João Leal Amado

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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Teresa Coelho Moreira

Doutora em Direito. Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho.
Membro integrado do JusGov – Centro de Investigação em Justiça e Governação da Escola de Direito da Universidade do Minho e coordenadora do Grupo de Investigação em Direitos Humanos do mesmo

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Como seria de esperar, depois de a “Agenda do Trabalho Digno” ter vindo introduzir no Código do Trabalho (CT) uma nova presunção de laboralidade para o trabalho prestado no âmbito das plataformas digitais, habilitando a Autoridade para as Condições de Trabalho e o Ministério Público a intervirem no processo de reconhecimento da existência de um contrato de trabalho entre a plataforma e os seus prestadores de atividade, as decisões judiciais vão-se multiplicando. E se, em setembro, a Relação de Évora decidiu, em moldes para nós bastante discutíveis, não reconhecer a existência de contratos de trabalho no caso de que cuidou – ainda que tenha aplicado a referida presunção legal, que teve por ilidida[1] –, já neste mês de outubro coube à Relação de Guimarães proferir dois arestos que, por vias distintas e tendo aliás distintas relatoras, vieram afirmar justamente o oposto, reconhecendo a existência de contratos de trabalho entre uma determinada plataforma digital e os respetivos estafetas.

Ambos os arestos foram proferidos no dia 3 de outubro, mas a abordagem da situação foi bastante diferente nos dois casos. Com efeito, num deles o tribunal considerou que a presunção de laboralidade, consagrada no artigo 12.º-A do CT após a entrada em vigor da Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, não seria aplicável, em virtude de a relação contratual em causa ter tido a sua génese antes dessa data, pelo que a presunção não lograria aplicar-se a tal relação. Ainda assim, desprovido do apoio da presunção legal, o tribunal enfrentou a difícil tarefa de qualificação daquela relação contratual, com apoio no tradicional método indiciário, e concluiu pela existência de um contrato de trabalho. Já no outro caso, pelo contrário, a presunção legal foi aplicada, o tribunal entendeu que se verificavam três das características enunciadas no n.º 1 do artigo 12.º-A, sendo que a plataforma digital não conseguiu ilidir essa presunção, o que levou o tribunal a concluir, também, pela existência de contrato de trabalho. Vejamos.

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O primeiro aresto foi relatado pela Desembargadora Maria Leonor Barroso, lendo-se no respetivo sumário:

«I – Ao caso não é aplicável a presunção de laboralidade em trabalho suportado em plataforma digital – Lei 13/2023, de 3 de abril.

II – O traço característico do contrato de trabalho é a subordinação jurídica, atualmente entendida como a sujeição da atividade prestada pelo trabalhador a parâmetros importantes ditados pelo empregador, que assim gere e conforma a execução do trabalho. O trabalhador não exerce atividade segundo a sua própria organização, mas sim inserido num ciclo produtivo de trabalho alheio e em proveito de outrem.

III – O peso e a valoração dos diversos indicadores de laboralidade variam e devem ser sopesados em função do quadro específico e do modo como se organiza a atividade em causa.

IV – A revolução digital, a inteligência artificial, a automação, e em especial a atividade prestada em plataforma digital, transformaram as relações e a forma de organizar de trabalho. O distanciamento destas realidades relativamente aos modelos clássicos demanda uma abordagem diferente da tradicional na distinção entre trabalho autónomo e trabalho dependente.

V – Nessa perspetiva, a ausência de certos indícios tradicionais não é incompatível com o reconhecimento do vínculo laboral, mormente horário e local de trabalho, exclusividade e instrumentos de trabalho que se afigurem subalternizados.

VI – A ré EMP01… não é uma mera intermediária tecnológica, mas sim uma empresa que através de plataforma digital explora um negócio de recolha e entrega de mercadorias e dita as condições essenciais da sua execução, mormente cria e organiza o sistema de processamento do serviço. Os clientes são seus e é a ré a fixar as condições e os critérios que mais determinam o preço.

VII – O essencial do circuito produtivo está padronizado e centralizado na ré EMP01… através da gestão da plataforma informática, onde se processam as transações (compras e vendas), onde a ré distribui as entregas de mercadorias pelos estafetas com recurso ao uso de GPS da App, onde se insere o preço/taxa das entregas, etc.

VIII – A infraestrutura essencial da atividade em causa é o software gerido pela ré, sem a qual o negócio não se processaria. A propriedade do smartphone, motorizada e mochila por parte dos estafetas é acessória e secundária.

