Margarida Martins

Licenciada e Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto.


Da Admissibilidade das Gravações e Fotografias Recolhidas por Particulares como Meio de Prova em Processo Penal é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponível no mercado desde 16 de Junho de 2022.

Consulte a obra neste link.


I. O Direito Penal é o ramo do Direito destinado à tutela dos bens jurídicos essenciais à vida pacífica em comunidade. A sua função é prosseguida através de normas de determinação cuja violação tem como consequência a aplicação de uma pena ou medida de segurança. A efectivação da responsabilidade penal, prosseguida através do Processo Penal, é uma pretensão do Estado, que, na figura do Ministério Público, promove a acusação[1].

Resultado de uma evolução histórica ligada ao surgimento do Estado Moderno, que se caracterizou pelo processo de concentração e institucionalização do poder político, a «publicização» do Direito Penal provocou uma disrupção no modelo até então vigente de efectivação da responsabilidade criminal. Da realização da justiça penal por meio da «vingança privada», vigente nas comunidades políticas anteriores, desprovidas de uma organização apta a assegurar a coercibilidade das suas normas, transitou-se para um modelo de aplicação das penas e medidas de segurança pelo Estado, que avocou o monopólio do uso da força.

No entanto, e pese embora a contribuição da publicização do Direito Penal para a afirmação e consolidação da soberania interna dos Estados, é-lhe, hoje, assacada a responsabilidade pela correlativa «neutralização» da vítima no Processo Penal. O seu «reaparecimento» ocorrerá apenas no Pós-II Guerra Mundial, por impulso da Vitimologia, ramo da Criminologia, que lhe dedicou os seus estudos.

II. A Vitimologia promoveu a «redescoberta» da vítima no sistema jurídico-penal, através de duas ordens de considerações.

Uma primeira veio alertar para a «supressão» da vítima no âmbito do Processo Penal, cujos interesses são despersonalizados e assumidos pelo Estado, que actua enquanto representante da comunidade e em defesa desta, e não da vítima.

Uma segunda veio constatar que a vítima não é, em todos os delitos, mero objecto passivo sobre o qual recai o evento lesivo. Por vezes, este é resultado de uma interacção entre autor e vítima, pelo que esta poderá ser considerada, pelo menos parcialmente, «responsável» pela lesão.

É desta segunda ordem de considerações que, no plano jurídico, surge a «Vitimodogmática». Esta construção trata de analisar em que medida e termos o reconhecimento da existência de vítimas que contribuem para o facto delitivo pode conduzir à afirmação de que estas têm responsabilidade na sua produção e, em consequência, determinar uma atenuação ou, inclusive, exclusão da responsabilidade criminal do autor.

Deste modo, e pese embora tenha sido gerada através daquele segundo bloco de considerações vitimológicas, a verdade é que, no plano das consequências, a Vitimodogmática vem seguindo um rumo distinto do proposto pela Vitimologia.

Na verdade, enquanto esta assume relevo ao nível das medidas de política criminal, no sentido de eliminar a «predisposição vitimal» de certos grupos de vítimas, com o objectivo de lhes conceder maior protecção, a Vitimodogmática tem por escopo apurar se um determinado comportamento da vítima há-de ter reflexos na determinação da responsabilidade criminal do autor.

Esta emancipação da Vitimodogmática face à Vitimologia é criticada por aqueles que veem na primeira uma estratégia, do seu ponto de vista inadmissível, de «culpabilização da vítima» («blaming the victim») e de inversão de papéis entre «autor» e «vítima».

No entanto, ignorar a conduta «concausal»[2] da vítima, na aferição da responsabilidade criminal do autor, representaria, por sua vez, uma violação do princípio da culpa. Seria atribuída ao agente uma pena em desconformidade com a sua intervenção na produção do evento lesivo, o que conduziria a uma fragilização do princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso, da fragmentariedade e da necessidade da intervenção penal na protecção de bens jurídicos.

