João Leal Amado

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra


Consulte a sua obra neste link.


Estamos em julho, já no verão, a sofrer os efeitos de uma forte onda de calor e, claro, em plena época de “mercado de transferências” de jogadores de futebol. Neste mercado, em que milhões e milhões de euros são tranquilamente dependidos, a despeito da pandemia, da guerra, do que quer que seja, ganhou particular destaque, a nível interno, a recente transferência de David Carmo do Braga para o Porto. Segundo as notícias abundantemente veiculadas, a transferência de David Carmo foi realizada através de um acordo entre os dois clubes em causa, um contrato de transferência em que, como é usual, o clube “comprador” assumiu a obrigação de pagar uma determinada verba ao clube “vendedor”, em ordem a que este viabilizasse a transferência do atleta, materializada na celebração de um contrato de trabalho desportivo entre o Porto e David Carmo. No caso, essa verba assumiu a impressionante cifra de €20 milhões, a que se somariam outros €2,5 milhões, em função de determinados objetivos desportivos.

         Até aqui, dir-se-ia, nada de especial, este tipo de negócio é frequente e a tendência para estabelecer o preço a pagar pela contratação de um determinado atleta em função de certos objetivos a alcançar, eventualmente, no futuro, é também prática cada vez mais comum no meio desportivo, em particular no âmbito do futebol profissional. Contudo, a polémica instalou-se depois de serem divulgados os tais objetivos que, se atingidos, poderiam fazer com que o Porto pagasse mais €2,5 milhões ao Braga. Muito simples: nas próximas cinco épocas desportivas (período de vigência estabelecido no contrato de trabalho celebrado entre o Porto e David Carmo), o Porto pagará ao Braga €500 mil, por cada época, caso o Porto venha a ser o campeão nacional nessa época. Vale dizer, se o Porto não ganhar qualquer título de campeão nacional nas próximas cinco épocas, nada mais pagará ao Braga; se, pelo contrário, o Porto conseguir o Penta, nessas cinco épocas, pagará ao Braga os tais €2,5 milhões; e se o Porto, como é estatisticamente mais provável, ganhar alguns desses campeonatos, então pagará ao Braga €500 mil, por cada título conquistado.

         Esta “cláusula de objetivos” tem alimentado muita polémica, na silly season que atravessamos. E a polémica, a meu ver, é mais do que justificada. A cláusula em questão viola, estou convicto, princípios basilares da competição desportiva profissional e mostra-se ilegal e inválida, à luz do nosso ordenamento jurídico-desportivo. Esta não é, ao contrário da opinião por muitos defendida, uma cláusula legal, ainda que eticamente discutível. Esta é mesmo uma cláusula ilegal, como procurarei demonstrar nas linhas subsequentes.

         Antes disso, porém, impõe-se o disclaimer: nada tenho contra as duas instituições em causa neste contrato, o Porto e o Braga. Bem pelo contrário. Sou, desde jovem, adepto do Porto, clube que, ao longo destas últimas décadas, correspondentes à minha vida adulta, me tem proporcionado alegrias enormes, com os êxitos desportivos conseguidos, a nível nacional e internacional. Nasci na década de sessenta, cresci num tempo em que a hegemonia do futebol português cabia, em exclusivo, aos dois principais clubes de Lisboa, o Benfica e o Sporting. Sempre rejeitei o modelo de país veiculado pela hegemonia, desportiva e cultural, dos clubes lisboetas, um modelo em que Portugal era dividido entre Lisboa e a província, entre dois clubes supostamente “nacionais” e os outros, meramente regionais. Sempre, desde a minha infância até hoje, em que já me aproximo da velhice, me pareceu que vivo num país em que há demasiados adeptos de clubes de Lisboa[1]. E, por isso, quando, uns anos após o 25 de abril, o Porto assumiu o seu projeto emancipatório, a intenção de quebrar a hegemonia dos clubes de Lisboa e de estabelecer novas relações de força no futebol português, eu, enquanto adepto, jovem e depois mais maduro, ao longo de décadas, vivi com alegria e entusiasmo todas as concretizações desse ousado projeto. A hegemonia desportiva dos clubes de Lisboa foi quebrada, foi até substituída, amiúde, pela hegemonia desportiva do Porto, dos anos 80 para cá. É claro que a hegemonia cultural e mediática dos clubes de Lisboa subsiste. Mas isso, qualquer adepto do Porto o sabe, apenas contribui para tornar ainda mais saborosas as vitórias obtidas, muitas vezes em condições bastante adversas[2].

