Afonso Brás

Licenciado e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Assistente convidado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, desde 2018.
Assistente convidado no Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa (ISEG), desde 2017.
Leciona, também, desde 2022, na Academia Militar de Lisboa.


O Conceito Funcional de Norma na Jurisprudência do Tribunal Constitucional – A Fronteira Entre o Controlo de Norma e o Controlo de Decisão é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponível no mercado a partir de 20 de Julho de 2023.

Consulte a obra neste link.


Pode-se hoje afirmar, com meridiana certeza, que o conceito funcional de norma é parte integrante do sistema português de fiscalização da constitucionalidade. Se se vislumbrar os principais enunciados constitucionais relativos a esta fiscalização, rapidamente se chegará à conclusão de que ela incide sobre normas. Desde cedo, porém, que o Tribunal Constitucional (TC), a partir de uma leitura da Constituição, se deparou com uma questão: sendo o controlo normativo, sobre que normas é que deverá incidir? Além disso, a partir do momento em que a nossa justiça constitucional não compreende o controlo de atos não normativos, nomeadamente das decisões judiciais, como assegurar o respeito entre aquilo que se pode admissivelmente controlar e o que não pode ser objeto de fiscalização, por (já) não consubstanciar um controlo normativo? É precisamente sobre esta circunstância que nos iremos debruçar.       

A primeira nota que, neste momento, e por enquanto, deve ser referida, é que a construção do conceito funcional de norma e a consequente exclusão, pela jurisdição constitucional, daquilo que por esta não pode ser controlado, é marcada por um caminho errático, que dificulta a compreensão dos requisitos que cumulativamente devem estar preenchidos para que um comando normativo possa ser objeto de controlo constitucional. Este aspeto, por sua vez, também potencia uma grande fluidez de entendimentos – jurisprudenciais e doutrinários– quanto à delimitação da fronteira de controlo do Tribunal, em especial quando existem dúvidas sobre se aquilo que se está a controlar é (ainda) uma norma ou (já) uma decisão judicial. Daí que esta investigação revele uma preocupação de, por um lado, clarificar os requisitos que, na nossa perspetiva, e na decorrência da jurisprudência do Tribunal, são imprescindíveis para que se possa falar de norma num sentido funcionalmente adequado; e, por outro lado, de analisar criticamente as situações em que a linha que separa o controlo admissível daquele que não pode operar é mais ténue – nomeadamente, em sede de interpretações normativas, de concretização de conceitos indeterminados e/ou de cláusulas gerais e, finalmente, de controlo de normas ditas implícitas na decisão judicial recorrida

Em segundo lugar, o que acaba de ser referido também justifica que, tendo em conta o objeto da investigação, tenha se de fazer uma limitação na análise. Assim, é desde logo necessário clarificar que ela girará em torno da relação que, para esse efeito, é estabelecida entre a jurisdição comum e a jurisdição constitucional, já que, como se verá, o conceito funcional de norma e as questões problemáticas que lhe estão associadas colocam-se precisamente aí: se em sede de jurisdição comum o (futuro) recorrente entende que uma determinada norma colide com a Constituição e o juiz a quo tem entendimento contrário, então o (agora) recorrente, pressupondo que os requisitos necessários estão preenchidos, pode suscitar essa questão de constitucionalidade junto do TC. Fazendo-o, o Tribunal terá inevitavelmente de determinar se o comando pretensamente normativo que é impugnado pode ser entendido num sentido funcionalmente adequado para efeitos de eventual fiscalização da constitucionalidade. É isso que explica que, de uma parte, a maioria das decisões do Tribunal que será analisada neste trabalho tenha sido produzida em contexto de recurso de decisões negativas de inconstitucionalidade[1], e, de outra parte, que a problemática associada a uma pretensa criação de normas pela própria jurisdição constitucional não seja aqui suscitada, por extravasar o tema tal como ele foi delimitado[2].

Em terceiro e último lugar, todas as asserções e entendimentos que serão avançados, formulados no contexto de uma investigação que tem como pano de fundo o sistema português de fiscalização da constitucionalidade, reportar-se-ão quer à jurisprudência do Tribunal, quer ao Direito Constitucional vigente. Mesmo assim, e por referência àquilo que se afirmou supra, é metodologicamente aconselhável que se comece este trabalho por uma dimensão mais teórica.

