João Leal Amado

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.


Consulte a sua obra neste link.


1.“Careca estúpido!” = assédio sexual?

«Calling a man “bald” is sex-related harassment, an employment tribunal has ruled».

O assunto interessou-me, por óbvias e ostensivas razões. Eis a notícia na íntegra, publicada no The Guardian, de 13 de maio de 2022[1]:

«Hair loss is much more prevalent among men than women so using it to describe someone is a form of sex-related harassment, a judge has concluded. Commenting on a man’s baldness in the workplace is equivalent to remarking on the size of a woman’s breasts, the finding suggests.

The ruling – made by a panel of three men who in making their judgment bemoaned their own lack of hair – comes in a case between a veteran electrician and the manufacturing firm where he was employed.

Tony Finn – who is in line for compensation – had worked for the West Yorkshire-based British Bung Company for almost 24 years when he was fired in May last year. He took the company to the tribunal claiming, among other things, he had been the victim of sex-related harassment after an incident with the factory supervisor, Jamie King.

Finn alleged that during a shopfloor row in July 2019, King had referred to him as a “bald cunt”. The tribunal heard Finn was less upset by the “Anglo-Saxon” language than the comment on his appearance.

The allegation resulted in the panel – led by Judge Jonathan Brain – deliberating on whether remarking on his baldness was simply insulting or actually harassment.

“We have little doubt that being referred to in this pejorative manner was unwanted conduct as far as [Finn] was concerned,” the tribunal found. “This is strong language. Although, as we find, industrial language was commonplace on this West Yorkshire factory floor, in our judgment Mr King crossed the line by making remarks personal to the claimant about his appearance.”

Finn had not complained about the use of “industrial language” but was particularly affronted at being called bald, the panel said.

“It is difficult to conclude other than that Mr King uttered those words with the purpose of violating [Finn’s] dignity and creating an intimidating, hostile, degrading, humiliating or offensive environment for him,” the judgment found. “Of his own admission, Mr King’s intention was to threaten [Finn] and to insult him. In our judgment, there is a connection between the word ‘bald’ on the one hand and the protected characteristic of sex on the other.

“[The company’s lawyer] was right to submit that women as well as men may be bald. However, as all three members of the tribunal will vouchsafe, baldness is much more prevalent in men than women.

“We find it to be inherently related to sex.”

As part of its ruling, the panel raised a previous tribunal case where a man was found to have sexually discriminated against a woman by remarking on the size of her breasts to rebut the firm’s point. “It is much more likely that a person on the receiving end of a comment such as that which was made in [that] case would be female,” the tribunal said.

“So too, it is much more likely that a person on the receiving end of a remark such as that made by Mr King would be male. Mr King made the remark with a view to hurting the claimant by commenting on his appearance which is often found amongst men.

“The tribunal therefore determines that by referring to the claimant as a ‘bald cunt’ … Mr King’s conduct was unwanted, it was a violation of the claimant’s dignity, it created an intimidating environment for him, it was done for that purpose, and it related to the claimant’s sex.”

Finn’s compensation will be determined at a later date».

2. Um caso “perplexizante”

O caso decidido pelo tribunal britânico apresenta, creio, vários elementos realmente “perplexizantes”, como agora se diz. Por três motivos.

Em primeiro lugar, parece que o trabalhador queixoso, vítima do insulto proveniente do seu superior hierárquico, ficou abalado com a referência à sua calvície, ao facto, aliás, verdadeiro, de ser “bald”, mas já não se queixou de também ter sido acusado de ser “cunt”, isto é, um estúpido, um ser desagradável, aborrecido, antipático, situado algures entre o bronco e o grunho ─ atributos, estes últimos, que não sabemos se eram ou não verdadeiros.

Em segundo lugar, a despeito de ser um insulto isolado, um impropério singular, uma exclamação única (“bald cunt!”), o tribunal entendeu que tanto bastava para configurar uma situação de assédio laboral.

Em terceiro lugar, o tribunal não só entendeu que existia, in casu, uma situação de assédio como concluiu que se tratava de assédio sexual (ou, pelo menos, de assédio relacionado com o sexo), dado que a calvície é uma condição que afeta muito mais os homens do que as mulheres.

Pela minha parte, confesso, fico com imensas dúvidas, em relação aos três tópicos acima mencionados.