         Essa mesma convicção que tenho, a de que vivo num país com excesso de adeptos de clubes de Lisboa, faz com que, logicamente, eu olhe com grande simpatia para o processo de emancipação do Braga, encetado há anos, um processo que procura contestar a lógica instalada dos “três grandes” e que, creio, é benéfico para o futebol português, tanto no plano estritamente desportivo como no plano simbólico e identitário. E o mesmo valerá, claro, para outros casos, tais como o do Vitória de Guimarães, do Marítimo e, quiçá num futuro mais distante (utópico?), o da Académica de Coimbra.

         Feito o disclaimer, todavia, “trabalho é trabalho, conhaque é conhaque”. Enquanto jurista, enquanto académico, enquanto cultor do direito desportivo, não posso deixar de sentir enorme perplexidade perante o teor da cláusula contratual em apreço. Afinal, o Porto e o Braga são adversários, são rivais, são, como a história recente comprova, dois dos quatro sérios candidatos ao título de campeão nacional. E, por força desta cláusula, o Braga aceita receber um prémio pecuniário que pressupõe a sua derrota, o Porto compromete-se a pagar um prémio a um adversário que depende, necessariamente, da sua vitória sobre esse adversário na competição desportiva por ambos disputada.

         Mais: goste-se ou não, a verdade é que, por força desta cláusula contratual, o Porto converte-se, nos próximos cinco anos, no “plano B” do Braga. Isto porque o Braga tentará, claro, ser campeão, conseguir o êxito desportivo que tanto almeja. Mas, se isso não for possível, então o Braga passará a ter interesse em que o campeão seja o Porto, não os rivais de Lisboa, porque cada título do Porto lhe renderá a soma, não despicienda, de €500.000. E não custa imaginar situações, em campeonatos vindouros, nas quais o Braga, a dada altura da época, já tenha a sua classificação estabilizada, mas tenha ainda jogos, potencialmente decisivos para a atribuição do título, com o Porto, o Benfica ou o Sporting…

         Muitas são as vozes que se têm insurgido contra este contrato de transferência (rectius, contra esta particular “cláusula de objetivos” inserida neste contrato), mas, na sua maioria, sem contestar a validade jurídica da mesma, isto é, limitando-se a contestar a sua bondade e a sua razoabilidade, limitando-se a assinalar a sua desconformidade com as regras da ética, sem extrair consequências no plano jurídico[3].

         Pela minha parte, discordo. A prática desportiva e as competições desportivas obedecem a um conjunto de princípios estruturantes, possuem uma axiologia própria, que ao Direito do Desporto cumpre salvaguardar, para assegurar a credibilidade dessas mesmas competições ─ aspeto crucial no âmbito das competições assumidamente profissionais, em que o desporto se volve em espetáculo mediático e multitudinário. A preservação da verdade desportiva, da par conditio, da igualdade entre os vários intervenientes no espetáculo, a prevenção de quaisquer conflitos de interesse, a eliminação de situações aptas a alimentar suspeições (com ou sem fundamento), a defesa e a promoção dos valores inerentes à ética desportiva, tudo isto, afinal, compete ao Direito do Desporto. Ou este ramo do direito, afinal, não passa de um conjunto de afirmações mais ou menos poéticas, destituídas de conteúdo precetivo?

         Ora, nós temos, em Portugal, um diploma legal, aliás o principal diploma legal em matéria desportiva, que consiste na Lei n.º 5/2007, de 1 de janeiro – a Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto. E dessa lei consta uma norma, o art. 3.º, que prescreve que a atividade desportiva é desenvolvida em observância dos princípios da ética desportiva, da defesa do espírito desportivo e da salvaguarda da verdade desportiva. É certo que, como há muito escreveu José Manuel Meirim, em anotação a este artigo, “a precisão dos conceitos continua ausente, o que pode gerar algumas dificuldades na interpretação e aplicação da norma”[4]. Mas, convenhamos, um contrato celebrado entre dois clubes rivais (que jogam um com o outro, um contra o outro, num campeonato em que todos jogam com e contra todos), em que um deles aceita receber do outro, ao longo de um quinquénio, uma verba pecuniária que depende, necessariamente, da vitória do clube pagador e da inerente derrota do clube recetor, não respeita nem promove os valores de uma sã competição desportiva.

