Pedro Miguel Duarte Nunes
Licenciado em Direito e Mestre em Ciências-Jurídico Empresariais pela Universidade Lusíada do Norte – Porto.
Advogado com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados.
A Inteligência Artificial e o Direito da Propriedade Intelectual é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado a 6 de Abril de 2023.
A inteligência artificial faz parte da vida quotidiana da sociedade mundial, de tal ordem, que imensuráveis dispositivos eletrónicos, utilizados diariamente pelo ser humano, estão equipados com esta tecnologia.
Tarefas como a otimização de horários de transportes, compras em comércio online, serviços bancários virtuais, ou dispositivos eletrónicos como smartphones, televisões inteligentes, sistemas de segurança, entre outros inúmeros produtos e serviços, estão equipados com inteligência artificial.
Com o advento da inteligência artificial no seio da comunidade, provêm uma diversidade de benefícios, nomeadamente, a possibilidade da sua utilização como complemento a tarefas humanas, que, pela sua velocidade e capacidade de desempenho em áreas específicas, para as quais é treinada, possibilita a obtenção de resultados que suplantam a inteligência humana. No entanto, como qualquer outra tecnologia disruptiva, gera também riscos para a sociedade e introduz questões éticas, morais e legais à sua utilização.
Nos últimos tempos, o Chat GPT (Generative Pre-Trained Transformer) tem sido tema de múltiplas discussões no âmbito nacional e internacional.
Previamente à apreciação das questões que se impõem, é crucial delimitarmos o tipo de sistema com que nos confrontamos e o seu âmbito de atuação, para compreendermos a dimensão dos problemas que pode levantar e as soluções mais idóneas para os sanar. Desde logo, porque os sistemas de inteligência artificial podem-se dividir em várias categorias, desde a sua capacidade tecnológica, à tecnologia utilizada ou mesmo à forma de aprendizagem.
Ora, o Chat GPT é um programa baseado em inteligência artificial, criado por um laboratório de pesquisas na área da inteligência artificial, denominado OpenAI, situado nos EUA. Esta organização sem fundos lucrativos tem recebido apoio financeiro de algumas empresas, nomeadamente da Microsoft, com o objetivo de desenvolver a supramencionada tecnologia.
Elon Musk (CEO da Tesla e da SpaceX), apesar de já não incorporar a OpenAI, foi um dos cofundadores desta organização. Além dele, a organização teve como cofundadores Sam Altman, Peter Thiel (cofundador do PayPal) e Reid Hoffman (cofundador do LinkedIn).
O Chat GPT é um modelo de linguagem baseado em aprendizagem profunda/deep learning, que utiliza técnicas de aprendizagem supervisionada e por reforço. Na prática, o programa utiliza um algoritmo baseado em redes neurais que permitem estabelecer uma conversa com o utilizador a partir do processamento de um imenso volume de dados.
Nestes sistemas de aprendizagem supervisionada, os dados com que o sistema é alimentado, são introduzidos pelo programador já etiquetados, facilitando o processo de treino da inteligência artificial.
Na utilização da aprendizagem por reforço, o programador especifica o estado atual do sistema e determina o objetivo a cumprir, atribuindo as ações permissíveis, de forma a restringir os resultados de cada uma das ações. O sistema, a partir das ações permissíveis, define o melhor caminho para atingir o objetivo pré-determinado.
O Chat GPT foi projetado para responder a consultas baseadas em texto e gerar respostas em linguagem natural. Faz parte do campo mais amplo da inteligência artificial, conhecido como processamento de linguagem natural, que tem como objetivo ensinar os sistemas por ele equipados a entender e interpretar a linguagem humana.
Este sistema foi treinado com um enorme corpo de dados de texto e pode, portanto, gerar respostas para questões de conhecimento geral ou tópicos de conversação mais complexos. Algumas das principais atribuições deste programa encontram-se na possibilidade de fornecer um atendimento automatizado ao cliente, responder a perguntas frequentes ou envolver-se em conversas mais fluidas com os seus utilizadores.
Com base no exposto, pode-se afirmar que o algoritmo do Chat GPT foi desenvolvido com o objetivo de desempenhar diálogos virtuais, tendo em vista aprimorar a experiência e os recursos oferecidos por assistentes virtuais, como a Alexa ou a SIRI, embora também possa ser usado em outras aplicações de programação neurolinguística, como resumo de texto, tradução de idiomas ou criação de conteúdo.
