João Leal Amado
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
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Por acórdão recente, datado de 16/02/2023 e relatado pelo Desembargador Antero Veiga, o Tribunal da Relação de Guimarães decidiu um curioso pleito, da forma que a seguir se sumaria: «O abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium pressupõe uma ofensa clara à violação da confiança da outra parte, resultante de convicção legítima de que, em face dos comportamentos do titular do direito, este não seria exercido. O exercício do direito deve mostrar-se ofensivo das conceções ético-jurídicas dominantes da coletividade, no que respeita à boa-fé e aos bons costumes. Não incorre em abuso de direito o trabalhador, vinculado por contrato a termo, cessado por iniciativa da empregadora invocando a sua caducidade, que, invocando a nulidade da estipulação do termo, deduz ação tendo em vista a declaração de despedimento ilícito, não obstante tenha aceitado receber as quantias que lhe foram entregues pela empregadora, incluindo uma quantia a titulo de compensação. A presunção de aceitação do despedimento consagrada no nº 4 do art. 366.º do C.T. não tem aplicação fora dos casos previstos na lei ─ despedimento coletivo, extinção do posto de trabalho e despedimento por inadaptação» (o texto integral do aresto encontra-se disponível em www.dgsi.pt).
Na espécie, tratava-se de uma trabalhadora, contratada como “ajudante de lar”, por uma entidade empregadora que se dedicava à atividade de apoio social a pessoas idosas, com alojamento. A trabalhadora em causa foi contratada a termo certo, pelo período de seis meses, mediante a remuneração mensal de 635,00€. A justificação para a aposição de termo resolutivo ao contrato residiu, segundo constava do contrato escrito assinado pelas partes, no disposto na al. f) do n.º 2 do artigo 140.º do Código do Trabalho (CT), concretamente o «acréscimo excecional de atividade da empresa, resultado da entrada de novos utentes que comportou um acréscimo repentino de atividade».
Celebrado pelo prazo de seis meses, com início em 22 de maio de 2020 e termo em 21 de novembro de 2020, o contrato teria sido objeto de uma renovação, por mais seis meses, sendo que, através de carta datada de 30 de abril de 2021, a entidade empregadora comunicou à trabalhadora que o termo do contrato que haviam celebrado, após a dita renovação, se iria verificar em 19 de maio de 2021, pelo que era este dia o último em que a trabalhadora prestaria o seu trabalho no lar de idosos.
Aquando da cessação do contrato, por alegada caducidade do mesmo, invocada pela entidade empregadora, a trabalhadora recebeu os créditos a que tinha direito (retribuição mensal, férias e subsídio de férias, subsídio de Natal e, ainda, a importância de 399,00€, esta última, decerto, a título de compensação pela caducidade acionada pelo empregador, devida por força do disposto no art. 344.º do CT e correspondente a 18 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo de antiguidade). A trabalhadora recebeu as quantias supramencionadas e solicitou ainda à entidade empregadora o envio dos documentos para efeitos de fundo de desemprego.
Entretanto, a trabalhadora intentou uma ação judicial, alegando que o contrato que havia celebrado com a entidade empregadora deveria ser considerado um contrato sem prazo, de duração indeterminada, por o termo resolutivo aposto ao contrato ser nulo, em virtude do disposto nos arts. 141.º e 147.º do CT. E, assim sendo, a comunicação escrita endereçada pela entidade empregadora à trabalhadora deveria ser tida pelo tribunal como exprimindo uma declaração de vontade extintiva do contrato, por iniciativa da entidade empregadora, isto é, como um verdadeiro despedimento e, naturalmente, como um despedimento ilícito.
Até aqui, dir-se-ia, nada de novo, nem nada de especial. O que é surpreendente, neste caso, é que a entidade empregadora resolveu invocar que a trabalhadora, ao intentar a ação judicial em causa, para fazer valer aquilo que considerava ser os seus direitos laborais, estaria a atuar em manifesto “abuso de direito”, dado não ter devolvido à entidade empregadora a verba correspondente à dita “compensação de caducidade” (in casu, os tais 399,00€), a mais de ter solicitado à mesma entidade empregadora “os papéis respeitantes ao fundo de desemprego”.