         No caso português, creio que esta cláusula contratual vulnera o disposto no art. 3.º da Lei de Bases da Atividade Física e do Deporto, que estabelece critérios vinculativos e orientadores de toda a atividade desportiva, inclusive da profissional. O papel do direito desportivo é, em boa medida, o de evitar que exercícios insensatos de liberdade contratual contribuam para pôr em xeque a credibilidade das competições desportivas profissionais. Dizem-me que este tipo de cláusulas é aceite lá fora, em outros campeonatos, designadamente no Reino Unido. Talvez. E daí? O Reino Unido tem coisas magníficas, claro, mas conserva ainda bizarrias, em pleno séc. XXI, que não me parece que devamos importar – a começar, claro, por ser um Reino, uma monarquia. Francamente, prefiro a república.

         Não quero com isto dizer que quem redigiu e subscreveu o contrato de transferência de David Carmo entre o Braga e o Porto esteja imbuído de qualquer intenção perversa. Porventura, as partes nem terão tido plena consciência das implicações daquilo que, em rigor, estavam a estipular. Não se trata, in casu, de afirmar a existência de qualquer intenção malévola, nem da consciência de que esta cláusula poderia ter efeitos perniciosos, quando chegasse ao conhecimento do público. Mas é justamente isso, os seus efeitos, ao nível da preservação da credibilidade e da verdade da competição desportiva, que importa resguardar. É isso que ao Direito do Desporto cabe salvaguardar. E isso, creio, só se consegue afirmando a ilicitude de cláusulas contratuais deste jaez. 

         Pela minha parte, na condição de adepto do Porto, já disponho de uma excelente justificação para o eventual insucesso desportivo do meu clube nas próximas cinco épocas. Terá sido, afinal, um prudente ato de gestão, que permitiu economizar €500.000 em cada época… Na minha condição de jurista, contudo, preocupado com a deriva decorrente da crescente mercantilização do futebol, creio que o Direito deve impor limites nesta matéria, deve salvaguardar a credibilidade da competição desportiva, deve prevenir a suspeição, deve promover os valores da verdade, da transparência e da ética desportiva. E, assim sendo, estou convicto de que aquela cláusula contratual exorbita do juridicamente admissível.

Bom seria, em nome da credibilidade da competição desportiva e do prestígio das instituições em causa, que os próprios contraentes, de boa-fé, reconhecessem o erro, emendassem a mão e confecionassem uma nova e diferente “cláusula de objetivos”, que não fosse hostil à axiologia jurídico-desportiva.


[1] Reconheço, de qualquer forma, que o clube com mais adeptos a nível nacional, o Benfica, assume, na sua própria denominação, a sua ligação profunda à cidade de Lisboa e, em especial, a uma das suas freguesias, Benfica. Já o Sporting, num estilo mais british, não assume expressamente a sua condição de clube lisboeta, autodenominando-se “de Portugal”. Aliás, há vários Sportings – desde logo, o de Braga, também o da Covilhã, o de Pombal, o Marinhense, até o das Caldas (inequivocamente português!), entre muitos outros, mas, chegados à 2.ª Circular, o de Lisboa apresenta-se, qual sinédoque, tomando a parte pelo todo, como sendo “de Portugal”. 

[2] Em certo sentido, a emergência do Porto no panorama desportivo, a sua revolta com o estatuto de underdog que detinha até meados dos anos 70, operou como uma espécie de terramoto que afetou os clubes de Lisboa, tendo abalado o Benfica e o Sporting, tal como o terramoto de 1755 terá abalado os conventos do Carmo e da Trindade. Daí o título desta crónica, derivado, também, do nome do jogador em causa nesta transferência, David Carmo.

[3] Com exceção, ao que pude apurar, da opinião manifestada pela Dr.ª Rita Garcia Pereira, chamando a atenção para a importância dos princípios no Direito. Ora, isto é tanto mais assim quanto, in casu, esses princípios gerais são recebidos e consagrados em norma legal, como tentamos demonstrar nesta crónica.

[4] Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto – Estudo, Notas e Comentários, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 130.