Raquel Brízida Castro

Doutora em Direito; Professora da FDUL; Advogada.


Justiça Constitucional em Tempos de Emergência é a mais recente obra de sua autoria. Obra que o Grupo Almedina publica e disponibiliza no mercado a 25 de Agosto 2022.

Consulte a obra neste link.


As últimas décadas foram férteis em situações críticas ou de emergência: o 11 de Setembro e a crise das liberdades por causa do terrorismo; a emergência financeira gerada pela crise 2008-2009; a emergência sanitária causada pela pandemia; incerta é ainda a emergência que resultará do impacto da guerra da Ucrânia.

Num sistema diferenciado de emergência, ainda que atípico, como veremos, como é o português, em que a normalidade e a exceção convocam distintos enquadramentos jurídicos, cabe questionar a eventual pertinência da previsão constitucional de um modelo intermédio. Um paradigma suscetível de acomodar respostas normativas extremas em situações cuja severidade, diagnosticável a partir da avaliação das circunstâncias concretas, não justifique convocar o estado de exceção constitucional, mas careça de uma resposta urgente, eventualmente excessiva, à luz do quadro jurídico aplicável em normalidade constitucional.

Esse modelo normativo intermédio teria impacto na Constituição dos poderes de exceção e integrar-se-ia, de pleno, numa Constituição dos direitos de exceção, assente num modelo substancial e gradativo de limitação de direitos fundamentais, conforme sustentaremos. A unidade e congruência da Constituição de emergência – a dos poderes e a dos direitos – seriam garantidas pelo respeito do princípio do equilíbrio institucional dos poderes de crise, ajustado a uma leitura hermenêutica do princípio da separação de poderes funcionalmente adequada ao ordenamento jurídico-constitucional português de emergência. O trânsito de um modelo abstrato-dedutivo para um “método normativo-concreto na abordagem e tratamento dogmático do princípio da separação de poderes” serviria, concomitantemente, argumentos pragmáticos e metodológicos, especialmente convocados pela Constituição de cise ou de emergência.

Daí a relevância aprofundamento dogmático-científico e consequente construção conceptual da Constituição portuguesa de emergência. Esta obra, agora publicada pela Almedina, é o nosso contributo, com as seguintes conclusões.

Conclusões da Obra

1. O atual arquétipo constitucional português de poderes de emergência respeita os traços estruturantes da história constitucional portuguesa. A atual Constituição portuguesa de emergência não se inspirou em modelos episódicos extremos de concentração de poderes. Na história constitucional portuguesa, apenas é possível localizar um modelo esteado na concentração de poderes no poder executivo e na suspensão do princípio da separação de poderes, no contexto autoritário do anterior regime constitucional (Constituição de 1933) e durante o período revolucionário, em 1974.

2. O modelo português de emergência é um modelo dualista, pois agrupa normas constitucionais e legislativas de emergência.

3. O modelo português de emergência é diferenciado e rejeita uma visão unitária da ordem jurídica, impondo uma clara separação, no plano jurídico, entre a normalidade e a exceção ou emergência. Essa separação reflete-se, todavia, numa diferenciação atípica, pois exclui aspetos imunes à emergência e que constituem, na Constituição vigente, limites jus fundamentais negativos intangíveis, mesmo em estados críticos.

4. A Constituição portuguesa de emergência consagra, expressamente, uma visão unitária do equilíbrio institucional de poderes que se reflete no sistema de atos normativos e numa determinada repartição constitucional das competências dos órgãos de soberania e das regiões autónomas, em normalidade e em exceção constitucionais. Esse equilíbrio institucional de poderes, tal como resulta da Constituição portuguesa de emergência, implica a conjugação dessa repartição constitucional das competências, prevista para a normalidade constitucional, com os poderes normativos extraordinários conferidos ao Presidente da República em estado de exceção., sem pôr em causa o desenho concreto do princípio da separação de poderes.

5. A Constituição portuguesa de emergência configura um modelo constitucional reforçado, através de um musculado regime jurídico-constitucional de exceção que inclui limites formais, orgânicos, circunstanciais e materiais.

6. Apesar da prática exercida durante o combate a pandemia, o ordenamento jurídico-constitucional português não desenha a regulação do estado de emergência como um poder normativo partilhado entre o Presidente da República e o Governo, que consistiria num verdadeiro e exclusivo dualismo no exercício do poder executivo. Tal esboço negligenciaria a proeminência normativa extraordinária do Presidente da República, bem como a posição constitucional do Parlamento no equilíbrio institucional de poderes, ambicionado constitucionalmente. Compete à Declaração do Estado de Exceção, para a qual contribuem, em termos normativos, Presidente e Parlamento, sem prejuízo do destaque presidencial, adotar as opções políticas primárias da regulação da situação de crise.