Este sistema de inteligência artificial, aparentemente, não tem uma capacidade tecnológica significantemente superior à de outros similares, o que nos leva a questionar a razão pela qual, desde a sua criação, tem sido alvo de uma impressionante divulgação e expressivo escrutínio a nível mundial.
Um dos motivos desta notoriedade, é o facto de o Chat GPT ter sido treinado de forma a conseguir gerar respostas mais diversas e sofisticadas em comparação com outros modelos de linguagem.
Também a qualidade das saídas geradas contribui para este impacto. O programa é baseado na utilização de blocos transformadores e mecanismos de auto atenção, o que permite que o modelo compreenda e gere texto de forma mais eficaz. A precisão do Chat GPT e de outros modelos equivalentes varia, dependendo da tarefa específica para que esteja programado e da qualidade dos dados de entrada. Ora, o facto deste programa estar equipado com dados mais fidedignos que outros semelhantes, permite-lhe reproduzir saídas de melhor qualidade.
De igual modo, também a capacidade de processamento em tempo real consubstancia uma das vantagens deste sistema em particular.
No mesmo sentido, a amplitude do Chat GPT, permite que seja utilizado para uma ampla variedade de aplicativos, incluindo chats, atendimento ao cliente, tradução de idiomas, criação de conteúdo, entre outros, configurando mais uma das vantagens que levaram à sua desmesurada difusão.
Por último, mas não menos importante, o facto de, atualmente, ser gratuito para os seus utilizadores, permitindo o acesso global facilitado, ajudou a gerar este impacto a nível mundial.
No entanto, naturalmente que, sequela deste estrelato do Chat GPT, surgiram críticas, divergência de posições e questões que, até então, se encontravam camufladas a aguardar a descoberta da capacidade destes sistemas pela maioria da população mundial.
Contudo, estas problemáticas não são novas e vêm já sendo amplamente discutidas pelos doutrinários. Mas, como é habitual, fruto de uma capacidade de marketing poderosa ou mesmo decorrente da publicidade fortuita, “acendem-se as luzes de emergência e gera-se o pânico” quando surge uma exposição titânica de determinado assunto.
Ora, face à utilização desmedida deste sistema por parte de estudantes, a prestigiada universidade francesa Sciences Po, Instituto de Estudos Políticos de Paris, no início do mês de março do presente ano, proibiu os seus alunos de usarem o Chat GPT ou qualquer outro sistema equipado com inteligência artificial para a realização de trabalhos orais ou escritos, punindo os infratores com sanções que podem ir até à expulsão da instituição ou do ensino superior.
Esta tomada de posição, que foi replicada por outras instituições, consubstancia um ensinamento consequente para os estudantes. Esta ação, tomada pelas instituições de ensino, instrui que, perante o desconhecido, se devem “fechar as fronteiras” e erradicar a possibilidade de inovação, ao invés de a enfrentar, de compreender os seus benefícios, de acautelar os riscos e de avançar com soluções que permitam acompanhar a evolução tecnológica, social e cultural.
Com a revolução tecnológica e digital, a disseminação de informação na internet foi um problema, que para muitos levaria à finitude da criação humana e aumentaria o plágio, mas rapidamente se percebeu que, com alguma facilidade, se distinguiriam os trabalhos originais dos plagiados.
De igual modo, nomeadamente no meio académico, sabemos da importância das fontes fidedignas, que muitas vezes colocam em causa a vulnerabilidade da informação difundida.
A somar ao supramencionado, o facto deste sistema utilizar a aprendizagem supervisionada e por reforço permite-lhe gerar saídas mais fidedignas que outros programas similares, mas, em contrapartida, determina que os dados inseridos tenham de ser constantemente atualizados. Neste parâmetro, o Chat GPT tem acesso circunscrito aos dados de entrada que os programadores lhe forneceram, tendo o seu conhecimento limitado a setembro de 2021. Pelo que, num mundo em constante evolução e desenvolvimento, facilmente as saídas do sistema podem estar desatualizadas. Para o efeito, basta observar que, atualmente, este sistema não tem ainda conhecimento de um dos eventos mais marcantes do séc. XXI (guerra entre a Rússia e Ucrânia).
No mesmo sentido, podemos reconhecer que os sistemas de inteligência artificial, por muito avançados que sejam, hodiernamente, ainda não conseguem imprimir um cunho pessoal nas suas saídas, marcado pelas emoções, espírito crítico, vivências e conhecimento geral do mundo que o rodeia, capacidades até agora exclusivas do ser humano.