IX – A ampla possibilidade que a ré EMP01… tem de desligar o estafeta do acesso à App caso este deixe “de cumprir ou atingir os requisitos destes Termos” representa o exercício de um poder sancionatório, atenta a sua amplitude e consequências (deixa de receber pedidos de entregas, leia-se suspensão/cessação da atividade).

X – Constitui indicador de laboralidade o facto de os critérios essenciais de determinação da retribuição serem fixados pelo beneficiário da atividade.

XI – É meramente aparente a possibilidade de o “estafeta” se fazer substituir, quando tem de o fazer em outro “estafeta “com conta ativa” na plataforma eletrónica da ré, não sendo este um terceiro ao já fazer parte da “pool” da ré.

XII – O modo de contratação nas plataformas digitais, que implica aceitação automática, sem negociação, de contratos de adesão completamente padronizados, repletos de cláusulas extensas e herméticas, demonstrando uma supremacia de partes, não se adequa ao conceito de trabalho autónomo, que por princípio pressupõe negociação paritária».

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Em moldes algo telegráficos, cumpre-nos começar por dizer que não acompanhamos o acórdão, na parte em que este considera inaplicável ao caso sub judice a presunção vertida no artigo 12.º-A, em virtude de a relação contratual em causa ter nascido antes da entrada em vigor desta presunção legal. Com efeito, em sede de aplicação no tempo, é sabido que, em regra, as leis do trabalho, não sendo retroativas (isto é, não pretendendo ter efeitos ex tunc, sobre o passado), são retrospetivas (ou seja, aplicam‑se ao conteúdo e efeitos futuros de relações jurídicas criadas no passado, mas ainda existentes). Ora, não vemos razões para que assim não seja, no tocante à presunção de laboralidade. E note-se, de resto, que a Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à melhoria das condições de trabalho nas plataformas digitais vai exatamente nesse sentido, esclarecendo, no tocante ao âmbito temporal da presunção legal: «No que diz respeito às relações contratuais que entraram em vigor antes da data estabelecida no artigo 29.º, n.º 1 [data da transposição da diretiva], e estejam ainda em vigor nessa data, a presunção legal a que se refere o presente artigo só é aplicável ao período iniciado a partir dessa data» (artigo 5.º, n.º 6). Ou seja, a presunção só se aplicará para o futuro, mas abrangerá os contratos celebrados antes de a mesma ser criada, desde que tais contratos ainda subsistam após a sua criação.

De qualquer forma, ainda que sem beneficiar da alavanca representada pela presunção de laboralidade, o tribunal não deixou de vincar a necessidade de caracterizar o vínculo em causa com recurso ao bem conhecido método indiciário, criado ao longo do tempo pela jurisprudência, que consiste no confronto dos factos apurados com uma grelha de tópicos ou indícios de qualificação. E, com toda a pertinência, o tribunal concluiu: «Está hoje definitivamente ultrapassada a ideia de subordinação associada à emissão de ordens evidentes, diretas e sistemáticas, por força da crescente autonomia técnica dos trabalhadores e das atuais formas de organização e de interação laboral. O traço decisivo é o chamado elemento organizatório conforme espelhado na fórmula legal que refere atividade laboral como sendo a prestada “no âmbito de organização e sob a autoridade” de outrem – 11º do CT/09. Donde, o fulcro da subordinação consistirá no facto de o prestador não trabalhar segundo a sua própria organização, mas sim inserido num ciclo produtivo de trabalho alheio e em proveito de outrem, estando adstrito a observar os parâmetros de organização e funcionamento definidos pelo beneficiário». Estamos inteiramente de acordo! 

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O segundo aresto foi relatado pela Desembargadora Vera Maria Sottomayor, tendo o seguinte sumário:

«I– Verificando-se as caraterísticas previstas nas alíneas a), b) e e) (esta identificada na decisão recorrida) do n.º 1 do art.º 12-A do CT, está assim preenchida a presunção de existência do contrato de trabalho, sem prejuízo de poder vir a ser ilidida.

II – O estafeta presta a sua atividade de entrega e recolha de mercadorias, para uma organização produtiva que não é sua, mas sim da empresa que gere a plataforma, já que a partir do momento em que se liga à plataforma ele passa a integrar um serviço por ela organizado que não se limita a encomendar a recolha e a entrega da mercadoria, mas estabelece a forma como o deve fazer, controlando diversos aspetos através da aplicação, decidindo quanto ao preço, a forma de pagamento e a taxa de entrega, nada recebendo o estafeta, em regra, do cliente, ficando o processo de faturação a cargo da plataforma.