III. Pese embora a controvérsia que incide sobre a «doutrina da vítima», considerações vitimodogmáticas são, na verdade, tidas em consideração ao nível da legislação, doutrina e jurisprudência.

Por exemplo, o Código Penal português faz relevar o consentimento da vítima para efeitos de exclusão da responsabilidade do autor do tipo-de-ilícito de ofensas à integridade física[3]. Ou, outro exemplo, a previsão de dispensa de pena, no âmbito dos crimes contra a honra, quando a ofensa haja sido «provocada por uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido»[4].[5]

O instituto da legítima defesa pode, também ele, ser explicado através de uma perspectiva «vitimológica»: para além de colocar em perigo os bens jurídicos do agredido, o agressor cria, muitas vezes, um risco para os próprios bens jurídicos, através do abandono da sua protecção, uma vez que a reacção defensiva do agredido surge como previsível[6].

A nível doutrinal e jurisprudencial, considerações vitimodogmáticas deram origem e atribuíram relevo à figura da «interrupção do nexo causal», no sentido da exclusão da responsabilidade criminal do autor, quando entre a sua acção e o resultado lesivo houver mediado um comportamento negligente da vítima. E, também, no âmbito dos delitos omissivos, se afirma o decaimento do dever geral de auxílio (omissão pura) ou do dever de garante (no caso da omissão impura) em consequência de uma conduta do titular do bem jurídico conscientemente dirigida à auto-lesão. 

IV. A atribuição de relevância à contribuição da vítima para o evento lesivo poderá encontrar o seu fundamento material-normativo no princípio da intervenção de ultima ratio do Direito Penal[7].

É que, na base desta linha argumentativa, está uma concepção mais ampla deste princípio, nos termos da qual ele se afirma, não só face aos meios de intervenção estadual menos gravosos (concepção tradicional), como também frente à auto-tutela que se entende possível e exigível aos próprios particulares.

Desta formulação do princípio de ultima ratio decorre que a necessidade e merecimento de pena por parte do autor estará dependente da necessidade e merecimento de tutela por parte da vítima.

Numa palavra, quando a vítima haja votado ao abandono o bem jurídico de que é titular (pressupondo que a respectiva protecção lhe era possível e exigível), a conduta danosa que o venha atingir ou colocar em perigo, considera-se, ou arredada do âmbito de protecção do tipo incriminador, ou conducente a uma diminuição da responsabilidade criminal do autor, na proporção da culpa da vítima.

V. No que concerne à inserção sistemática do instituto na «Doutrina do Crime», poderíamos ser levados a concluir que as considerações sobre a conduta da vítima se situariam no âmbito do instituto da imputação objectiva, uma vez que se projectam na responsabilidade criminal do autor.

No entanto, uma vez que a operação de imputação objectiva se destina a afirmar a «pessoalidade» da situação, isto é, que a mesma consubstancia uma «realização da pessoa», não cremos que as contribuições da vítima tenham a sua sede neste âmbito, mas sim ao nível do designado «conteúdo de imputação»[8].

O princípio vitimodogmático será, por isso, um princípio interpretativo[9] que, a par do princípio do bem jurídico, delimitará o âmbito de previsão dos tipos incriminadores em especial.

Ou seja, uma vez atribuído o acto à pessoa, importa averiguar se esse acto está ou não coberto pelo âmbito de proibição da norma. É aqui que assumem relevo os «correctores da teoria da conexão do risco» da «dimuição do risco», do «comportamento lícito alternativo» e do «fim/âmbito de protecção da norma». Este último, enquanto «denominador comum» dos outros dois[10], integrará também a «interpretação vitimodogmática».

VI. Importará precisar o conceito de «vítima» e aquelas situações em que se entende ter o seu comportamento a aptidão de converter um facto em menos grave da perspectiva da danosidade social. Isto é, aqueles casos à luz dos quais o princípio de ultima ratio postergará (ou mitigará) a intervenção do Direito Penal.