Não percebo, desde logo, como é que alguém que, como sucede com o autor destas linhas, é efetivamente careca, fica ofendido em último grau por lhe dizerem que o é ─ e, em simultâneo, não se ofende por o apodarem de “cunt”. Não parece, a meus olhos, uma reação muito compreensível ou inteligente, pelo que até fica a dúvida sobre se, afinal, o chefe não teria alguma razão… Que eu seja “cunt” ainda vá, mas um “cunt” de cabeleira frondosa, terá pensado o trabalhador. Calvo é que jamais!

Depois, tenho as maiores dúvidas que se deva configurar como assédio uma conduta isolada, uma exclamação mais bruta, uma acusação mais destemperada, um insulto seco. A unicidade do ato ofensivo afasta-o, creio, da noção mesma de assédio. O assédio pressupõe, ou devia pressupor, uma ideia de cerco, de acossamento, de perseguição insistente, de malha de condutas constrangedoras, de teia entretecida ao longo do tempo, coisa que aqui, manifestamente, não sucedeu.

Por último, tenho também as maiores dúvidas sobre a caracterização desta conduta como assédio de natureza sexual. Um superior hierárquico rotular um seu subordinado de “careca estúpido” possui, bem vistas as coisas, alguma conotação sexual? Duvido. Se o subordinado mancasse, talvez o chefe o acusasse de ser um “coxo estúpido”. Seria diferente? Claro, coxos há-os, provavelmente em número semelhante, entre homens e mulheres, ao passo que, no reino da calvície, os homens predominam. Do ponto de vista do direito antidiscriminatório, a calvície não é, seguramente, um fator neutro[2]. Mas será isto bastante para que o referido assédio se converta em assédio de cariz sexual? Não estará o tribunal a ir demasiado longe?

É certo que há aqui uma dimensão de género, que não deve ser ignorada. Desde logo, creio que se a vítima do insulto fosse do sexo feminino e fosse apodada de “careca estúpida”, isso teria um potencial ofensivo maior do que na versão masculina. É verdade, chamar careca a uma mulher é mais forte, mais acintoso, é um insulto mais “pesado”, do que chamar careca a um homem, quiçá pelos estereótipos de beleza predominantes, quiçá por a calvície feminina ser muito menos frequente (e ser também, claro, muito mais frequentemente ocultada, através de perucas, cabeleiras, capachinhos e dispositivos similares). Ainda assim, parece algo fantasioso considerar que há aqui um elemento de género, sexual, suficiente para converter o alegado assédio num assédio de cariz sexual.

O paralelismo estabelecido pelo tribunal entre um comentário desdenhoso à calvície de um homem e um comentário sobre o tamanho dos seios de uma mulher também não me parece convincente. Na verdade, a existência de seios mais ou menos fartos é uma das diferenças anatómicas entre homens e mulheres, diferença, por muitos, considerada assaz interessante. Não tenho dúvidas que comentários e observações, por parte de chefes ou colegas de trabalho, em torno dos seios de uma trabalhadora ─ sejam comentários mais ou menos libidinosos, realçando a eventual magnificência dos mesmos, sejam comentários mais ou menos vexatórios, criticando a sua suposta fealdade ─ constituem, amiúde, situações de assédio sexual. Mas isso, creio, não é linearmente transponível para o caso da calvície[3]. Certo, há mais, muito mais homens carecas do que mulheres carecas. Mas então, se adotarmos a perspetiva do tribunal, é de perguntar: caso, por exemplo, alguém insulte outrem com o epíteto de “velha estúpida”, será que devemos qualificar essa afirmação insultuosa como constitutiva de assédio sexual, visto que também há muito mais velhas do que velhos? Pela minha parte, creio que “velha estúpida” ou “velho estúpido” dão no mesmo, ainda que esse epíteto seja mais frequentemente dirigido a mulheres do que a homens ─ não porque elas sejam mais estúpidas do que eles, mas porque eles morrem mais cedo do que elas.

A retórica argumentativa do tribunal compreende-se, os juízes (todos eles, pelos vistos, carecas) lidam com um conceito amplo de assédio e trabalham com a distinção, bem conhecida, entre discriminações diretas e indiretas. Ainda assim, não resisto a considerar que, com tanta sofisticação argumentativa, o tribunal britânico acaba por chegar a uma conclusão algo artificiosa. E, nessa medida, bastante duvidosa.      

3. O assédio no Código do Trabalho

Como é em Portugal? O contrato de trabalho surge marcado pelas notas da inserção organizacional e da subordinação jurídica do trabalhador. Trata‑se de um contrato que se cumpre e se executa, tipicamente, num quadro empresarial. E a empresa, sabemo‑lo, traduz‑se num espaço de autoridade e de convivialidade: a empresa é um espaço hierarquizado, em que se desenvolvem relações de poder; e é também um espaço relacional, no qual a intersubjetividade das pessoas se vai forjando e afirmando quotidianamente.

