F. A. Duarte da Rocha

Advogado, Licenciado e Mestre em Ciências Jurídico-Empresariais, com menção em Direito Empresarial, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.


O Estatuto do Administrador de Facto Não Legitimado das Sociedades Comerciais é a recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado a 25 de Agosto 2022.

Consulte a obra neste link.


As sociedades comerciais, ao longo dos tempos, têm apresentado uma conformação cada vez mais complexa e, não raras vezes, difusa e pouco rigorosa. Com efeito, o considerável aumento das suas dimensões, a emergência de novas exigências do mercado económico-financeiro global e, consequentemente, os maiores obstáculos na monitorização da gestão/administração, são inquestionáveis fatores contributivos para que o órgão de administração (que exerce funções de gestão interna e representação externa societária) seja, inúmeras vezes, furtado das suas funções por quem não tem legitimidade legal para as exercer.

            Hodiernamente, “assistimos a um número considerável de pessoas a participarem, em maior ou menor medida, na gestão comercial, financeira e laboral, com mais ou menos independência, com mais ou menos autoridade, com mais ou menos nível de importância dos actos praticados”[1]. Porém, nem todas as pessoas que participam na gestão societária preenchem os predicados normativos para o efeito. Algumas fazem-no sem qualquer investidura formal, ou seja, sem um título adquirido por designação/nomeação social que lhes confira as competências intrínsecas ao órgão de administração – título que lhes atribua a qualidade de administradores[2] de direito.

            De facto, nos dias de hoje, descortinamos uma parcela considerável de pessoas a imiscuírem-se na gestão societária sem possuírem um título formal bastante para o efeito. É nessa sequência que surge a figura do administrador de facto, criada pela doutrina e aplicada pela jurisprudência com o verdadeiro intento inicial de responsabilizar os sujeitos que administram a sociedade sem serem detentores do referenciado título formal.

            COUTINHO DE ABREU e ELISABETE RAMOS apresentaram uma noção da figura: “é administrador de facto em sentido amplo, quem, sem título bastante, exerce, direta ou indiretamente e de modo autónomo (não subordinadamente), funções próprias de administrador de direito da sociedade”[3]. O administrador de facto direto, como a nomenclatura enuncia, será o sujeito que exerce diretamente as funções de gestão/administração da sociedade, que compete ao administrador de direito, sem se servir da atuação mediata deste ou de outro administrador de facto[4]. Por seu turno, será administrador de facto indireto (também denominado de administrador na sombra ou por interposta pessoa[5]) aquele sujeito que, sem qualquer cargo de administração, determina a atuação/conduta dos administradores “oficiais”, sejam eles de direito ou de facto direto.

            Estes administradores de facto, fruto da sua qualificação, podem ser sujeitos a responsabilidades, deveres, mas, igualmente, beneficiários de certos direitos. Além disso, a sua atuação em sede de representação externa poderá vincular a sociedade representada.

            Ora, embora exista um inquestionável mérito na criação desta figura, o administrador de facto reconhecido no mundo jurídico, apresenta um sério problema de qualificação.

            De facto, nem todos os sujeitos que se imiscuem na atuação gestória das sociedades poderão ser qualificados como administradores de facto, nos termos doutrinal e jurisprudencialmente reconhecidos. Existem, efetivamente, rigorosos e cumulativos requisitos para que um sujeito, que pratica atos típicos de administração, seja classificado como administrador de facto.

            RICARDO COSTA, apresenta três tipos de administração fáctica jussocietariamente relevante (correspondente à administração de facto conhecida e, em geral, admitida pela doutrina), que, como a terminologia indica, vão buscar o seu estatuto ao regime societário (através do conveniente uso da metodologia jurídica), quais sendo:

  1. administrador de facto ope legis – é o administrador de facto reconhecido pela própria lei. É de facto, pois apesar de obter legitimidade legal, carece de um título formal que lhe permita adquirir/manter a qualidade de administrador de facto (v.g. administrador de direito que vê o seu mandato caducado, mas que, ainda assim, mantém as suas funções até à designação de novos administradores)[6].
  2. administrador de facto com designação inválida – aquele sujeito que, embora esteja sob a veste de uma nomeação/designação inválida, adquire a qualidade de administrador de facto pelo mero exercício da atividade de administração[7].
  3. administrador de facto legitimado – definido como aquele sujeito que, (1) sem investidura formal e sem legitimidade legal, realiza direta ou indiretamente, atos de administração, (2) com intensidade qualitativa – ou seja, atos que compõem a “alta direção” -, (3) com intensidade quantitativa – isto é, de forma reiterada, continua, sistemática, ou, até mesmo, através de atos isolados que apresentem uma certa expressividade económico-funcional -, (4) com autonomia decisória – com independência em relação a quaisquer terceiras entidades e pessoas –  e, por último, (5) com anuência societária – a atuação do sujeito tem que ser conhecida/consentida/tolerada pela maioria dos sócios e/ou pelos administradores de direito[8].

Aqui chegados, conseguimos concluir que para um sujeito ser administrador de facto, nos termos reconhecidos pela doutrina e jurisprudência, será necessário o preenchimento de uma série de escrupulosos pressupostos.

            Pois bem, as perquirições nascem quando estamos na presença de sujeitos que exercem atos típicos de administração de “alta direção”, mas que, de algum modo, não preenchem os predicados necessários para aquisição da qualidade de administradores de facto jussocietariamente relevantes. Isto porque, não são administradores de direito, não foram designados, ainda que de forma inválida, nem, tampouco, preenchem os extenuantes requisitos do administrador de facto legitimado.

            Com efeito, existe uma certa vacuidade jurídico-aplicativa quando um sujeito, sem investidura formal (porque existia e deixou de existir, ou porque a designação foi inválida, ou pelo facto de nunca ter existido tal investidura), pratica atos de administração com “intensidade qualitativa”, mas sem compreender algum, alguns ou todos os demais requisitos de legitimação (“intensidade quantitativa”, autonomia decisória e tolerância societária) – chamamos este sujeito de administrador de facto não legitimado.

            Portanto, procuramos responder, no fundo, às seguintes indagações: este indivíduo não deverá estar onerado com obrigações e responsabilidades perante a sociedade comercial? a sua atuação de eventual cariz filantrópico não deverá ser tutelada? E a sua atuação perante terceiros? Poderá esta ser, de alguma forma, acautelada? Urge-se uma resposta positiva às preditas interrogações.

            Por força disso, lançamos o nosso contributo através da criação da figura do administrador de facto não legitimado, que necessariamente mudará o paradigma definitório da figura, ao abrir novos espaços de administração fáctica e, inexoravelmente, impondo um (novo) conceito de superlativa amplitude de administrador de facto.

            Destarte, porque é infrutífera a criação, tão-só, da figura, iniciaremos o seu trajeto de consolidação jurídica com a constituição do seu devido estatuto com direitos, deveres, responsabilidades e (eventual) vinculação societária face à sua atuação.

             É, esse o intento primordial da obra “O ESTATUTO DO ADMINISTRADOR DE FACTO NÃO LEGITIMADO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS”.


[1] Ricardo Costa, Os Administradores de Facto das Sociedades Comerciais, Reimpressão, Tese de Dissertação para a obtenção do Grau de Doutor, FDUC, Almedina, Coimbra, 2016 p. 661.

[2] Denominação com sentido amplo, abarcando, de forma indistinta, os “administradores” das sociedades anónimas e os “gerentes” dos restantes tipos sociais.

[3] J. M. Coutinho de Abreu/Elisabete Ramos, “Responsabilidade Civil de Administradores e de Sócios Controladores (Notas sobre o art. 379º do Código do Trabalho)” Miscelâneas nº 3, IDET, Almedina, Coimbra, 2004, p. 41.

[4] RICARDO COSTA, últ. ob. cit. p. 646.

[5] RICARDO COSTA, últ. ob. cit. p. 648.

[6] Sobre esta tipologia, vide RICARDO COSTA, últ. ob. cit. pp. 611 e ss. e 644.

[7] RICARDO COSTA, últ. ob. cit. pp. 843 a 846.

[8] RICARDO COSTA, últ. ob. cit. pp. 658 e ss.