho.
Membro integrado do JusGov – Centro de Investigação em Justiça e Governação da Escola de Direito da Universidade do Minho e coordenadora do Grupo de Investigação em Direitos Humanos do mesmo
O tribunal da Relação de Guimarães continua a produzir abundante e interessante jurisprudência sobre a intrincada questão da qualificação do contrato que liga os estafetas à respetiva plataforma digital. Outubro tem sido fértil em decisões deste tribunal – duas tomadas no dia 3, sobre as quais tivemos ocasião de fazer uma breve reflexão neste Observatório (ver o nosso texto “Plataformas digitais e estafetas: a saga continua!”), e nada menos do que cinco arestos, todos datados de 17 do mesmo mês e todos reconhecendo a existência, em cada caso, de um autêntico contrato de trabalho entre os estafetas e a plataforma digital para a qual prestam serviço. Resultado final: 5-0, uma manita, na gíria do futebol, em que as plataformas foram goleadas.
Os golos, porém, foram diferentes. Três deles foram, dir-se-ia, resultantes de lances de bola corrida, vale dizer, foram situações em que o tribunal entendeu, mal ou bem (cremos que mal), que a presunção de laboralidade vertida no artigo 12.º-A do Código do Trabalho não seria aplicável ao caso, por questões de índole temporal, mas, ainda assim, isso não impediu o tribunal de analisar a concreta relação jurídica apresentada, ponderando judiciosamente os diversos elementos resultantes da dinâmica relacional estabelecida entre os sujeitos e, baseando-se no tradicional método tipológico, concluindo pela existência, in casu, de um genuíno contrato de trabalho.
Neste sentido, veja-se o teor do sumário do Acórdão relatado pela Desembargadora Maria Leonor Barroso:
«I – Ao caso não é aplicável a presunção de laboralidade em trabalho suportado em plataforma digital (Lei 13/2023, de 3 de abril), atenta a data do início do vínculo contratual.
II – O peso e a valoração dos indicadores de laboralidade variam e devem ser sopesados no quadro específico do tipo de atividade em causa e devem adaptar-se às novas formas de organização do trabalho, em decorrência da revolução digital e automação.
III – A subordinação jurídica, traço característico do contrato de trabalho, é atualmente entendida como a sujeição da atividade prestada pelo trabalhador a parâmetros importantes ditados pelo empregador, que conforma a execução do trabalho, embora o possa fazer de modo menos explícito e evidente em determinados sectores. O trabalhador está inserido numa organização e ciclo produtivo alheio, não controlando aspetos essenciais, incluindo a livre negociação do preço.
IV – A ausência de certos indícios tradicionais não é incompatível com o reconhecimento do vínculo laboral, mormente horário e local de trabalho, exclusividade e instrumentos de trabalho que se afigurem secundários.
V – A ré EMP01… não é uma mera intermediária tecnológica, mas sim uma empresa que através de plataforma digital explora um negócio de recolha e entrega de mercadorias, com clientes que são seus, ditando as condições essenciais da sua execução, mormente cria e organiza o sistema de processamento do serviço, desde o princípio ao fim.
VI – São indicadores de laboralidade:
a) o exercício do poder de direção através da padronização e centralização na ré EMP01… de todo o ciclo produtivo, com recurso ao seu software onde se define o processamento referente às transações, à atribuição de trabalho aos estafetas, à fixação dos preços, aos pagamentos, tudo a indiciar inserção em “organização” alheia;
b) a detenção e gestão pela ré de instrumento essencial à atividade que é seu software, infraestrutura com inúmeras funcionalidades, ao qual os estafetas têm necessariamente de recorrer e de utilizar, e sem o qual não poderiam trabalhar;
c) o exercício do poder sancionatório evidenciado pela possibilidade de a ré desligar o estafeta do acesso à App caso este “viole as suas obrigações contratuais”, o qual não pode deixar de como tal ser entendido, atenta a sua amplitude e graves consequências (suspensão ou cessação da atividade);
d) a fixação pela ré dos critérios essenciais da retribuição, mormente os seus limites;
e) a aparência da possibilidade de o “estafeta” livremente se poder fazer substituir num terceiro, quando tem de o fazer em outro estafeta com conta ativa, o qual tem já ligação à ré e sempre poderia aceitar o serviço;
f) a aparência de liberdade negocial evidenciada na necessidade de aceitação automática, sem negociação, de contratos de adesão padronizados, repletos de cláusulas extensas, pouco inteligíveis, destituídas de clareza e simplicidade, a demonstrar uma supremacia de partes que não se adequa ao conceito de trabalho autónomo;
g) a dependência económica.
VII – A inexistência de dever de exclusividade em contratações e actividades despersonalizadas, onde o prestador é admitido “por via digital”, com criação de conta e inserção de dados, sem exigência de especiais “skills” e requisitos, não constitui, por si, indicador de trabalho desenvolvido com autonomia».