Por todos estes motivos, a utilização do Chat GPT deve servir como mais uma ferramenta para aumentar o nosso conhecimento, à semelhança de outras que já existem ao nosso dispor. Aliás, basta uma pequena pesquisa, ao alcance de qualquer pessoa, para se descobrirem vulnerabilidades deste sistema.
Destarte, qualquer utilizador que se preze pela qualidade dos seus trabalhos, reconhece que não basta sedimentar o seu trabalho numa única proveniência, devendo confrontar múltiplas fontes, para que possa ter diversas perspetivas à sua disposição e adquira conhecimento bastante para atribuir o seu cunho pessoal à sua criação.
Por outro lado, da perspetiva dos professores/analistas, será de relativa facilidade abolir a possibilidade de elaboração mecânica dos trabalhos, bastando, para o efeito, alterar a forma de avaliação dos mesmos, exigindo uma opinião crítica sobre os temas em discussão.
Assim, tão importante como regular a utilização destes sistemas, é desenvolver antídotos que impermeabilizem a sua utilização de forma errada. Aliás, como fez um estudante da Universidade de Princeton que criou uma aplicação (GPTZero) que deteta se um texto foi gerado por uma máquina ou elaborado por uma pessoa.
Por tudo o enunciado, será necessária uma readaptação de todos os intervenientes, inevitável face a qualquer evolução que se registe. Assim foi nas anteriores revoluções industriais e assim terá de ser face à implementação da inteligência artificial na sociedade. O que não podemos permitir é que, face ao comodismo instalado na sociedade, optemos por negar e bloquear a evolução tecnológica. Essa posição seria um grave erro nosso e um negligente ensinamento para as gerações vindouras.
Numa outra perspetiva, apesar do Chat GPT, em aplicações de conversação, poder gerar respostas semelhantes às humanas, a precisão de suas respostas é limitada pela qualidade e diversidade dos dados pelos quais foi treinado, podendo, por vezes, gerar respostas incorretas, imprecisas, sem sentido ou mesmo ofensivas ou preconceituosas. Portanto, é essencial clarificar que o Chat GPT pode gerar este tipo de respostas, especialmente se tiver sido treinado, em determinadas áreas, por dados tendenciosos, imprecisos ou erróneos.
O que levanta outra questão, que ultrapassa a previamente discutida, mas reforça a prévia posição tomada. Estas limitações do sistema podem condicionar quem o utiliza, influenciando posições doutrinárias, políticas ou culturais. Mais um motivo para que este programa seja utilizado como ferramenta de apoio e não como uma fonte incontestável de conhecimento.
Outra das preocupações da sociedade é a substituição dos seres humanos nos seus postos de trabalho por máquinas equipadas com esta tecnologia.
Ainda assim, como já foi demonstrado nas revoluções industriais que nos antecederam, a evolução, invariavelmente, extingue postos de trabalho e cria outros inexistentes até à data, é inevitável que assim suceda.
Nesse sentido, e ao contrário do que a maioria das pessoas imaginam, extinguir postos de trabalho obsoletos, possibilita que as pessoas possam dedicar-se a áreas mais prósperas, menos monótonas e, sobretudo, com melhores condições de trabalho. Portanto, cabe-nos acompanhar esta evolução, caso contrário, estaríamos constantemente a impedir a evolução com receio das consequências da mesma, que a longo prazo se revelam vantajosas para o ser humano.
Todavia, este tópico não deve ser completamente obliterado, desde logo, porque será sempre necessário ajustar a evolução científica às necessidades socioeconómicas da comunidade. Desta forma, na medida da evolução científica, deve também ocorrer uma evolução gradual no âmbito laboral, para que as necessidades de restruturação das empresas acompanhem as conveniências comunitárias.
Um problema também muito proeminente, prende-se com o domínio das grandes empresas internacionais, que, invariavelmente, são quem desenvolve e aproveita estas tecnologias de forma mais veemente, podendo levar à criação de monopólios ou originar um abuso das suas posições dominantes sobre o mercado.
A Google, como resposta ao investimento realizado pela Microsoft no desenvolvimento do Chat GPT, lançou uma nova ferramenta de inteligência artificial, designada “Bard”, que estará disponível em breve. Este sistema, visa, essencialmente, fazer concorrência ao programa desenvolvido pela OpenAI e não deixar que a sua oponente se destaque em demasia neste campo. Entramos, portanto, no domínio de colossos quanto à criação desta tecnologia e a luta prevê-se feroz pela obtenção dos sistemas mais avançados, na tentativa de suplantar a concorrência.
Assim, para acautelar eventuais abusos das suas posições dominantes ou a criação de monopólios, o direito da concorrência deverá ser avocado a regular e fiscalizar a atuação destas empresas no âmbito da exploração deste mercado.