Assim, começar-se-á por explicar, na Parte I, o caminho histórico que desembocou no singular sistema português de fiscalização da constitucionalidade. Trata-se de um caminho que necessariamente teve influências europeias e norte-americanas, que, por sua vez, coincidem com os dois grandes modelos de fiscalização da Constituição – difuso e concentrado, respetivamente. Referir-se-á, sumariamente, as principais características associadas a esses mesmos modelos, para, num momento posterior, a análise se focar nas diversas Constituições portuguesas. Perceber-se-á que todas elas acompanharam os avanços (e recuos) históricos operados no continente europeu, embora se conclua pela singularidade da situação portuguesa, na medida em que só bastante tarde é que Portugal vai compreender o verdadeiro significado de um controlo jurisdicional da constitucionalidade. Na análise constitucional que se fará, especial relevância assumirá o período que medeia entre o 25 de Abril de 1974 e a entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa de 1976, pois o debate que aí foi travado, não sendo novo, no sentido de ser uma consequência de realidades históricas anteriores, vai explicar o atual modelo híbrido de controlo constitucional, que comunga características quer do modelo difuso, quer do modelo concentrado.

A Parte II, por seu turno, assume-se como o núcleo da investigação. Inicialmente, ter-se-á a oportunidade de ver se a Constituição adota, ou não, um conceito material de norma, no sentido de apenas relevarem aquelas que comunguem das propriedades da generalidade e da abstração. Depois de se verificar que tal não sucede, e porque o controlo de constitucionalidade que é operado pelo Tribunal é estritamente normativo, necessário se torna saber, então, quais as normas que poderão ser objeto de fiscalização da constitucionalidade. E é exatamente aqui que entra a importante e fundamental análise jurisprudencial.

Percorrendo vários arestos do Tribunal, que remont am ainda ao tempo da Comissão Constitucional, teremos oportunidade de verificar que, num primeiro momento, objeto de controlo será uma norma formalmente entendida: adotar-se-á, assim, aquilo que se designa por conceito formal de norma. Sem prejuízo de uma necessária apreciação crítica que terá de ser feita, a análise continuará incidindo agora sobre leading cases que contribuíram para que, no final, e ainda hoje, se pudesse falar numa norma no seu sentido funcionalmente adequado. Veremos, então, (i) quais os requisitos cumulativos que têm de estar presentes para que esse conceito possa ser acionado; (ii) de que forma é que a questão de constitucionalidade deve ser suscitada junto do Tribunal, (iii) e quais os atos não normativos que necessariamente estão excluídos do sistema português de fiscalização da constitucionalidade.

Um desses atos é, precisamente a decisão judicial. Assente que está o conceito funcional de norma, veremos, seguidamente, como ele também será alargado àquilo que o Tribunal designa por interpretações normativas. De facto, estando as normas contidas em enunciados normativos, e reclamando estes uma interpretação para que aquelas possam ser reveladas, desde cedo que o TC assumirá, de forma pacífica, que objeto de controlo também podem ser as normas extraídas interpretativamente pelo juiz a quo de enunciados normativos e aplicadas com esse sentido na decisão judicial. Porém, se este entendimento, como se disse, pode parecer pacífico, desde cedo que se suscitou uma questão crucial: se aquilo que se pretende controlar é uma norma tal como ela foi extraída e aplicada pelo juiz, será que isso não pode perigar a necessária fronteira que tem de haver entre controlo admissível de norma e controlo inadmissível de decisão judicial?

Para o demonstrar, começar-se-á por analisar as situações mais recorrentes em que tal pode suceder: nomeadamente, quando aquilo que se pretende questionar não é a norma extraída e aplicada, mas, antes, a norma de decisão, que coincide com o ato de julgamento. Se estes casos parecem facilmente detetáveis, nem por isso a abordagem do Tribunal é coerente, o que, por sua vez, pode potenciar um aproveitamento, por parte do recorrente, dessa instabilidade, para efeitos de acesso à jurisdição constitucional.

