João Filipe Graça

Licenciado (2011) e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas, menção em Direito Administrativo (2013), pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Pós-Graduado em Contratação Pública (2014), pelo Centro de Estudos de Direito Público e Regulação (CEDIPRE), da FDUC; e Pós-Graduado em Concessões e Parcerias Público-Privadas (2020), pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, da FDUL.

Colabora com o CEDIPRE, o qual tem dedicado especial atenção à contratação pública no ordenamento jurídico português.
Advogado no departamento de Direito Público na Sociedade Rebelo de Sousa & Advogados Associados, SP, RL.


Comentários sobre Contratação Pública é a mais recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado a 27 de Outubro de 2022.

Consulte a obra neste link.


O regime jurídico associado à organização e o funcionamento do Sistema Elétrico Nacional (“SEN”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 15/2022, de 14 de janeiro, estabelece como intervenientes, designadamente, as Comunidades de Energia Renovável (“CER”)[1], assim como os Autoconsumidores[2]. Trata-se, na verdade, de uma realidade que terá impacto ao nível da descentralização do modelo e formas de produção de energia no ordenamento jurídico português, com especial impacto na produção de eletricidade e no combate contra a pobreza energética, facto que adquire relevo ao nível municipal, nomeadamente, por força do vasto património imobiliário, bem como o crescente fenómeno associado à transferência de competências para as Autarquias Locais.

Contudo, esta possibilidade também concedida aos Municípios impõe vários desafios. Nos que diz respeito às CER´s, e sem prejuízo dos demais pressupostos fixados nos termos do n.º 1 do artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 15/2022, de 14 de janeiro, é preciso salientar que aquelas surgem configuradas pelo Legislador como uma pessoa coletiva e como tal detentoras de personalidade e capacidade jurídica. Neste domínio, o Legislador consagra uma ampla liberdade relativamente à forma da CER, podendo a mesma revestir, designadamente, a forma de (i) sociedade, (ii) cooperativa ou (iii) associação. Por outro lado, a CER pode ser constituída por pessoas singulares ou coletivas, de natureza pública ou privada, incluindo pequenas e médias empresas[3] ou Autarquias Locais (Municípios e/ou Freguesias).

Face ao disposto no n.º 1 do artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 15/2022, de 14 de janeiro, é possível avançar três cenários quanto aos sujeitos que podem constituir/participar numa CER: (i) apenas por sujeitos privados; (ii) entre sujeitos privados e entidades públicas e (iii) entre entidades públicas. Contudo, a forma segundo a qual foi estabelecida a possibilidade de uma CER ser constituída ou participada, designadamente, por um Município, implica a compreensão do relacionamento das CER, pelo menos, com as regras do Código dos Contratos Públicos (“CCP”), bem como com as regras do Regime Jurídico da Atividade Empresarial Local e das Participações Locais[4] (“RJAEL”).

No que diz respeito às CER a constituir sob a forma de sociedade, somos levados para duas considerações: (i), quando a CER seja constituída ou participada entre sujeitos privados e um Municípios e (ii) quando a CER seja constituída ou participada apenas por Municípios (isolada ou conjuntamente).

Recorde-se que o contrato de sociedade, para além de constituir um contrato administrativo quando associe entidades públicas e parceiros privados, nos termos da al. d) do n.º 1 do artigo 280.º do CCP[5], constitui um dos contratos cujas prestações contratuais se consideram estar submetidas à concorrência de mercado, nos termos da al. f) do n.º 2 do artigo 16.º do CCP. Neste contexto, e nos casos em que a CER seja constituída ou participada entre sujeitos privados e um Município, será necessário ter em consideração que, face ao disposto no n.º 2 do artigo 1.º do CCP, a celebração do contrato de sociedade estará sujeita ao lançamento de um procedimento pré-contratual, tanto mais que a al. c) do n.º 1 do artigo 2.º do CCP tipifica os Municípios (enquanto Autarquias Locais) como entidades adjudicantes. Não obstante, e dada a especificidade do contrato de sociedade, também dispõe o n.º 3 do artigo 31.º do CCP que, quando por razões de interesse público relevante o justifiquem, pode adotar-se o ajuste direto para a formação de contratos de sociedade[6], exigindo-se, porém, uma especial fundamentação, dada a especial qualificação do interesse público.

Já relativamente aos casos em que a CER seja constituída sob a forma de sociedade, mas cujos sujeitos sejam apenas constituídos por Municípios, sempre se dirá que o CCP admite que o contrato de sociedade seja configurado no âmbito da contratação excluída, nos termos da al. d) do n.º 4 do artigo 5.º do CCP. Contudo, sempre serão aplicáveis, por força do n.º 1 do artigo 5.º-B do CCP, os princípios gerais da atividade administrativa, bem como, com as devidas adaptações, os princípios gerais da contratação pública.