7. Ao Governo compete executar a declaração do estado de exceção através, exatamente, das mesmas competências que a Constituição lhe confere em normalidade constitucional, as quais não podem ser ampliadas nem restringidas através da declaração do estado de exceção.

8. A distinção qualitativa pressuposta no modelo leis versus medidas, proposto por Böckenförde, tem um alcance reduzido no ordenamento jurídico-constitucional português de exceção, atenta a atual configuração positiva da Constituição de emergência, designadamente no que concerne ao respetivo sistema de atos normativos.

9. Com a exceção da atribuição constitucional de poderes normativos ao Presidente, inexistentes em normalidade constitucional, o equilíbrio institucional de poderes que resulta da repartição constitucional das competências dos órgãos de soberania e das regiões autónomas, vigente em normalidade constitucional deve ser garantido, mesmo em situação de crise ou de emergência.

10. As medidas de emergência, de natureza alegadamente administrativa, não podem, legitimamente, almejar suspender direitos fundamentais, pois a Constituição atribui essa competência exclusiva à Declaração do estado de exceção. As limitações mais severas de direitos fundamentais carecem das garantias constitucionais apenas disponíveis em estado de exceção, declarado nos termos constitucionais.

11. O modelo constitucional português de emergência é de separação de poderes “sui generis”:

11.1. Prevê um paradigma dinâmico e complexo de interdependência dos poderes, que reclama a intervenção de uma pluralidade de órgãos na sua decretação, regulação e execução. Mesmo em estado de exceção, a Constituição faz questão de salvaguardar os seus instrumentos de controlo mútuos e interorgânicos. Ao esquema de repartição de poderes de emergência pelos vários órgãos corresponde, naturalmente, um complexo sistema de atos normativos, legislativos e administrativos, onde cada um deles desempenha uma função constitucionalmente única relevante;

11.2. A separação entre o poder de declaração e o poder de execução é atenuada no ordenamento jurídico-constitucional português, sendo compensada por um sistema complexo de freios e contrapesos que envolve vários órgãos e tipos de atos normativos

11.3. O legislador constituinte português optou por não proceder a uma separação clara entre o órgão a quem a Constituição confere a competência para a declaração do estado de exceção – o Presidente da República, mediante autorização parlamentar – e os órgãos que têm os poderes de regulação primária de emergência – o Presidente da República e a Assembleia da República, com a proeminência do primeiro. Fez questão, contudo, de distinguir os órgãos a quem compete, em medidas diversas, a declaração e a regulação primária da emergência e o órgão a quem compete a execução do Decreto presidencial.

11.4. Os poderes normativos de emergência em geral dividem-se entre a (1) declaração e regulação primária e (2) a execução da Declaração do estado de exceção. Os riscos de uma eventual concentração de poderes são significativamente atenuados, porquanto, sem prejuízo do destaque presidencial, Presidente e Parlamento partilham papeis decisivos, legitimados pelo seu estatuto constitucional. Por sua vez, uma tese moderada quanto à densidade normativa da declaração do estado de exceção impede delegações implícitas do Presidente ao Governo, evitando que o Governo absorva os espaços em branco, extravasando os limites constitucionais das suas competências.

11.5. Incontestavelmente, o modelo constitucional português, no que se refere à decretação e exercício de poderes de emergência, não é equiparável ao modelo neorromano.

12. Apenas uma aceção substancial (não formal) e gradativa de suspensão do exercício de direitos fundamentais se afigura adequada a um modelo constitucional de suspensão regulada como o português. A restrição e a suspensão do exercício de direitos fundamentais configuram subespécies de limitações de direitos fundamentais, separadas por diferentes graus de intensidade das afetações de direitos fundamentais, permitindo a suspensão intervenções desvantajosas intoleradas pelo princípio da proporcionalidade em normalidade constitucional.

12.1.A esta distinção não correspondem diferentes tipos de estados de emergência ou de crise, posto que uma categorização nesses termos, hermeticamente positivada, legitimaria a possibilidade de escolha, pelo poder executivo, do tipo que lhe fosse politicamente mais conveniente, ou que permitisse intervenções mais severas com o menor escrutínio, político-constitucional, independentemente das circunstâncias concretas e respetiva gravidade.