Veja-se, igualmente, o sumário do Acórdão relatado pela Desembargadora Vera Sottomayor:
«I– Tendo presente que a relação contratual estabelecida entre a Ré e a AA se iniciou em data não concretamente apurada do ano de 2020, (data de inscrição na plataforma da ré) sem que da factualidade provada resulte qualquer modificação da relação estabelecida entre as partes após essa data, é de concluir que a “nova” presunção de laboralidade prescrita no artigo 12.º-A, n.º 1, do C.T., não é aplicável ao caso dos autos.
II –O contrato de trabalho caracteriza-se essencialmente pelo estado de dependência jurídica em que o trabalhador se coloca face à entidade empregadora e que resulta da circunstância do trabalhador se encontrar inserido na organização produtiva do empregador e submetido à autoridade e direção deste, enquanto na prestação de serviço não se verifica essa subordinação, considerando-se apenas o resultado da atividade.
III – Atenta a dificuldade em determinar a subordinação jurídica importa recorrer ao método indiciário de qualificação do contrato devendo concluir-se pela existência de um contrato de trabalho quando se verifiquem um conjunto de circunstâncias ou caraterísticas que sopesados nos permitam concluir pela subordinação de quem presta o serviço perante o beneficiário da prestação.
IV –No que respeita às novas formas de trabalho através das plataformas digitais alguns dos índices clássicos da subordinação jurídica tais como a propriedade dos equipamentos de trabalho, a existência de um horário de trabalho, o local de trabalho determinado pelo beneficiário e o pagamento da retribuição certa, são indícios pouco operacionais para enfrentar o problema da qualificação da relação contratual que se estabelece entre o estafeta e a plataforma, que não devem por isso ser valorizados porque manifestamente não se adequam a este tipo de atividade. Mas se a falta da verificação destes índicos for compensada por outros indícios reveladores da subordinação do trabalhador perante quem explora e gere a plataforma, (tais como estar sujeito a ordens ou instruções, designadamente a regras relativas à prestação, se a respetiva prestação for controlada em termos de qualidade pela plataforma ou se o trabalhador poder vir a ser penalizado) o contrato pode e deve ser reconhecido como de trabalho.
V – Sopesando todos os índices analisados temos de concluir pela verificação da subordinação jurídica, uma vez que que a estafeta presta a sua atividade de entrega e recolha de mercadorias, em negócio alheio, não tem clientes, nem fixa preços, nem tem qualquer tipo de responsabilidade perante o cliente, está inserida na organização de trabalho daquela plataforma digital, sujeita às diretrizes organizativas determinadas pela empresa que a gere e impostas, desde logo, no contrato de adesão que teve de assinar para poder desempenhar a sua atividade, está sujeita ao poder sancionatório detido pela EMP01…, (nas condições por ela ditadas, com grande amplitude, pode desativar ou suspender a conta da estafeta, impedindo-a de exercer a sua atividade), estando ainda sujeita a formas de controlo e de avaliação algorítmica por parte da plataforma (avaliação do cliente).
Tal é o que basta para reconhecermos a natureza laboral do vínculo mantido entre a estafeta e a Ré, pois para além daquela estar inserida na estrutura organizativa da Ré, está também sujeita à sua autoridade».
Por último, veja-se o sumário do Acórdão relatado pelo Desembargador Antero Veiga:
«No que respeita à relação entre estafeta e plataforma, o conceito de “subordinação” deve ser visto à luz da nova realidade, sendo de relevar a inserção do estafeta na estrutura económica da ré, na organização produtiva encarnada pela plataforma, e a inexistência de uma estrutura organizada por parte do “estafeta” e a sua dependência dessa organização, quer quanto ao trabalho, quer económica.
A existência ou não de uma relação laboral, face à inadequação da presunção estabelecida no artigo 12º e se se considerar inaplicável o artigo 12º-A por ser anterior à vigência desta a relação ajuizada, pode lograr-se com recurso ao método indiciário, tendo em atenção as especificidades desta nova relação e da nova realidade em que a mesma surge.
A ausência de certos indícios tradicionais, como os relativos a horário e assiduidade, não é incompatível com o reconhecimento do vínculo laboral, se o trabalho é desenvolvido no âmbito de uma organização, obedecendo a regras ditadas por esta, em vários aspetos relevantes da relação, designadamente no que respeita ao exercício das tarefas, e dependendo economicamente, ainda que apenas em parte, dos rendimentos auferidos».
Diferentemente, nos outros dois arestos o tribunal já considerou ser aplicável a presunção estabelecida no artigo 12.º-A do Código do Trabalho, concluindo então, mais facilmente, pela existência de contrato de trabalho. Nestes termos, veja-se o Acórdão relatado pelo Desembargador Francisco Sousa Pereira, em cujo sumário se lê:
«I – Verificando-se três caraterísticas das previstas nas diversas alíneas do art. 12.º-A do CT, está preenchida a presunção de existência do contrato de trabalho, sem prejuízo de poder vir a ser ilidida.
II – Operando a referida presunção de laboralidade cabe à ré a prova do contrário, nos termos previstos no art. 350.º/2 do CC e no n.º 4 do art. 12.º-A do CT, não lhe bastando a contraprova destinada a tornar duvidoso o facto presumido».