Definimos, na nossa obra[11], «vítima» como a pessoa cujos bens jurídicos (ainda que o só sejam prima facie) foram lesados ou, pelo menos, colocados em perigo por uma conduta à qual é atribuída, prima facie, relevância penal. E acrescentámos que esta conduta não terá de estar preordenada à obstaculização da continuação ou reiteração daquela que é a prática delitiva da vítima, caso em que o recurso à «vitimodogmática» nada acrescentaria face às causas justificativas, mas que se basta com o desiderato da recolha de informações probatórias susceptíveis de servirem de base a uma condenação.

Quanto às situações que conduzem à abstenção (ou intervenção atenuada) do Direito Penal, referimos serem aquelas em que se tenha verificado a «precipitação» do acto, aparentemente ilícito-típico, pela «vítima» do mesmo.

Coloca-se, então, a questão de saber quando se considera ter a vítima «precipitado» o acto criminal (prima facie) de que vem a ser alvo. E concluímos que a «precipitação» do «crime» apenas assumirá relevo, sob a perspectiva jurídico-penal, quando a «vítima» tivesse o dever de não actuar da forma como actuou. E esse dever, assim o defendemos, tem de ser identificado com uma imposição de abstenção de determinada conduta (caso dos delitos de comissão por acção) ou com uma prescrição de um dever de actuar (caso dos delitos omissivos). Ou seja, terá de corresponder a um dever imposto por uma norma jurídico-criminal, ao ponto de a respectiva violação pela «vítima» consubstanciar, pelo menos, a prática de um ilícito-típico.

VII. E cremos que o recurso à «vitimodogmática» poderá ser bastante profícuo na solução da questão, bastante controvertida e comum na prática dos tribunais portugueses, de se uma gravação ou fotografia obtida por um particular, sem o consentimento do visado, poderá ser admitida como meio de prova em Processo Penal.

É que a utilização destes meios no Processo Penal está dependente de os mesmos não serem passíveis de um juízo de ilicitude, nos termos do Direito Penal substantivo. E o Código Penal apenas procede, de forma explícita, à exclusão do âmbito de proibição das suas normas dos casos em que a utilização daqueles meios seja consentida por aquele que é alvo da captação (quando o bem jurídico em causa seja a palavra falada) ou quando este não se manifeste contra a referida utilização (quando o bem jurídico é a imagem).

O problema central com que nos deparamos nestes casos é precisamente o da falta de consentimento do visado para a utilização das gravações e fotografias no processo, uma vez que a captação se reporta à prática de um facto com relevo jurídico-criminal e a sua reprodução no processo tem por objectivo fazer prova dos factos imputados ao arguido (fotografado ou gravado no momento da prática delitiva). Deste modo, consentir na referida reprodução significaria aceitar a utilização de meios de prova que lhe seriam desfavoráveis, hipótese que nos parece manifestamente inverosímil.

No entanto, socorrendo-nos das considerações «vitimodogmáticas» na interpretação das normas jurídico-criminais, vale dizer, na operação de delimitação do respectivo «conteúdo de imputação», cremos que aqueles casos em que o arguido haja sido captado no momento da prática de um ilícito criminal estarão arredados do seu âmbito de previsão.

Recorrendo aos requisitos que deixámos expostos no ponto anterior, temos que «vítima» será aquele cujas palavras ou imagem são captadas por meio técnico, com vista à posterior reprodução em sede probatória (= «vítima» de um potencial ilícito de gravações ou fotografias ilícitas, embora possam assumir relevo outros tipos legais de crime). Trata-se, ora, de averiguar se se pode considerar ter este ilícito (prima facie) sido «precipitado» pela sua «vítima» (= simultaneamente, arguido no processo penal em que a questão se discute). E deixámos escrito que a «precipitação» do ilícito em relação ao qual o arguido é considerado «vítima» apenas assumirá relevo quando com a sua conduta haja violado uma norma jurídico-penal, portanto, esteja em causa a prática de um ilícito-típico.

