Milena Silva Rouxinol

Professora Auxiliar na Faculdade de Direito da Escola do Porto da Universidade Católica Portuguesa.


Direito Antidiscriminação nas Relações Laborais é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado a partir de 7 de Março de 2024.

Consulte a obra neste link.


É da natureza do Direito ajustar-se evolutivamente não apenas à perceção coletiva do que é justo, mas, desde logo, à multiplicação dos desafios em que se vai desdobrando esse quesito, enquanto pulsa a interação social. É assim, em particular, com o Direito das pessoas; é assim, em particular, com aquelas das suas zonas que mais imediatamente refletem a ideia do Bem. É assim, pois, muito visivelmente, com o Direito Antidiscriminação – por isso que tão rico, por isso que apaixonante, crescentemente diverso, mas também crescentemente profundo.

Neste universo, mesmo que nos movamos no estrito domínio das relações laborais, convive o problema da trabalhadora que é despedida, ainda que sob a máscara de um “decréscimo de rendimento”, por manter uma relação amorosa com um sindicalista e na sequência de este ter apresentado, nessa qualidade, um conjunto de reivindicações ao empregador (como decidiu, em agosto de 2019, o Tribunal Superior de Justicia deLas Palmas), com o daquele que também foi dispensado devido à sua firme convicção, não partilhada pela entidade empregadora, sobre a necessidade de lutar contra as alterações climáticas severas (assim entendeu, no Reino Unido, o Employment Appeal Tribunal, em 2009), ou ainda o daqueloutro que terá sido alvo de um despedimento discriminatório em razão da sua opção pelo veganismo (https://www.theguardian.com/money/2020/mar/02/ethical-vegan-jordi-casamitjana-settles-tribunal-case-against-charity).

O primeiro caso situa-se, dir-se-á, no domínio dos mais típicos fatores de discriminação laboral: que será mais proverbial do que um comportamento retaliatório advindo da atuação sindical de um trabalhador? O que o torna, do ponto de vista dogmático, muito interessante é a circunstância de o tribunal ter feito apelo à figura da discriminação por associação – o sujeito discriminado não é o pertencente à categoria protegida, aquele em que reside o fator com base no qual se proíbe a diferenciação, no caso, ter a qualidade de sindicalista, mas outrem, que se lhe associa –, uma construção pretoriana, que o Tribunal de Justiça (da União Europeia) encetou no caso Coleman, já em 2008, a respeito de uma trabalhadora que se considerou ter sido vítima de discriminação em razão da deficiência – não dela, mas do filho menor ao seu cuidado. A propósito deste caso, a doutrina vem perguntando, aliás, se ele não poderia ter sido perspetivado como uma hipótese de discriminação indireta com base no sexo: estatisticamente, são as mulheres quem, na larga maioria dos casos, assume as funções de cuidado de dependentes; por conseguinte, a prática de atos de desfavor laboral contra cuidadores impenderia, preferencialmente, sobre elas. A lógica seria, portanto, similar à seguida pelo mesmo tribunal no caso CJ, de 2022: a existência, no ordenamento espanhol, de um regime de apoio no desemprego menos favorável para os trabalhadores domésticos do que para os demais, parece configurar discriminação indireta das mulheres, que compõem a quase totalidade da força de trabalho doméstica. A decisão Coleman adotada teve, em todo o caso, o inquestionável mérito de ter desvelado uma modalidade de ato discriminatório até então incaracterístico e, seguramente, deveras profícuo.

Nos demais casos mencionados, é curiosa a forma como se alargou o âmbito do fator de discriminação em que se fizeram assentar os atos ilícitos ali em causa. Quer a crença nos malefícios das alterações climáticas, quer a opção por um estilo de vida vegano, ambas motivo de uma atitude persecutória relativamente aos seus defensores, se integraram, do ponto de vista jurídico, no conceito de belief, constante da lista de motivos proibidos de discriminação, de acordo com o Employment Equality (Religion or Belief) Regulations 2003.