O argumento patronal é bizarro, ainda que, em rigor, não inédito[1]. Na ótica do empregador, a aceitação da compensação pela caducidade do contrato, pelo trabalhador, bem como a solicitação da pertinente declaração para efeitos de subsídio de desemprego equivaleriam, bem vistas as coisas, à aceitação de que o contrato de trabalho em causa era, realmente, um contrato a termo, cuja caducidade havia sido legitimamente acionada pela entidade empregadora. Logo, a contestação, em sede judicial, da natureza precária do vínculo contratual, bem como a invocação de que, a final, o que havia ocorrido deveria ser tido, pelo tribunal, como um despedimento ilícito, tudo isto seria inadmissível, pois corresponderia a uma atuação em abuso de direito, por parte da trabalhadora em causa.
A meu ver, nem por não ser inédita esta argumentação deixa de ser bizarra, raiando mesmo o absurdo. É caso para exclamar: tomemos a sério os direitos fundamentais! Entre nós, vigora a garantia constitucional da segurança no emprego, consagrada no art. 53.º da CRP, da qual decorre que a contratação a termo não é livre, antes só é legítima se obedecer a um conjunto relativamente apertado de condições materiais e de requisitos formais, cuja inobservância implica que o contrato de trabalho em causa, ainda que celebrado a termo resolutivo, deva ser reconduzido ao modelo standard e considerado um contrato de duração indeterminada. O contrato a termo é visto com desconfiança pelo ordenamento jurídico, justamente por significar emprego precário para o trabalhador ─ e a precariedade laboral, para a nossa Ordem Jurídica, é um desvalor, devendo ser combatida ou, pelo menos, controlada[2].
É natural, por isso, que o trabalhador, qualquer trabalhador, alegadamente contratado a termo, possa, dentro do prazo legal, recorrer ao tribunal para contestar a legalidade dessa modalidade precária e desvaliosa de contratação laboral. Que possa, então, alegar que a pretensa declaração de caducidade, emitida pelo empregador, equivale, em retas contas, a um despedimento ilícito. E que possa, coerentemente, reivindicar os direitos resultantes de tal ilicitude do despedimento. Caberá, depois, ao tribunal decidir, em conformidade com a garantia constitucional da segurança no emprego e com o direito fundamental a não ser despedido sem justa causa.
Alega o empregador que, para tanto, a trabalhadora deveria ter recusado (ou, no mínimo, deveria ter-lhe devolvido) a verba correspondente à dita “compensação de caducidade”. E, parece, sugere ainda que ela nem deveria ter-lhe solicitado qualquer declaração, para efeitos de subsídio de desemprego. Argumentos estranhos! Afinal, a trabalhadora ficou mesmo desempregada, por força da declaração extintiva proferida pelo empregador, pelo que é natural que procurasse recorrer à proteção social em matéria de desemprego. Os trabalhadores, di-lo a nossa Constituição, no seu art. 59.º, n.º 1, al. e), têm direito «à assistência material, quando involuntariamente se encontrem em situação de desemprego». E, justamente, estando desempregada é mais do que razoável e expectável que a trabalhadora não devolva à entidade empregadora a quantia de 399,00€, relativa à dita compensação de caducidade. Por que motivo haveria ela de devolver tal quantia ao empregador? Afinal, aquela quantia sempre lhe será devida, no pior dos cenários para a trabalhadora, isto é, na hipótese de o tribunal vir a dar razão à entidade empregadora, considerando que, in casu, o que existia era um verdadeiro e legítimo contrato a prazo, cuja caducidade havia ocorrido, na data indicada pela entidade empregadora. Nessa hipótese, de derrota judicial para a trabalhadora, ela sempre faria jus aos ditos 399,00€. Na hipótese contrária, aquela que veio a verificar-se, o tribunal consideraria que o caso se traduziria em um despedimento ilícito, com as conhecidas consequências patrimoniais para a entidade empregadora, em matéria de indemnização pelos danos causados pelo despedimento, de “salários intercalares”, de eventual “indemnização de antiguidade”, etc. ─ tudo isto, seguramente, ascendendo a um montante bem superior ao dos referidos 399,00€[3].