Reunidos os requisitos de que entendemos estar dependente a atribuição de relevância ao comportamento da «vítima», defendemos que a interpretação das normas jurídico-criminais pertinentes[12] deverá ser no sentido de uma «redução teleológica» do seu âmbito de previsão. Quer isto dizer que, naqueles casos em que a imagem da «vítima» haja sido captada no momento da comissão de um acto com relevo jurídico-penal, ou tenham sido as suas palavras criminosas alvo de gravação, não poderá prevalecer-se, no processo, da sua falta de consentimento, em ordem à obstaculização da respectiva reprodução nesta sede. É que excluindo do âmbito de previsão das normas jurídico-criminais aqueles casos em que o aparente ilícito-típico de que vem a ser alvo é «determinado» pela própria «vítima», a utilização[13], no processo, dos meios técnicos de captação mecânica não será susceptível de um juízo de ilicitude. Assim sendo, a sua admissibilidade no processo não estará barrada, pelo menos, por este motivo.  

E esta interpretação que promove uma «redução teleológica do tipo» ancorámos, na nossa obra, na tese dos limites imanentes dos Direitos Fundamentais. De acordo com esta, os Direitos Fundamentais consagrados na Constituição estão sujeitos a duas ordens de limites: limites do objecto, que permitem identificar o bem jurídico ou parcela da realidade tutelados através do reconhecimento do direito; e limites de conteúdo, que delimitam a extensão da protecção constitucional do direito. No que concerne aos primeiros, «decorrem da interpretação dos preceitos constitucionais que os prevêem» e podem conduzir a uma «interpretação enunciativa», «restritiva» (= redução teleológica) ou «ampliativa» (= extensão teleológica). Os segundos pressupõem a prévia delimitação do objecto do direito (= limites do objecto) e constituem restrições ao seu âmbito de protecção. Quando tais limites não estão expressamente formulados na Constituição, estamos perante «limites imanentes implícitos» que são, também eles, determináveis por interpretação. Nos casos em que se verificam estes limites, não surgirá uma situação de conflito entre o direito delimitado e outros direitos ou valores, uma vez que a Constituição exclui, a priori, do seu âmbito de protecção, certas formas de exercício do direito fundamental. Deste modo, quando uma parcela ou modo de exercício de um direito põe em causa o conteúdo essencial de um outro direito ou princípio constitucional fundamental, deverá o intérprete concluir que as situações em causa não estão contempladas no âmbito de protecção da norma constitucional. Ou seja, que determinada conduta não se identifica com o exercício de um direito e, portanto, não é reconduzível à previsão constitucional que o tutela. «Assim, por exemplo, é normal que um comportamento que integre as circunstâncias de facto típicas de um tipo legal de crime não esteja incluído na hipótese normativa de um direito fundamental»[14].

A ausência de protecção constitucional a certas formas de exercício dos direitos fundamentais exclui-as do âmbito de tutela do respectivo e previamente identificado bem jurídico constitucional. Ora, não existindo respaldo na Constituição, somos levados a concluir que o Direito Penal não poderá ter a pretensão de acobertar essas situações. É que o princípio do bem jurídico, enquanto padrão crítico e legitimador da actuação do legislador ordinário, não permite a criação de incriminações que não estejam referenciadas à tutela de bens jurídico-constitucionais.  O princípio da subsidiariedade do Direito Penal, do qual decorre, por sua vez, o princípio da sua intervenção de ultima ratio, bem como o princípio da proporcionalidade[15], não permitem que o legislador vá além do programa constitucional de tutela dos bens jurídicos. Na verdade, de entre os bens jurídicos com dignidade constitucional, deverá o legislador ordinário, de acordo com uma lógica de intervenção minimalista, extrair aqueles (ou suas parcelas) considerados necessários à convivência pacífica em comunidade. Numa palavra, o bem jurídico-penal é sempre um bem jurídico-constitucional, mas o contrário não é válido.