12.2. A opção por uma aceção formal e abstrata de suspensão do exercício dos direitos importaria as seguintes consequências:

(1) Legitimaria um modelo em que a determinação do grau de afetação dos direitos fundamentais e o respetivo procedimento podem ser objeto de uma simples escolha prévia e abstrata, pelos órgãos competentes, de uma categoria de emergência, prescindindo-se da avaliação dos pressupostos de facto e da respetiva gravidade;

(2) Implicaria conferir ao Governo o poder de definir, discricionariamente, a própria aceção constitucional de suspensão;

(3) Uma suspensão abstrata e total, como mero efeito da declaração da situação crítica, independentemente da avaliação das circunstâncias, poderia revelar-se absolutamente desproporcional e excessiva e, por conseguinte, inconstitucional.

(4) No contexto de um modelo de suspensão regulada, uma aceção substancial e gradativa de suspensão do exercício de direitos justifica-se, precisamente, pelos seus vínculos constitucionais, materiais, procedimentais e de forma, suscetíveis de serem ativados nos vários momentos do estado de exceção.

(5) Em estado de exceção, mantem-se a tutela jurisdicional dos direitos fundamentais, os quais, mais ou menos enfraquecidos (suspensos ou restringidos), não se encontram desprotegidos.

14. O modelo português de poderes de emergência “in action” utilizado no combate à pandemia de Covid-19, ficou marcado por, pelo menos, duas fortes tendências indesejáveis: (i) a excessiva governamentalização dos poderes de emergência; (ii) a renúncia, mesmo eclipse parlamentar.

14.1. As amplas delegações normativas conferidas ao Governo pelos Decretos presidenciais, durante a pandemia, conduziram à governamentalização dos poderes de emergência, através do exercício governamental de vastos poderes normativos extraordinários sobre domínios materiais da reserva de lei parlamentar, à margem de todas as regras constitucionais de competência e da separação de poderes;

14.2. Não obstante os argumentos favoráveis à prevalência da tese moderada do conteúdo da declaração do estado de exceção, o direito de emergência constituiu, no contexto da crise pandémica, na prática, produto normativo simultâneo – partilhado – do Presidente e do Governo. As delegações implícitas legitimadas pelo Decreto presidencial, somadas ao amorfismo parlamentar, levou a que o Governo absorvesse largas doses de criação normativa, à revelia do equilíbrio institucional de poderes ambicionado pelo legislador constituinte de emergência;

14.3. Perante a inexistência de uma cláusula atributiva de competências normativas extraordinárias ao Governo e de uma cláusula que subtraia competências legislativas parlamentares, as competências do Governo mantêm-se inalteradas em estado de exceção, vigorando exatamente os mesmos limites à sua titularidade e exercício.

15. A emergência portuguesa pandémica conduziu à renúncia, pelo Parlamento, dos seus poderes legislativos e de fiscalização política do executivo, frustrando as expectativas constitucionais. Esse foi o resultado visível de um verdadeiro jogo de sombras desenvolvido no tabuleiro constitucional.

15.1. No plano do sistema de governo, a aniquilação parlamentar conduz a uma tendencial hiperbolização do papel do Presidente da República durante situações de crise ou de emergência; por sua vez, a partilha presidencial implícita do seu poder normativo extraordinário com o Governo, perante um Parlamento ausente, conduz à absorção desses poderes pelo Governo e, consequentemente, à anestesia de qualquer forma de responsabilização do Governo perante os dois órgãos eleitos diretamente;

15.2. Foi possível identificar o exercício de um dualismo no exercício do poder político, suscetível de recortar um poder executivo bicéfalo, geralmente irreconhecível à luz do perfil português de governo;

15.3. O equilíbrio institucional de poderes que a Constituição de emergência pretende proteger, mesmo em estado de exceção, depende, precisamente, da preservação do papel do Parlamento, nos planos político e legislativo;

15.4. Qualquer um destes efeitos indesejáveis teve preços elevados: para além do enfraquecimento das competências políticas e legislativas do Parlamento, na prática com a sua anuência e colaboração, as garantias constitucionais dos direitos fundamentais, designadamente a sua tutela jurisdicional, foram feridas de morte, pois, as opções normativas do Governo, adotadas à margem da Constituição de emergência, no quadro de um Estado de Direito alternativo, permitiram contornar todo o sistema, empobrecendo os meios impugnatórios ao dispor dos cidadãos.