III – O estafeta está sujeito a diversas formas de controlo e de avaliação algorítmica por parte da plataforma, o que não pode deixar de ser considerado uma manifestação do poder de direção e disciplinar que a empresa que gere a plataforma exerce para com o AA, o que evidencia, sem margem para dúvida, a dependência própria da relação laboral, que a Ré não logrou ilidir».

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Neste caso, o tribunal aplicou mesmo a presunção legal, tendo considerado que se verificavam características previstas em três das seis alíneas do n.º 1 do artigo 12.º-A do CT, pelo que o tribunal tirou daí a ilação de que se estava perante um contrato de trabalho. Trata-se, é claro, de uma presunção relativa, que pode ser ilidida nos termos gerais, como se retira do disposto no n.º 4 do mesmo artigo. Mas o tribunal, ponderando os factos dados como provados, concluiu: «Importa salientar que perante as novas formas de trabalhar através das plataformas digitais alguns dos indícios clássicos de subordinação jurídica, não são de considerar operacionais, nem são de valorizar, pois só por si não afastam o novo tipo de dependência resultante de serviços prestados via plataforma digital. Entre os mencionados indícios estão os relativos ao local de trabalho, à propriedade dos instrumentos de trabalho e equipamentos, ao horário de trabalho determinado pelo beneficiário da atividade e o pagamento de retribuição certa, porque efetivamente não se adequam à atividade desempenhada por estes trabalhadores. Nesta nova era digital temos um trabalhador subordinado com contornos distintos dos tradicionais, mas ainda assim dependente e subordinado na forma como desenvolve a sua atividade, sendo certo que a ausência dos mencionados indícios é compensada por outros que são reveladores da subordinação perante a empresa que gere a plataforma, tais como o facto do estafeta estar inserido dentro da estrutura organizativa da empresa que gere a plataforma, recebendo ordens e instruções através do procedimento padronizado que se mostra instituído, estando também sujeito ao regime sancionatório por aquela implementado».

Estamos, também, inteiramente de acordo com estas afirmações. Importa lembrar que, do ponto de vista probatório, a prova por presunção ilidível assume o valor de prova plena, apenas podendo ser afastada mediante a prova do contrário, ou seja, de que o facto presumido não se verificou ou de que se verificou outro com ele incompatível, não bastando a contraprova, ou seja, a prova que gere a simples dúvida no espírito do julgador. Os tribunais deverão, por isso, ser exigentes quanto a esta prova em contrário, não se bastando com a simples presença de elementos factuais que gerem dúvida na mente do julgador. A presunção legal serve, precisamente, para isso, para guiar o tribunal nos casos de dúvida, estabelecendo que quem tem a seu favor a presunção escusa de provar o facto (in casu, o contrato) a que ela conduz.

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Cremos, pelo exposto, que, na sua diversidade argumentativa, estes dois recentes arestos do Tribunal da Relação de Guimarães merecem aplauso. Eles demonstram, por um lado, que a presunção legal pode ser um auxiliar importante, no plano probatório, para conseguir aquilo que mais interessa neste domínio, a saber, para lograr uma correta determinação do estatuto profissional das pessoas que trabalham nas plataformas, conforme previsto na Diretiva da União Europeia que a breve trecho entrará em vigor. Mas estas decisões judiciais também demonstram que a presunção legal, conquanto ajude, não é indispensável para alcançar esse resultado. A determinação da existência de uma relação de trabalho pode ser feita pelo tribunal, baseando-se sobretudo nos factos relativos à execução efetiva do trabalho, nomeadamente a utilização de sistemas automatizados de monitorização ou tomada de decisões na organização do trabalho nas plataformas digitais, independentemente da forma como a relação é classificada em qualquer contrato que tenha sido celebrado entre as partes envolvidas (artigo 4.º, n.º 2, da Diretiva). Trata-se, afinal, de reafirmar a vitalidade, em plena era digital, do velho princípio da primazia da realidade, segundo o qual “os contratos são o que são, não o que as partes [máxime, as plataformas] dizem que são”.

Veremos o que nos reservam os próximos episódios desta estafante saga dos estafetas.


[1] Veja-se o nosso texto, também publicado neste Observatório Almedina, «As plataformas digitais, a presunção de laboralidade e a respetiva ilisão: nótula sobre o Acórdão da Relação de Évora, de 12/09/2024».