VIII.  Como referimos, defendemos a posição de que as considerações vitimodogmáticas deverão intervir em sede de interpretação das normas jurídico-penais, na delimitação do respectivo «conteúdo de imputação», designadamente, para o caso que analisamos, na actividade interpretativa das alíneas b) do n.º 1 e n.º 2 do art. 199º CP. O que estiver excluído desse âmbito, não será ilícito, pelo menos, no que concerne ao tipo legal em interpretação, pelo que, por aí, não estará vedada a sua reprodução no processo penal (cf. art. 167.º, n.º 1, CPP).

Como também já deixámos escrito, estamos a pensar nos casos em que a gravação ou fotografia obtidas sem consentimento (ou contra a vontade, no caso da segunda) são particularmente aptas a fazer prova das incriminações imputadas ao arguido, «vítima» da conduta que procedeu à captação da sua imagem e/ou palavra. Ora, como consideramos que, nestes casos, a «vítima» das gravações ou fotografias ilícitas «precipita» esta conduta de que vem a ser alvo, uma vez que se encontra na comissão de uma prática delitiva, e como o escopo da gravação ou fotografia é o da obtenção de meios de prova contra a «vítima» visada pelas mesmas, entendemos que, nestes casos, o arguido (= «vítima») não terá a possibilidade de se prevalecer da ilicitude da conduta consistente na reprodução[16] (= utilização) desses meios no processo. E isto, precisamente, por defendermos que a imagem do agente na comissão do crime e as suas palavras criminosas estão arredadas do âmbito de protecção da norma constitucional que tutela os bens jurídicos à imagem e à palavra falada[17]. Deste modo, sufragamos uma «redução teleológica» do tipo incriminador das gravações e fotografias ilícitas, de molde a excluir do juízo de ilicitude penal aquelas situações que, não tendo dignidade constitucional, a fortiori, estarão desprovidas de dignidade penal.

IX. Resta questionar se é necessário recorrer às considerações vitimodogmáticas para concluir pela ausência de subsunção daquelas gravações e fotografias do agente na comissão do crime ao tipo legal das gravações e fotografias ilícitas, ou se, pelo contrário, o recurso às tradicionais causas de justificação, na esteira do que é prática corrente dos tribunais, seria suficiente para concluir pela admissibilidade daqueles meios de prova.

A Legítima Defesa poderá ser chamada a intervir no sentido de excluir a ilicitude da conduta do particular que procede às gravações ou fotografias, sem consentimento ou contra a vontade expressa do titular[18]. No momento da captação (= «obtenção») a prática delitiva é «actual» (iminente ou já em execução) e pode, nos termos previstos para esta figura, ser desencadeada por acção de terceiro. Coloca-se, contudo, a questão da necessidade dessa concreta conduta (= gravar ou fotografar o agente) e da idoneidade da mesma para por termo à ofensa em curso. No entanto, mesmo ignorando estes dois últimos requisitos, não vemos como pode a legítima defesa subsistir quando do que se trata é de saber se a reprodução daquelas concretas fotografias ou gravações no processo é ou não ilícita. É que, por força da tese dualista prevista para o preceito das gravações e fotografias ilícitas[19], o facto de a obtenção do meio de prova não ser susceptível de um juízo de ilicitude (por aplicação do instituto da legítima defesa) não é suficiente para legitimar a respectiva utilização no processo. Na realidade, o Código Penal impõe um juízo de ilicitude renovado que, para efeitos da sua admissibilidade no processo, incidirá, não sobre a obtenção, mas sobre a referida utilização do meio de prova, conduta que, para não ser subsumível ao tipo legal de crime em questão, deverá ser consentida (gravações) ou que não haja uma manifestação de vontade contra (fotografias) a sua utilização. No que concerne à legítima defesa, pelo menos nos seus moldes tradicionais, não vemos como poderá ser profícua nesta sede, uma vez que, no momento da reprodução, a ofensa já não é «actual» e a lesão do bem jurídico foi já consumada. Mesmo procedendo a uma «reconstrução» do que se entendem ser os requisitos deste instituto[20], o problema da sua inaplicabilidade sempre surgirá quando a captação tiver como propósito o de constituir meio de prova para sustentar uma acusação e não o de fazer cessar a continuação ou reiteração das ofensas. E, a nosso ver, aqui se situa o maior obstáculo à aplicação desta causa justificativa.