16. A Declaração do estado de exceção, em sentido amplo, inclui o Decreto presidencial e a Resolução Parlamentar e deve conter a regulação primária da situação de exceção:

16.1. O Decreto presidencial assume, claramente, natureza jurídico-normativa; o seu conteúdo não é livre nem discricionário, porquanto a Constituição e a Lei estabelecem exigências concretas de regulação;

17.3. Constitui um “ato normativo complexo”, implicando a intervenção de atos de controlo de outros órgãos constitucionais com vista à produção dos seus efeitos jurídicos;

17.4. A Resolução Parlamentar assume uma eficácia normativa “sui generis”. Reveste natureza constitutiva, atenta a posição constitucional do Parlamento no quadro do equilíbrio institucional de poderes ambicionado pelo legislador constituinte e o respetivo poder de influenciar o conteúdo da declaração do estado de exceção. A expectativa do legislador é a de que o conteúdo da Resolução parlamentar concretize e pormenorize o Decreto presidencial, contribuindo para a configuração da vontade normativa da Declaração do Estado de Exceção, cabendo ao Presidente a iniciativa e uma posição normativa de destaque no momento declaratório.

18. O modelo português de emergência não é de concentração de poderes no executivo. Qualquer tentativa de elaboração de um modelo de concentração de poderes no Governo esbarra na proeminência normativa do Presidente da República e na relevância jurídico-constitucional do Parlamento.

19. O equilíbrio institucional de poderes que a Constituição portuguesa de emergência pretende assegurar em estado de exceção pode ser garantido e não corresponde a um modelo de concentração de poderes. A interpretação da Constituição dos poderes de emergência não pode afetar o equilíbrio institucional de poderes que decorre da Constituição dos poderes da normalidade constitucional.

20. O princípio da garantia do equilíbrio institucional de poderes configura um limite negativo intangível do estado de exceção. Há que extrair do comando constitucional do n.º 7, do artigo 19.º, da CRP, as seguintes orientações hermenêuticas:

(i)         A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência não pode afetar, na sua aplicação ao estado de exceção, as regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania e de governo próprio das regiões autónomas ou aos direitos e imunidades dos respetivos titulares;

(i)         Durante o estado de exceção, nenhum órgão pode afetar a repartição de competências que se funda num determinado modelo de equilíbrio institucional de poderes, seja para produzir efeitos na própria situação crítica seja para o futuro, após o regresso à normalidade constitucional;

Considerando:

(ii)       que o arquétipo português de emergência vigente não é um modelo de concentração de poderes no executivo/Governo, pelos motivos expostos;

(iii)      a ausência de uma norma que confira poderes normativos extraordinários ao Governo em estado de exceção ou que subtraia competências políticas e legislativas ao Parlamento em favor do Presidente ou do Governo;

(iv)       a atribuição constitucional de poderes normativos extraordinários ao Presidente da República em estado de exceção;

julgamos que a Constituição de emergência pode garantir o mesmo equilíbrio institucional de poderes, vigente em normalidade constitucional, se garantir a posição jurídico-constitucional do Parlamento, nos termos seguintes:

a.         no momento declaratório, através do seu contributo para a vontade normativa da declaração do estado de exceção;

b.         no decurso do estado de exceção, através da salvaguarda do exercício das competências políticas e legislativas parlamentares, designadamente as atinentes à fiscalização política e à reserva de lei;

Nestes termos, a Constituição dos poderes de emergência é reconfigurada no sentido estritamente necessário para acomodar os poderes normativos extraordinários do Presidente no momento declaratório, os quais, sem prejuízo do destaque presidencial, são partilhados com o Parlamento. Quanto ao restante, mantem-se a repartição de competências dos órgãos de soberania e das regiões autónomas aplicável à normalidade constitucional, tal como resulta das respetivas normas constitucionais.

21. O equilíbrio institucional de poderes, constitucionalmente desejado, postula o respeito pelas regras constitucionais de forma e competência descritas, designadamente a garantia do princípio da reserva de lei, em especial, perante medidas restritivas de direitos e liberdades jus fundamentais.

22. A reserva de lei qualifica uma determinada matéria como um domínio material de legalidade necessária, considerando a sua especial relevância jus fundamental, assinalada, expressa e deliberadamente, pelo legislador constituinte. A respetiva regulação carece, nos termos constitucionais, de ato legislativo, devendo, no ordenamento jurídico-constitucional português, revestir a forma de lei ou de decreto-lei autorizado.