Os problemas adensam-se, contudo, quando em domínios sujeitos ao princípio da legalidade, a norma, aqui entendida enquanto resultado da interpretação, é atingida através de operações interpretativas que estão vedadas ao juiz – v.g., analogia e/ou interpretação extensiva. Veremos que esta problemática se insere em matérias penais e fiscais, e que a resposta do Tribunal, sem prejuízo de se encontrar mais estabilizada, é marcada por um ziguezaguear de entendimentos, vertidos quer em arestos, quer em declarações de voto a estes apostas. Esta fluidez errática, por sua vez, ora pende para o lado dos que entendem que controlar a norma assim extraída é necessariamente controlar o processo interpretativo que pelo juiz foi seguido, traduzindo-se, a final, num controlo inadmissível da decisão; ora pende para o entendimento de que o controlo, mesmo assim, é exclusivamente normativo, não suscitando qualquer problema.

Depois de ser formulado um entendimento quanto a essa questão, passar-se-á para a análise de outras duas situações que podem suscitar dúvidas sobre se aquilo que está a ser controlado é um comando normativo ou uma decisão judicial. A primeira desdobra-se em dois casos: (i) por um lado, aquele em que o juiz a quo, para efeitos de aplicação de uma norma ao litígio que tem de decidir, precisa de preencher um conceito indeterminado que consta do respetivo enunciado normativo de onde extrairá a norma; (ii) por outro lado, aquele em que o mesmo juiz, na sua decisão, faz apelo a cláusulas gerais, como a boa-fé ou o abuso de direito. Já a segunda tem que ver com as chamadas normas implícitasi.e., normas que, apesar de não aplicadas expressamente pelo juiz a quo na sua decisão, estão nela pressupostas, de tal maneira que o litígio não poderia ter sido resolvido sem lhes fazer apelo em termos de ratio decidendi.

Como se disse, todas estas situações descritas até aqui têm em comum a circunstância de ocorrerem no contexto da decisão judicial recorrida. Daí que esta investigação, como facilmente se apreende, gire sempre em torno da questão de saber se o seu respetivo conhecimento, pelo Tribunal, implica um controlo dessa mesma decisão. Após uma análise assente num diálogo permanente com a jurisprudência constitucional, e em jeito de conclusão, estarão reunidas as condições para que se possa fazer um balanço de tudo quanto foi exposto e apreciado, e, partindo de um acórdão do Tribunal que, em nosso entender, e no contexto da investigação, assume especial relevância, dar resposta a essa mesma questão, pois só a partir dela se poderá saber se o Tribunal Constitucional respeita a fronteira que tem de existir no sistema português de fiscalização da constitucionalidade: nomeadamente, a fronteira entre controlo legítimo de norma e controlo ilegítimo de decisão judicial.

Essa resposta pode ser encontrada na monografia da minha autoria, que a Almedina publica no próximo mês de julho, com título idêntico ao deste artigo, que, por sua vez, corresponde a uma antevisão do que aí será analisado e discutido.


[1] Este tipo de recursos parte de uma aplicação ao caso concreto, pelo juiz a quo, das normas que entende que são relevantes para resolver a contenda. O ponto é que, ao contrário do que sucede nos recursos de decisões positivas de inconstitucionalidade, em que a arguição de inconstitucionalidade parte desse mesmo juiz a quo, aqui, o particular entende que uma das normas que o juiz tem em vista aplicar colide com a Constituição, sendo, por isso mesmo, e no seu entender, inconstitucional. Porém, mesmo depois dessa alegação, a verdade é que o juiz aplica a norma por considerar que ela não viola a Lei Fundamental. Se isso sucede, então através da decisão do tribunal comum não só há uma questão principal – um “feito submetido a julgamento” – de natureza cível, penal ou administrativa -, que foi resolvida pelo juiz, como, simultaneamente, há também uma questão de constitucionalidade que também foi objeto de decisão por esse mesmo juiz – rectius: ao aplicar uma norma reputada de inconstitucional pela parte, o juiz entende que ela não padece de qualquer tipo de inconstitucionalidade. Há, portanto, uma decisão negativa de inconstitucionalidade. Cfr, por todos, C. Blanco de Morais, Justiça Constitucional. Tomo II – O Direito do Contencioso Constitucional, 2.ª Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2011, pp. 744 e ss.

[2] Sobre este aspeto, cfr, C. Blanco de Morais, Curso de Direito Constitucional, Tomo II – Teoria da Constituição, Coimbra: Edições Almedina, 2018 pp. 607 e ss.