Na verdade, esse fator de discriminação – a convicção, a crença –, a despeito da elasticidade que, como se vê, se lhe vai associando, tem estado no cerne de recorrentes decisões do Tribunal de Justiça (da União Europeia) a respeito de atos de desfavor assentes naquele que será o primacial valor sob tutela quando se apela àquele significante, a crença religiosa. Desde que, em 2017, se pronunciou sobre os casos Achbita ou Bougnaoui, ambos versando sobre despedimentos de trabalhadoras muçulmanas, por usarem um véu islâmico, aquele Tribunal já se deparou com questões similares diversas vezes. Ainda recentemente, no caso L. F., se pronunciou a respeito da recusa de uma candidatura a um estágio pelo facto de a trabalhadora, igualmente muçulmana, apesar das suas qualificações para o cargo, ter declarado que não deixaria de cobrir a cabeça, se não com um véu, com outro adereço. Independentemente da bondade da posição do Tribunal – pela minha parte, tenho amplas dúvidas de que seja conforme ao princípio da igualdade e da não discriminação aceitar que uma empresa proíba o uso de todo e qualquer acessório religioso, ideológico… no limite, símbolo do que quer que seja… e que baste vedá-lo a todos os trabalhadores, ou a uma categoria abstrata, para se entender inexistir qualquer tratamento discriminatório –, é curioso e muito sintomático que, até 2017, caso algum tenha chegado a esta instância jurisdicional sobre pretensa discriminação laboral de caráter religioso e, de então para cá, as decisões em torno de hipóteses deste tipo não cessem de emergir, aliás na esfera de ação de variadíssimas instâncias, não apenas na do Tribunal de Justiça. O Direito segue a vida, como se dizia atrás… E se também houver oposição ao uso de um pendente com um crucifixo? E se for uma T-shirt com a estampa de um arco-íris?

E se o trabalhador for homossexual, ou transexual, ou seropositivo, ou doente de cancro, ou mais velho do que a imagem da empresa supõe, ou novo em demasia para merecer a confiança da estabilidade, ou menos bonito do que é preciso? E se for mais do que um par de mãos que laboram?…

Como resposta a compromissos profissionais e em honra, muito especialmente, dos meus alunos, mas também, sem sombra de dúvida, pela surpreendente riqueza que encontrei neste tema, dei corpo, entre 2023 e o início de 2024, ao projeto de reduzir a um texto único o essencial do que, julgo, fui aprendendo ao longo dos últimos anos sobre o mesmo. O meu Direito Antidiscriminação nas relações laborais é um conjunto de mais ou menos 300 páginas sobre as fundações e, especialmente, sobre as linhas com que se vai tecendo este reduto de juridicidade, onde o que se joga é, em última análise, a dignidade das pessoas. Procura reunir a projeção normativa em que ele se reflete, mas também o debate doutrinal e a diversidade jurisprudencial com que se vai construindo, cá, lá, por aí. Escrevi, em nota prévia, que não está ao meu alcance dar resposta ao problema do justo dono da flauta, como o apresenta Amartya Sen[1]: “qual de entre três crianças – Ana, Bernardo e Carla – deverá ficar com essa flauta sobre a qual os vemos a discutir. Ana reivindica a flauta com fundamento no facto de ser ela a única dos três que a sabe tocar (…). Para fazer valer a sua pretensão sobre a flauta, [Bernardo] lembra que, dos três, ele é o único a ser tão pobre que não tem quaisquer brinquedos. A flauta seria, pois, algo com que pudesse brincar (…). Carla (…) lembra-nos que esteve a trabalhar com grande afinco durante vários meses para conseguir construir a flauta com o trabalho das suas próprias mãos (…)”. Creio, sem falsa modéstia, que nunca saberei, em definitivo, resolver este impasse. Mas, talvez, com este estudo, tenha ficado mais perto de encontrar a resposta.


[1] A ideia de Justiça, Almedina, Coimbra, 2019 (tradução de Nuno Castello-Branco Bastos), p. 51 e ss.