22.1. Nesses domínios materiais constitucionalmente protegidos, a possibilidade de emanação de regulamentos é problemática: para a doutrina maioritária, porém, sendo esta uma exigência reforçada pelo regime específico de proteção dos direitos, no que concerne às regras de natureza orgânica contidas no artigo 18.º, a mesma abrange todas as intervenções legislativas, independentemente da sua natureza;

22.2. A reserva traduz-se, nalguns casos (na reserva absoluta e, na reserva relativa, nos direitos, liberdades e garantias), numa exigência de densificação total da norma legislativa. Em consequência, os regulamentos independentes, tendencialmente inovatórios, são proibidos, por atentarem contra a reserva de lei;

22.3. A reserva de Parlamento é não apenas uma reserva democrática ou de Plenário, mas, simultaneamente, material e formal. O argumento da respetiva positivação constitucional, é, para nós, decisivo, e diferencia-nos do modelo alemão que não contem nenhuma cláusula de reserva de lei;

22.4.    Não se pretende legitimar uma potencial expansão da reserva de lei para além do catálogo constitucional. Em contraposição às teses que sustentam o congelamento da reserva de lei em estado de emergência, constitucional ou legal, trata-se de sublinhar as opções do próprio legislador constituinte, em matéria de essencialidade.

22. Nos estados críticos declarados nos termos constitucionais, considerando a relevância jurídico-normativa da Declaração do estado de exceção, quando o Governo pretende legislar nos limites da declaração do estado de exceção, não carece de autorização parlamentar adicional:

(i)Os limites a ter em conta pelo Governo são os que constam da declaração do estado de exceção, em sentido amplo, o que inclui o Decreto presidencial e a resolução da AR, nos termos sustentados supra: ou seja, no contexto da tese moderada quanto à densidade normativa exigida;

(ii)Desta forma, mantem-se o equilíbrio institucional de poderes que a Constituição de emergência pretende garantir através do comando constitucional do n.º 7, do artigo 19.º, da CRP:

(a) Cumpre-se a proeminência normativa do Presidente da República sem pôr em causa a posição constitucional da Assembleia da República no exercício da subfunção legislativa, no respeito pela reserva de lei;

(b) Perante a inexistência de uma cláusula constitucional atributiva de poderes legislativos extraordinários ao Governo, garante-se a reserva de lei, nos termos sustentados, sem restringir as competências legislativas governamentais;

(c) Enfim, cumpre-se a Constituição de emergência e o modelo constitucional positivo de crise.

(iii)Nas matérias protegidas pela reserva de lei, o Governo só terá de obter autorização parlamentar se pretender legislar para além das opções primárias que o Presidente da República e a Assembleia da República assumem na declaração do estado de exceção, no que concerne à regulação da emergência;

23. Embora seja um órgão integrante de ambas as funções administrativa e legislativa, o Governo não pode, legitimamente, optar pelo tipo de ato cujo processo produtivo lhe é, politicamente, mais conveniente, em preterição dos limites constitucionais inerentes ao exercício daquela actividade jurídico-pública. Mesmo nas matérias menos relevantes, excluídas da reserva, avulta a preferência pelo ato sujeito a controlos interorgânicos.

24. A Constituição portuguesa não legitima uma “reserva Constitucional de Administração de Emergência Sanitária ou de Crise” oponível à Reserva de Lei.

24.1. A Constituição portuguesa não consagra uma “reserva constitucional material de normas administrativas de Emergência ou de Crise”;

24.2. O conceito de “Estado de Direito de emergência sanitária” ou de qualquer outro tipo de “Estado de Direito de crise”, fundado sem supostas “internormatividades técnicas ou científicas”, é incompatível com a Constituição portuguesa de Emergência; não é suscetível de integrar a “cadeia de legitimação legal” de medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias, em substituição da intervenção do poder legislativo enquanto representante da soberania popular;

24.3. Não é concebível uma suposta “reserva de administração de emergência sanitária ou de crise”, alternativa ao Estado de Direito Democrático, ou que se exprima em normas administrativas fundadas diretamente na Constituição, incidentes nos domínios materiais constitucionalmente protegidos pela reserva de lei;

25. A interpretação do conceito constitucional de “providências necessárias”, alojado no n.º 8, do artigo 19.º, da CRP, deve: (i) atenta a supremacia da Constituição, ser harmonizada com o princípio basilar da Constituição de emergência, que é o da garantia do equilíbrio institucional de poderes vigente em normalidade constitucional; (ii) contribuir, seguramente, para o restabelecimento da ordem constitucional; (iii) corresponder ao sentido hermenêutico mais conforme à Constituição; e (iv)por fim, em termos decisivos, o interprete deverá refutar qualquer resultado hermenêutico que subverta a separação de poderes, mesmo em estado de exceção.