Superada a questão da contratação pública, a criação/participação numa CER, por parte de um Município, terá de passar pelo crivo do RJAEL. Com efeito, o contrato de sociedade pressupõe a criação de uma nova entidade dotada de personalidade jurídica, sendo que, nos termos do n.º 1 do artigo 19.º do RJAEL, são qualificadas como empresas locais as sociedades constituídas ou participadas nos termos da lei comercial, nas quais as entidades públicas participantes (v.g., Municípios; Associações de Municípios e Áreas Metropolitanas) possam exercer, de forma direta ou indireta, uma influência dominante em razão da verificação de um dos seguintes requisitos: a) detenção da maioria do capital ou dos direitos de voto; b) direito de designar ou destituir a maioria dos membros do órgão de gestão, de administração ou de fiscalização; c) qualquer outra forma de controlo de gestão.

Por outro lado, importa ter presente que a constituição ou a participação em empresas locais, ou seja, a constituição ou participação de uma CER por, designadamente, um Município, tem, por força do disposto no n.º 2 do artigo 22.º do RJAEL, de ser comunicada à Inspeção-Geral de Finanças e à Direção-Geral das Autarquias Locais, bem como, quando exista, à entidade reguladora do restivo sector, exigindo-se, ainda e obrigatoriamente, uma fiscalização prévia do Tribunal de Contas[7], independentemente do valor associado ao ato (ou seja, o ato que concretiza a constituição ou a participação em empresas locais)[8], tal como decorre do disposto no n.º 1 e n.º 2 do artigo 23.º do RJAEL.

Existindo a intenção de um sujeito privado participar numa CER, já constituída, designadamente por Municípios, importa ter presente que, por força do artigo 33.º do RJAEL, será necessário, para a escolha dos parceiros privados, adotar um procedimento pré-contratual segundo as regras da contratação pública, como já referido.

Não obstante a forma simplificada que decorre da leitura do n.º 1 do artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 15/2022, de 14 de janeiro, as exigências associadas à constituição ou participação numa CER, quando integrada, designadamente, por um Município, fazem com que estejamos na presença de um procedimento complexo que exige uma articulação entre as regras que estabelecem a organização e o funcionamento do sistema elétrico nacional, as regras da contratação pública, as regras que fixam a atividade empresarial local, as regras decorrentes das constituição de sociedades comercias e ainda as que decorrem da fiscalização prévia do Tribunal de Contas, facto que não facilita a participação (lato senso) de um Município nas CER´s.

            Por seu turno, e no que agora diz respeito ao Autoconsumo, importa ter presente que o mesmo pode ser dividido entre (i) Autoconsumo individual, ou seja, quando o autoconsumo é para consumo numa instalação elétrica de utilização ou (ii) Autoconsumo coletivo, ou seja, quando o autoconsumo é para consumo em duas ou mais instalação elétrica de utilização[9]. Em ambos os casos existe a necessidade de cumprir com o concreto tipo de controlo prévio (ou a respetiva isenção), consagrado no artigo 11.º, por imposição do disposto no artigo 81.º, ambos do Decreto-Lei n.º 15/2022, de 14 de janeiro. Não obstante, e centrando a questão ao nível do Autoconsumo coletivo, podem colocar-se duas questões em UPAC´s a serem instaladas em imóveis dos Municípios para Autoconsumo coletivo: (i) a necessidade de aprovar um regulamento interno e (ii) o dever de designar uma Entidade Gestora do Autoconsumo Coletivo (“EGAC”).

No que diz respeito à aprovação do Regulamento Interno, imposta por força do n.º 1 do artigo 86.º do Decreto-Lei n.º 15/2022, de 14 de janeiro, o qual deve ser comunicado à DGEG, prende-se com a necessidade de fixar, pelo menos, os requisitos de acesso de novos membros e saída de participantes existentes; as maiorias deliberativas exigíveis; o modo de partilha da energia elétrica produzida para autoconsumo e o pagamento das tarifas devidas; o destino dos excedentes do autoconsumo;  a política de relacionamento comercial a adotar; e, se for caso a aplicação da respetiva receita. Embora o Decreto-Lei n.º 15/2022, de 14 de janeiro, não fixe a competência para a aprovação do Regulamento Interno, face às características do mesmo e as matérias que visa regular, deve-se considerar que o mesmo tem eficácia externa, razão pela qual tal aprovação será da competência da Assembleia Municipal, sob proposta da Câmara Municipal, por força do disposto na al. g) do n.º 1 do artigo 25.º da Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro[10].

Por outro lado, existindo um Autoconsumo coletivo, é imposto pelo n.º 2 do artigo 86.º do Decreto-Lei n.º 15/2022, de 14 de janeiro, a designação de uma EGAC[11], a qual, tudo indica, também poderá ser desempenhada pela aquisição de serviços de uma Empresa de Serviços Energéticos[12]. Com efeito, não sendo exigido no Autoconsumo coletivo a criação de uma pessoa coletiva, a figura da EGEC terá como competências a prática dos atos de gestão operacional da atividade corrente, incluindo, designadamente, a gestão da rede interna; a matéria de partilha da produção e respetivos coeficientes; o relacionamento comercial a adotar para os excedentes, bem como outros assuntos que lhe sejam cometidos pelos autoconsumidores. Também no que diz respeito à designação da EGAC, nada impede os Municípios de incorporarem a figura do Gestor de Energia e Recursos, figura que, embora tenha sido concebida no âmbito da Administração Pública direta e indireta[13], sempre poderá ser introduzida no âmbito municipal, a título de boas práticas na obtenção da eficiência energética.