E, no que diz respeito ao recurso ao Estado de Necessidade[21], temos, mutatis mutandis, as mesmas objecções que avançamos para a aplicação da Legítima Defesa. E não só consideramos que aquele não traz nenhuma valia face à que resultaria da aplicação do instituto da legítima defesa, porquanto exige a «sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado»[22], como, à semelhança daquela, não resolveria o problema da inadmissibilidade do meio quando a sua finalidade fosse estritamente probatória.

A determinação da exclusão da ilicitude da utilização em sede processual, seguindo uma linha argumentativa nos termos da qual a não ilicitude da obtenção apenas será consequente se se admitir, necessariamente, a não ilicitude da utilização no processo penal, porquanto o fim que preside às duas é o mesmo e, sobretudo, por se tratar do único meio susceptível de fazer prova dos factos imputados ao agente, é também gizada por apelo à figura do Estado de Necessidade Probatório[23]. No entanto, o recurso a esta figura incorre numa petição de princípio. De facto, o art. 167.º, n.º 1, CPP faz depender a admissibilidade do meio de prova da conformidade da sua utilização com o juízo do Direito Penal substantivo. Ora, este é muito claro quando procede à distinção entre a conduta tendente à obtenção e a conduta relativa à utilização do meio de prova. Considerar que o juízo de não ilicitude da conduta referente à obtenção contagia aquela referente à utilização, tendo em vista as conveniências e fins do Processo Penal, é fazer tábua rasa do preceituado no art. 199º CP, que consagra a tese dualista, e do art. 167º, n.º 1, CPP. Na verdade, se este último remete a solução processual para as considerações de Direito Penal substantivo, os juízos deste último não podem, por sua vez, receber influxos do Processo Penal, que é autónomo e portador de uma axiologia própria, sob pena de nos enredarmos numa argumentação circular.

X. Deste modo, reiteramos a solução que já antes avançámos, segundo a qual será através da interpretação do «conteúdo de imputação» das normas jurídico-penais, atendendo às contribuições da «vítima» para a verificação do facto que atenta contra os seus bens jurídicos, que poderemos concluir pela admissibilidade das gravações e fotografias no processo. Promovendo uma «redução teleológica do tipo», a interpretação «vitimodogmática», arreda do âmbito de previsão dos tipos legais de crime as situações em que a «vítima», através de uma conduta ilícita-típica, «precipita» a conduta de que vem a ser alvo, cuja finalidade é probatória.

Pensamos que esta via que trilhámos põe fim às aporias resultantes da aplicação das causas justificativas, ao mesmo tempo que avança uma solução para um tema bastante controvertido nos tribunais portugueses. Desta forma, esperamos que o nosso contributo possa ter impacto numa futura uniformização das respostas jurisprudenciais, até ao momento caracterizadas pela dispersão, deste modo, promovendo a segurança e certeza na aplicação do Direito. 


[1] Arts. 48.º e 283.º, n.º 1, CPP.

[2] Termo utilizado por SILVA SANCHÉZ «La consideracion del comportamiento de la victima en la teoria juridica del delito ˗ observaciones doctrinales y jurisprudenciales sobre la “victimo-dogmática”», in Revista Brasileira de Ciências Criminais, Ano 9, Nº 34, Abril ˗ Junho 2001, Revista dos Tribunais, 2001.

[3] Cf. art. 149.º CP.

[4] Cf. art. 186.º, n.º 2, CP.