Como já foi referido anteriormente, a manipulação e reformulação de texto são, de facto, os grandes trunfos da aplicação. No entanto, trazem consigo um problema, todas as informações inseridas na conversa são enviadas para a OpenAI Cloud. Na política de privacidade desta ferramenta, está explícito, formalmente, que os dados transmitidos são recolhidos, armazenados e usados pela OpenAI ou qualquer terceiro com acesso ao modelo, o que levanta inúmeras questões quanto à privacidade dos dados recolhidos por este sistema.
Neste sentido, a Autoridade italiana responsável pela proteção de dados, ordenou o bloqueio do Chat GPT em Itália, por considerar que o sistema não cumpre o Regulamento Geral da Proteção de Dados, aplicável no espaço da União Europeia. Esta Autoridade invocou como fundamentos a perda de dados do sistema, reconhecida pela OpenAI e que pode ter exposto informações privilegiadas, a ausência de fundamento legal que possibilite a recolha e armazenamento de dados em massa e, ainda, a ausência de filtro para verificação da idade dos utilizadores.
Esta decisão vem abrir um precedente, que poderá ser replicado por qualquer um dos Estados-Membros da União Europeia, uma vez que, qualquer autoridade de proteção de dados de um Estado-Membro pode investigar ou bloquear um organismo que suscite riscos para os utilizadores locais.
Portanto, em paralelo com a possibilidade de abusos da posição dominante das empresas que fomentam o desenvolvimento destes programas, surgem os problemas relacionados com opacidade da recolha e armazenamento de dados por este sistema e o incumprimento das normas que visam a sua proteção, podendo facilitar a sua utilização massiva por parte destas empresas ou terceiros para fins perigosamente desconhecidos.
Surgem, ainda, questões que se impõem no âmbito do Direito Penal, da Responsabilidade Civil ou da Propriedade Intelectual, com a utilização destes sistemas.
No que respeita ao Direito Penal e à Responsabilidade Civil, os problemas que se colocam são idênticos, segmentando-se, essencialmente, na atribuição da responsabilidade penal e civil pelos crimes ou danos cometidos pelo sistema durante a sua atuação.
Neste parâmetro, a responsabilização da própria inteligência artificial é impossível, desde logo, pela carência de personalidade jurídica. A atribuição de personalidade jurídica ou mesmo a criação de uma personalidade eletrónica para estes sistemas com o fundamento da responsabilização dos mesmos, não se vislumbra uma solução idónea, até porque possibilitaria a utilização destes sistemas como subterfúgio dos efetivos responsáveis, teria consequências inócuas para os lesados/vítimas e não cumpriria os desígnios da responsabilização para com os próprios sistemas. Assim, neste momento, a solução mais satisfatória será a da responsabilização do operador do sistema.
Já relativamente à Propriedade Intelectual, levantam-se variadíssimas questões, desde logo, eventuais violações de direitos de Propriedade Intelectual já atribuídos ou a possibilidade deste tipo de sistemas criar desmesuradamente obras, o que poderá limitar o espaço livre de criação humana.
A acrescentar ao acima vaticinado, surge a problemática de determinar se estes sistemas podem ser tutelados por direitos de propriedade intelectual e se as inovações geradas por estes programas poderão ser tuteladas por este instituto, com a dificuldade acrescida de, assim sendo, determinar quem deverá ser reconhecido como autor ou inventor.
Quanto a estas questões que surgem no domínio da Propriedade Intelectual, as mesmas foram abordadas na obra “A Inteligência Artificial e o Direito de Propriedade Intelectual” que, a partir da origem e evolução deste instituto, bem como baseada nas teorias justificativas da sua criação e soluções análogas aplicadas por outros ordenamentos jurídicos, tenta descodificar as soluções mais profícuas.
Apresentados aqui os principais pontos relevantes quanto a este embrionário sistema, a principal novidade que o Chat GPT traz é a possível mudança da internet e uma reformulação de paradigma, nomeadamente, quanto aos motores de busca existentes à data. Aliás, a resposta da Google à criação do Chat GPT denota claramente o potencial desta ferramenta.
Quanto ao restante, as problemáticas que se levantam com o aparecimento do Chat GPT não diferem das que semelhantes programas equipados com inteligência artificial já colocavam. Todavia, são questões que continuam a merecer a pertinente atenção e discussão, porque, quer queiramos ou não, a inteligência artificial faz parte do mundo atual e do futuro que aí vem.