O atual contexto energético, vivenciado em particular na União Europeia, irá impor a necessidade de obter novas formas de energia, mas também novos modelos que permitam sistemas de fornecimento energético alternativos e flexíveis. É neste contexto que as CER´s e o Autoconsumo coletivo constituem duas vias, também colocadas à disposição dos Municípios, de combater as alterações climáticas, assim como o premente combate a pobreza energética.


[1] Nos termos da al. f) do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 15/2022, de 14 de janeiro, os Autoconsumidores são definidos como “um consumidor final que produz energia renovável para consumo próprio, nas suas instalações situadas no território nacional, e que pode armazenar ou vender eletricidade com origem renovável de produção própria, desde que, para os autoconsumidores de energia renovável não domésticos, essas atividades não constituam a sua principal atividade comercial ou profissional, podendo exercer esta atividade em autoconsumo individual ou ACI ou em autoconsumo coletivo ou ACC quando, respetivamente o autoconsumo é para consumo numa instalação elétrica de utilização (IU), ou em duas ou mais IU, estando, em ambos os casos, a ou as UPAC instaladas nessa(s) IU ou na sua proximidade e com ligações entre si através da RESP, e/ou de uma rede interna e/ou por linha direta, sem prejuízo de o direito de propriedade sobre a UPAC ser titulado por terceiro(s)”.

[2]   Nos termos do n.º 1 do artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 15/2022, de 14 de janeiro, a CER corresponde a: “uma pessoa coletiva constituída nos termos do presente decreto-lei, mediante adesão aberta e voluntária dos seus membros, sócios ou acionistas, os quais podem ser pessoas singulares ou coletivas, de natureza pública ou privada, incluindo, nomeadamente, pequenas e médias empresas ou autarquias locais, por estes controlada e que, cumulativamente:

a) Os membros ou participantes estejam localizados na proximidade dos projetos de energia renovável ou desenvolvam atividades relacionadas com os projetos de energia renovável da respetiva comunidade de energia, incluindo necessariamente UPAC;

b) Os referidos projetos sejam detidos e desenvolvidos pela CER ou por terceiros, desde que em benefício e ao serviço daquela;

c) A CER tenha por objetivo principal propiciar aos membros ou às localidades onde opera a comunidade benefícios ambientais, económicos e sociais em vez de lucros financeiros”.

[3] Parte-se do pressuposto que o Legislador reconduziu o conceito de pequenas e médias empresas às noções consagradas na Recomendação da Comissão, de 6 de maio de 2003, relativa à definição de micro, pequenas e médias empresas (2003/361/CE).

[4] V., Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto.

[5] No mesmo sentido, Pedro Costa Gonçalves, Regime Jurídico da Atividade Empresarial Local, Almedina, 2012, cit., p. 126.

[6] A este respeito é referido que “trata-se do único caso em que se pode invocar o interesse público como fundamento material de adopção de um procedimento” Cfr., Pedro Costa Gonçalves, Direito dos Contratos Públicos, 5.ª Ed, Almedina, 2021, cit., p. 551.

[7] Consagrada no art. 44.º e ss. da Lei n.º 98/97, de 26 de agosto, diploma que aprova a Lei da Organização e Processo do Tribunal de Contas, bem como a Resolução n.º 3/2022, que aprova as Instruções que estabelecem a disciplina aplicável à organização, impulso e tramitação de processos de fiscalização prévia do Tribunal de Contas.

[8] É referido que “seja pois qual for o valor da entrada (em dinheiro ou em espécie), há lugar à fiscalização prévia” Pedro Costa Gonçalves, Regime Jurídico da Atividade Empresarial Local, Almedina, 2012, cit., p. 132.

[9] Neste sentido, al. f) do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 15/2022, de 14 de janeiro.

[10] Diploma que estabelece o regime jurídico das autarquias locais, aprova o estatuto das entidades intermunicipais, estabelece o regime jurídico da transferência de competências do Estado para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais e aprova o regime jurídico do associativismo autárquico.

[11] Nos termos da al. gg) do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 15/2022, de 14 de janeiro, o EGAC é “a pessoa, singular ou coletiva, que pode ou não ser autoconsumidor, designada pelos autoconsumidores coletivos, para a prática de atos em sua representação”.

[12] Neste sentido, n.º 4 do artigo 3 do Despacho n.º 6227/2022, de 18 de maio, diploma que aprova o Regulamento do Sistema de Qualificação de Empresas de Serviços Energéticos e revoga o Despacho Normativo n.º 15/2012, de 3 de julho.

[13] Neste sentido, Ponto I da Resolução do Conselho de Ministros, n.º 104/2020, de 24 de novembro, diploma que aprova o Programa de Eficiência de Recursos na Administração Pública para o período até 2030.