Onde está o alegado venire contra factum proprium por parte da trabalhadora? A sua conduta contraditória, surpreendente, frustradora da legítima confiança da entidade empregadora? Nenhures! Bem pelo contrário, aquilo que a nossa lei quer é que a trabalhadora disponha de um determinado lapso de tempo, após a extinção do contrato (neste caso, um ano), para se informar, para ponderar, para decidir se recorre ou não ao tribunal, em ordem a fazer valer os seus créditos ou a impugnar aquilo que entenda ser um despedimento ilícito. Acresce que, neste caso, é quase obsceno invocar abuso de direito por parte de uma trabalhadora que aufere uma retribuição mensal de 635,00€, que é lançada no desemprego, que tem de fazer face às contingências da vida (da sua e, quiçá, do seu agregado familiar) e para quem esses 399,00€, sendo, decerto, uma verba modesta, bem poderão representar uma verba preciosa para esses efeitos “alimentares”.
Abuso de direito? Não. Exercício de direitos! Exercício de direitos fundamentais. E, é sabido, os direitos defendem-se, exercendo-os. É verdade que a nossa lei do trabalho tem uma iníqua disposição, aplicável em caso de despedimento coletivo, por extinção do posto de trabalho ou por inadaptação, que força o trabalhador a devolver ao empregador a compensação a que tem direito nessas modalidades de despedimento, se quiser impugnar judicialmente essa decisão patronal. Refiro-me, como é sabido, ao disposto no art. 366.º, n.º 5 e n.º 6, do CT[4]. Mas é óbvio que esta norma não tem aplicação nos casos, distintos, em que não está em causa qualquer despedimento por razões objetivas, mas em que o que se discute é se houve caducidade de um contrato a termo ou, pelo contrário, se houve um despedimento ilícito no quadro de um contrato sem termo.
Nada na lei
obriga a trabalhadora a devolver os tais 399,00€. Nem a lei obriga, nem há
qualquer razão lógica que a isso conduza, pelas razões invocadas. Sejamos
claros: o que as entidades patronais pretendem, com esta obnóxia linha de
argumentação, é usar o dinheiro, a pressão financeira, a situação de carência
económica vivida por um (ex-)trabalhador para tentar sanar quaisquer vícios de
uma rutura contratual por elas ilicitamente promovida. Não. Não há aqui
qualquer abuso de direito por parte da trabalhadora. O que há, a meu ver, é alguma
falta de pudor patronal. O que há é o despautério de tentar inviabilizar o
exercício de direitos fundamentais por parte do trabalhador, máxime o direito à
segurança no emprego e o direito a não ser despedido sem justa causa. E isto,
sim, é inadmissível, num Estado de Direito Democrático como é o nosso. O
tribunal decidiu bem. E quase apetece dizer ao empregador, a todos os empregadores
que percorrem esta via e usam e abusam desta retórica argumentativa: shame on you!
[1] Casos de contornos similares a este, envolvendo contratos a termo, o pagamento da compensação de caducidade e o argumento patronal de que o trabalhador, aceitando a verba em causa e não a devolvendo, ficaria impedido de recorrer ao tribunal para contestar que o seu contrato era a prazo e impugnar o respetivo despedimento, por alegado “abuso de direito”, foram já apreciados pela Relação do Porto, em Acórdão de 11/04/2013 (Paula Leal de Carvalho), e pela Relação de Lisboa, em dois Acórdãos mais recentes, de 9/9/2020 (Francisca Mendes) e de 9/11/2022 (Alda Martins). Em todas as decisões os tribunais rechaçaram os argumentos da entidade empregadora, atinentes ao “abuso de direito”.
[2] Para uma perspetiva geral sobre esta temática, seja-me permitido remeter para o meu Contrato de Trabalho – Noções Básicas, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, pp. 81-104, bem como, para maiores desenvolvimentos, para Joana Nunes Vicente, AA.VV., Direito do Trabalho – Relação Individual, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 357-425.
[3] Bastaria, nesse caso, deduzir esses 399,00€ ao referido montante. Aliás, como se sabe, idêntica dedução seria devida no tocante ao subsídio de desemprego que a trabalhadora tivesse auferido nesse período, por força do disposto no art. 390.º, n.º 2, al. c), do CT.
[4] Para desenvolvimentos a este propósito, por último, João Leal Amado e Catarina Gomes Santos, «A compensação pelo despedimento, a presunção de aceitação deste e a obrigatória devolução daquela: algumas considerações em torno da jurisprudência recente», Revista Internacional de Direito do Trabalho, IDT, n.º 4, 2023 (no prelo).