Ora, um espaço com estas características – território de autoridade e de convivialidade – constituiu, desde sempre, um palco privilegiado para os múltiplos e diversificados fenómenos que integram o assédio ou mobbing.E, ao que parece, o fenómeno da violência psicológica no trabalho tende a agudizar‑se nos nossos dias, por diversas razões: seja porque estes são tempos marcados por uma intensa pressão competitiva, por uma grande agressividade concorrencial e por uma acentuada precariedade do emprego (fatores que contribuem para aumentar o assédio entre trabalhadores, seja o assédio horizontal seja o assédio vertical descendente promovido pelos superiores hierárquicos em relação aos seus subalternos), seja, até, porque o assédio surge, amiúde, como efeito perverso da tutela constitucional da segurança no emprego, traduzindo‑se numa estratégia patronal de acossamento do trabalhador, tendente a induzi‑lo a abandonar, ele mesmo, o seu emprego (assédio estratégico, promovido pelo empregador em ordem a “quebrar” o trabalhador, impelindo‑o a demitir‑se).

É verdade que o assédio constitui, ainda hoje, um conceito juridicamente fluido e impreciso, podendo traduzir‑se em comportamentos muito diversificados. O assédio pode ser vertical ou horizontal: naquele caso, o assediante será, em princípio, o próprio empregador ou um superior hierárquico do trabalhador; neste caso, o assédio ocorre entre trabalhadores entre os quais não existe uma relação hierárquica. O assédio pode ter, ou não, caráter discriminatório: em regra, o assédio traduz‑se numa conduta discriminatória, que envolve um tratamento diferenciado para um dado trabalhador; mas não tem, forçosamente, de ser discriminatório (no limite, o empregador pode, desde logo, assediar todos os trabalhadores da empresa, sem distinção). As condutas assediantes possuem, em regra, um caráter duradouro, reiterado, persistente, originando um conflito em escalada entre os sujeitos (mas, note-se, este elemento de reiteração não é indispensável à luz da nossa lei). E o assédio pode ser, ou não, intencional: com efeito, nos termos do art. 29º do Código do Trabalho, ele consiste num qualquer comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em fator de discriminação, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, criar um ambiente laboral hostil ou humilhante, etc.

O presente caso do trabalhador, alegadamente, “bald cunt”, ilustra bem as dificuldades com que a jurisprudência, entre nós e lá fora, se depara, ao tentar delimitar a noção jurídica de assédio ─ e, dentro deste, ao procurar separar o assédio moral do assédio sexual[4]. A meu ver, o assédio, como categoria jurídica, traduz-se numa aquisição importantíssima para o Direito do Trabalho do séc. XXI, como manifestação da tutela da personalidade, da dignidade e da integridade física e moral do trabalhador. Ainda assim, no tocante à conceptualização do assédio, e na mira de evitar uma certa banalização na sua invocação (“tudo é, ou pode ser, assédio”), afigura-se bastante discutível que a lei prescinda dos elementos da reiteração da conduta e da intencionalidade do agente.

No caso, a intencionalidade ofensiva do agente, ao referir-se ao trabalhador como “bald cunt”, é insofismável. Já a reiteração está manifestamente ausente (o que me faz duvidar do acerto da subsunção da mesma na noção de assédio) e o cariz sexual do insulto é também muito discutível. Tomar a sério o assédio e, dentro deste, o assédio sexual, pressupõe, julgo, que não se alargue em demasia o perímetro destes conceitos. Quando tudo se torna assédio ─ e assédio de contornos sexuais ─, corremos o sério risco de acabar por banalizar (e, por esta via, tolerar) o verdadeiro assédio sexual…


[1] Disponível online, em www.theguardian.com.

[2] Assim, se, por exemplo, a ausência de calvície for requerida como condição para aceder a um posto de trabalho, aí teremos, decerto, um caso de discriminação indireta multifatorial, em razão do sexo (a calvície afeta, sobretudo, os homens) e em razão da idade (a calvície afeta, sobretudo, os mais velhos).

[3] «The idea that calling a man “bald” constitutes sex-based harassment that is equivalent to commenting on the size of a woman breasts is dubious at best and insulting at worst», escreveu, também no The Guardian, de 14 de maio de 2022, Arwa Mahdawi, em comentário à sentença. Estou de acordo.

[4] Dir-se-ia, com propriedade, que os magistrados (e as magistradas) estão carecas de saber das dificuldades operacionais ligadas ao conceito jurídico de assédio.