Raul Taborda
Licenciado e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.
Advogado. Associado na Sérvulo & Associados – Sociedade de Advogados, RL entre 2012 e 2019.
Integra atualmente o Departamento de Averiguação e Ação Sancionatória do Banco de Portugal.
Transferência das Mensagens de Correio Eletrónico para Processos de Contraordenação – Um Estudo Sobre as Investigações Internas nas Instituições de Crédito é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponível no mercado desde de 13 de Julho de 2023.
[Considerando as funções e a atividade profissional do autor, qualquer opinião expressa neste artigo pertence unicamente a este, não representando a opinião do Banco de Portugal, a menos que expressamente se afirme que o autor está autorizado para tanto].
No domínio do Direito das Contraordenações, a conduta posterior ao facto, incluindo os atos do agente destinados a reparar as consequências desfavoráveis causadas pela infração e, bem assim, a colaboração daquele para a descoberta da verdade, desempenham um papel relevante na escolha e na graduação da concreta sanção a aplicar.
Não obstante o Regime Geral das Contraordenações não faça menção expressa a tais circunstâncias como elementos relevantes para a determinação da sanção, não só a aplicação subsidiária do artigo 71.º, n.º 2, alínea e), do Código Penal, ex vi artigo 32.º do RGCO, não parece contrariar o referido Regime Geral, como, de resto, a tendência dos regimes setoriais tem sido a de incorporar tais circunstâncias como elementos atendíveis no momento da determinação da sanção. Veja-se, a este propósito, como exemplo, o artigo 405.º, n.º 2, alínea d), do Código dos Valores Mobiliários, o artigo 206.º, n.º 4, alíneas d) e e), do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, o artigo 69.º, n.º 1, alínea i), do Novo Regime Jurídico da Concorrência. A conduta posterior ao facto e a colaboração do agente assumem, pois, ao abrigo desses regimes um papel preponderante.
Este aspeto assume relevância numa era em que as pessoas coletivas têm vindo gradualmente a investir tempo e recursos nos respetivos sistemas de controlo interno e nos subsistemas de compliance, o que se afigura particularmente relevante nos casos em que a auto-regulação não é imposta por lei (i. e., em que a auto-regulação, mormente a implementação e manutenção de um sistema de controlo interno, não é condição de acesso e permanência num determinado mercado regulado).
De facto, embora a generalidade das empresas não esteja legalmente obrigada a implementar um sistema de controlo interno, como condição de acesso e permanência num determinado setor de atividade, o facto de tal sistema estar implementado e de ao abrigo do mesmo a empresa, de forma responsável, espoletar diligências investigatórias no sentido de apurar factos relacionados com a prática de determinado ilícito, não se afigura, de todo, despiciendo, no momento da determinação e graduação da sanção, quando a responsabilidade pela prática de tais factos também recaia sobre essa concreta pessoa coletiva.
Damos, a este propósito, nota de que, no domínio do Código Penal, o artigo 90.º-A, n.º 4, prevê como circunstância atenuante a circunstância de a pessoa coletiva adotar e implementar um programa de cumprimento normativo adequado a prevenir a prática de crime. Daqui se depreende uma clara intenção do legislador de atribuir à auto-regulação uma relevância até então praticamente inexistente. Ademais, por tal preceito não contrariar o Regime Geral das Contraordenações, não vemos que a aplicação subsidiária do mesmo ao processo de contraordenação esteja vedada.
Nesse sentido, e embora estejamos num espectro de atuação distinto, póstumo, por definição, um programa de cumprimento normativo que preveja que, em caso de cometimento de uma infração, a pessoa coletiva deve espoletar diligências destinadas a investigar internamente os factos, procurando ativamente apurar as respetivas circunstâncias, suas consequências e os responsáveis individuais, tendo como desiderato (i) não só conter as eventuais consequências do ilícito, mas, também, (ii) colaborar ativamente na investigação conduzida pela autoridade administrativa, para a descoberta da verdade, deve ter, por identidade de razão, um valor preponderante na determinação da sanção.
Dir-se-á que, por esta via, caminhamos para uma tentativa abusiva de privatização da justiça. Que o legislador procura “delegar” nos arguidos a missão – que cabe, por lei, às autoridades administrativas – de investigarem os factos. E que se promove, de forma encapotada, sem que se consigam prever, para o arguido, as reais consequências dessa conduta, a contribuição ativa do agente para a sua própria autoinculpação.
Acreditamos, porém, que o arguido é livre de fazer o que entender. Se considerar que contribuir ativamente para a investigação lhe é desfavorável, nada o obriga a fazê-lo. Mas existirão casos em que estrategicamente poderá fazer todo o sentido colaborar ativamente na investigação.
De todo o modo, também será também necessário sensibilizar as autoridades administrativas para este aspeto: raramente um concreto agente colaborará ativamente na descoberta da verdade, se tal conduta não trouxer quaisquer consequências favoráveis mensuráveis.
Aqui chegados, cumpre referir que, nos casos de auto-regulação regulada, o posicionamento não será exatamente o mesmo. Há casos em que a adequação e a eficácia do sistema de controlo interno depende, a jusante, da maior ou menos capacidade que a pessoa coletiva tem de investigar internamente os factos e, portanto, da sua capacidade de reação à materialização de um risco de (não) compliance.
Basta pensar no caso de uma pessoa coletiva que opera profissionalmente num mercado regulado e que, tendo conhecimento da materialização de um risco de (não) compliance se mantém inerte, não desencadeando quaisquer diligências no sentido de apurar os factos e os seus concretos responsáveis, não desencadeando nem implementando quaisquer medidas corretivas. Numa situação como a descrita, a sobredita inércia pode revelar-se incompatível com a adequação do sistema de controlo interno.
Porém, na hipótese em que a auto-regulação é imposta e regulada, julgamos que, na perspetiva da conduta póstuma ao facto e no que se refere à colaboração do agente, o cumprimento de tais vetores tem a relevância já atrás expendida. O contributo para a descoberta da verdade e o grau de colaboração do agente devem ser considerados e devidamente ponderados pela autoridade administrativa. Em suma, julgamos que o facto de um determinado arguido desencadear, num momento póstumo ao cometimento do facto ilícito, diligências destinadas a investigar as respetivas circunstâncias e as concretas pessoas que participaram nos factos, não só mitigando as eventuais consequências do facto ilícito, mas também colaborando ativamente para a descoberta da verdade, deve relevar quer na escolha da sanção, quer na respetiva graduação.