[5] Na nossa obra ˗ Da Admissibilidade como Meio de Prova em Processo Penal das Gravações e Fotografias Recolhidas por Particulares, Almedina, 2022 ˗ apontámos outras normas da Parte Especial do Código Penal que entendemos reflectirem considerações «vitimodogmáticas».

[6] Esta proposta é avançada por HASSEMER, apud SILVA SANCHÉZ, «La consideracion del comportamento de la victima en la teoria jurídica del delito ˗ Observaciones doctrinales y jurisprudenciales sobre la “victimo-dogmática”», in Revista Brasileira de Ciências Criminais, p. 169, nota de rodapé nº 22.

[7] Esta é o fundamento avançado por SCHÜNEMANN ˗ Obras, Tomo II, Buenos Aires, Rubinzal-Culzoni, 2009, p. 348.

[8] Utilizamos a distinção proposta por ALMEIDA COSTA entre «critério de imputação» e «conteúdo de imputação» ˗ Ilícito Pessoal, Imputação Objectiva e Comparticipação em Direito Penal, Tomo II, reimp., Coimbra, Almedina, 2017, p. 681.

[9] Na formulação de SCHÜNEMANN, consiste em «uma máxima interpretativa por força da qual só são subsumíveis numa incriminação típica as condutas que escapam à autotutela possível e exigível à vítima» ˗ apud COSTA ANDRADE ˗ Anotação ao artigo 192º CP, in FIGUEIREDO DIAS ˗ Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 732.

[10] Assim ALMEIDA COSTA, Ilícito Pessoal…, p. 692.

[11] Da Admissibilidade como Meio de Prova em Processo Penal das Gravações e Fotografias Recolhidas por Particulares, Almedina, 2022.

[12] No âmbito da reprodução (= utilização) das gravações e fotografias «ilícitas», em sede processual penal, assumem relevo a al. b) do n.º 1 e al. b) do n.º 2 do art. 199º do CP.

[13] Entendemos que a «reprodução» mencionada pelo art. 167º, n.º 1, CPP consubstancia uma utilização dos meios técnicos de captação mecânica, pelo que concluímos que, em sede de admissibilidade do meio de prova no processo, importa que a respectiva utilização não seja considerada ilícita, nos termos do Direito Penal substantivo. Deste modo, entendemos que, para efeitos daquela prescrição do CPP, a ilicitude da obtenção não terá relevo. O juízo do Direito Penal deverá incidir sobre as alíneas b) do n.º 1 e n.º 2 do art. 199º do CP.

[14] As citações do presente parágrafo são de VIEIRA DE ANDRADE, cujo ensinamento relativo aos limites imanentes dos Direitos Fundamentais seguimos ˗ ver, deste autor, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 6ª edição, Coimbra, Almedina, 2021, pp. 261 ˗ 274 (269) e (273 ˗ 274, nota de rodapé n.º 650).

[15] Cujas reverberações, no Direito Penal, têm origem no art. 18º, n.º 2, CRP.

[16] Embora as mesmas considerações valham também para a conduta dirigida à obtenção dos meios de prova. No entanto, como referimos, para efeitos do art. 167.º, n.º 1, CPP, importa atender à (i)licitude da respectiva utilização.

[17] Tuteladas sob a égide do art. 26.º, n.º 1, CRP.

[18] Assim o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28-05-2009, processo nº 10210/2008-9, relatora: Fátima Mata-Mouros.

[19] Vide COSTA ANDRADE ˗ Anotação ao artigo 199.º do Código Penal in FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 1187.

[20] Que o referido acórdão (supra nota n.º 15), de facto, empreende.

[21] Via de resposta adoptada pelo acórdão de 1.ª instância, objecto de recurso para o Tribunal da Relação de Évora ˗ vide ac. TRE, de 24-04-2012, relatora: Maria Filomena Soares.

[22] Cf. art. 34º, al. b), CP.

[23] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 29-03-2016, relator: António Latas.