26. Uma das principais consequências do modelo de resposta normativa à pandemia concretizado fora dos estados de exceção constitucional é o enfraquecimento da tutela jurisdicional de direitos fundamentais e da suscetibilidade de controlo da constitucionalidade das medidas restritivas pelo Tribunal Constitucional. Ao fundar-se num modelo alternativo à Constituição positiva de emergência, o sistema de garantias há-de revelar-se, sempre, inaplicável e desadequado.

27. Da análise da jurisprudência constitucional que versou medidas restritivas anti-pandémicas adotadas durante os períodos de emergência, declarados nos termos constitucionais e legais, é possível extrair duas conclusões: (i) a absoluta ausência de processos de fiscalização abstrata da constitucionalidade; (ii) o reduzido número de recursos de constitucionalidade, em sede de fiscalização concreta;

27.1. Estas conclusões encontram, alegadamente, justificação na natureza jurídica e temporal das medidas restritivas adotadas, designadamente, o recurso a normas administrativas não abrangidas pela fiscalização preventiva da constitucionalidade e de curta vigência, suscitando o pretenso problema da utilidade processual da sua eventual declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.

28. A fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade constitui um meio apto para a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de normas com vigência muito localizada:

28.1. A fiscalização sucessiva abstrata da constitucionalidade tem como objeto a erradicação da norma inconstitucional bem como dos seus efeitos, sendo irrelevante uma eventual vigência localizada. Em rigor, nem sequer é necessário que tenha produzido efeitos, pois o pedido de fiscalização pode ser feito logo a partir da publicação da norma, em plena “vacatio legis”, independentemente da respetiva produção de efeitos;

28.2. O próprio Tribunal Constitucional tem entendido que o facto de determinada norma ter sido revogada não é, “de per si” suficiente para obstar a sua declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral;

28.3. Acresce a enorme suscetibilidade da reedição da mesma norma, em contextos de emergência;

28.4. O princípio da intangibilidade do caso julgados pode ser contrariado por decisão do Tribunal Constitucional, “quando a norma (declarada inconstitucional ) respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido”;

28.5. No contexto da responsabilidade civil extracontratual do Estado por ação legislativa, embora não constitua pressuposto da ação de responsabilidade civil, a existência de uma decisão do TC que tenha declarado ou julgado inconstitucional ou ilegal uma norma legal ou regulamentar pode ser útil para o particular, devendo considerar-se comprovado o requisito da ilicitude.

29. A pandemia veio agravar a percepção das insuficiências do sistema português de fiscalização concreta e a respeito das gigantescas dificuldades jurídico-processuais que constrangem o acesso à justiça constitucional especializada no ordenamento jurídico-constitucional português. Um teimoso diagnóstico que, aliado à surpreendente inercia das entidades a quem a Constituição confere legitimidade para a fiscalização abstrata, constitui mais um argumento, decisivo, para a sua reformulação em sede de revisão constitucional.

30. O contencioso administrativo não se revelou, no presente domínio material, especialmente amigo dos diretos fundamentais:

30.1. Não obstante alguma evolução favorável em matéria de delimitação da jurisdição administrativa constitucionalmente ajustada, sobressaiu uma orientação hermenêutica conducente a resultados pouco satisfatórios, em matéria de tutela jurisdicional efetiva. Salvo algumas exceções, atenta a curta vigência temporal das medidas restritivas ou suspensivas e a leitura que o STA fez dos vários pressupostos processuais, a tutela jurisdicional dos direitos fundamentais em estados de emergência, constitucionais e legais, revelou-se insuficiente e quase inviável;

30.2. Mesmo os meios processuais que geravam maiores expetativas mostraram-se, na maioria absoluta dos casos, inservíveis para lidar com situações críticas pois rendem-se, como veremos, salvo alguns casos de criatividade jurídica de geometria varável, ao pragmatismo das dificuldades processuais geradas pela curta vigência das normas administrativas que regulam os períodos críticos;

31. No presente contexto, o debate sobre os limites funcionais da justiça administrativa, circunscreve-se, fundamentalmente, ao problema da autocontenção jurisdicional ou deferência jurisdicional em relação à Administração, em tempos de emergência, fundada (e agravada por) numa ímpar criatividade hermenêutica.

Benavente, Agosto de 2022