No mesmo sentido, por último, vai o sumário de um outro acórdão relatado, no mesmo dia, pelo Desembargador Antero Veiga:
«A norma do artigo 12-A do CT pretende responder aos desafios levantados pela denominada “revolução digital”, que implicou novas formas de trabalho, obedecendo a parâmetros quantitativa e qualitativamente diversos dos tradicionais, que eram pressuposto da norma do artigo 12º do CT.
Assim, porque diferentes são as realidades a que cada uma delas pretende regular, não ocorre violação do princípio da igualdade, não estando a norma do artigo 12-A ferida de inconstitucionalidade.
Preenchidos dois dos factos-índice referenciados no artigo 12-A do CT, é de presumir a existência de uma relação de natureza laboral entre a plataforma digital e o estafeta.
O conceito de “subordinação” deve ser visto à luz da nova realidade, sendo de relevar a inserção do estafeta na estrutura económica da ré, na organização produtiva encarnada pela plataforma, e a inexistência de uma estrutura organizada por parte do “estafeta” e a sua dependência dessa organização, quer quanto ao trabalho, quer económica.
Importa verificar, em cada caso, da real importância e relevo prático, das várias “liberdades” constantes dos termos de utilização da plataforma, concedidas aos estafetas».
Em suma, se aqueles três primeiros arestos marcaram golos em lances de bola corrida, estes dois foram marcados de grande penalidade, aplicando a presunção legal de laboralidade vertida no artigo 12.º-A. Estas decisões judiciais assumem, evidentemente, grande relevo, demonstrando duas coisas muito importantes: i) que o tribunal não necessita de se apoiar em qualquer presunção legal para lograr uma correta qualificação do contrato que liga dada plataforma digital aos seus estafetas, pois tal pode ser conseguido com recurso a uma judiciosa ponderação da factualidade em apreço, aplicando o velho método indiciário, assim se obtendo uma visão holística daquela relação jurídica; ii) que, em todo o caso, a presunção legal não deixa de ser útil, aliviando o encargo probatório a cargo do prestador de atividade e simplificando a tarefa do tribunal – registe-se, a este propósito, que dois dos arestos em que a presunção não foi tida por aplicável tiveram o voto de vencido do Desembargador Francisco Sousa Pereira, mas, no aresto que veio a ser relatado por este Desembargador, a conclusão foi no sentido da existência de contrato de trabalho, precisamente porque (e, cremos, só porque) nesse caso a presunção legal já foi tida como aplicável.
Ou seja, dir-se-á, o valor da presunção é relativo, não apenas porque a mesma pode ser ilidida, mas também porque o tribunal dispõe de outras ferramentas para qualificar corretamente a relação jurídica em apreço. Mas a presunção legal não é inútil, é bem mais fácil, em regra, marcar um golo de grande penalidade do que em lance de bola corrida…
Seja como for, anunciando-se ser intenção do governo a de “revisitar” a presunção de laboralidade hoje constante do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, importa relembrar que a consagração de uma presunção legal de laboralidade no âmbito do trabalho em plataformas digitais será obrigatória, a breve trecho, para o Estado português, em função da já aprovada Diretiva da União Europeia relativa à melhoria das condições de trabalho nas plataformas digitais. Assim, segundo se lê no artigo 4.º, n.º 1, da Diretiva, os Estados-Membros deverão dispor de procedimentos adequados e eficazes para verificar e assegurar a correta determinação do estatuto profissional das pessoas que trabalham nas plataformas, a fim de verificar a existência de uma relação de trabalho, nomeadamente através da aplicação da presunção de relação de trabalho nos termos do artigo 5.º. E o artigo 5.º, n.º 2, prevê que os Estados-Membros estabelecerão uma presunção legal ilidível efetiva de emprego que constitua uma facilitação processual em benefício das pessoas que trabalham nas plataformas, assegurando que essa presunção legal não tenha por efeito aumentar o ónus dos requisitos para as pessoas que trabalham nas plataformas, ou para os seus representantes, nos processos que determinem o seu estatuto profissional.
Vale dizer, acabar com a figura da grande penalidade não será possível, para o nosso legislador, porque da diretiva europeia resulta o dever, e não a mera faculdade, de cada Estado membro instituir uma presunção legal de laboralidade em sede de trabalho nas plataformas digitais. Seria até muito estranho que, tendo-se Portugal antecipado e criado tal presunção legal antes mesmo de tal resultar do direito europeu (mas, note-se, em moldes que se encontram em perfeita sintonia com o disposto na referida diretiva), agora viesse a revelar-se refratário, eliminando uma presunção legal que a diretiva manda criar…
De todo o modo, estas decisões da Relação de Guimarães demonstram que, mesmo que o árbitro faça vista grossa e não assinale os penáltis, os golos podem sempre ser marcados de outra forma, quiçá mais rendilhada e trabalhosa, em lances de bola corrida – lances que, em definitivo, os espetadores apreciam ainda mais do que os simples golos apontados da marca de grande penalidade. Ainda assim, convenhamos, os penáltis são para assinalar!