Paulo Guerra

Juiz Desembargador


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Quem sabe de certezas
não é o poeta.
O mundo que é nosso
é sempre tão pequeno e tão infindo
que só cabe em olhar de menino.

Mia Couto

1. Sabemos que as crianças constituem menos de um terço da população mundial, mas representam mais de metade da população refugiada e a pobreza tem um rosto infantil: mais de metade dos 800 milhões de pessoas que vivem em extrema pobreza são crianças.

As mais excluídas enfrentam sérios riscos de perder a vida antes dos cinco anos de idade, de ver comprometido o seu desenvolvimento pleno e harmonioso, de serem excluídas do sistema educativo, e em muitos casos de serem vítimas de negligência, abuso e exploração.

Ora, a criança não é um candidato à cidadania mas é um CIDADÃO.

Devemos ler a criança – e cada vez menos «menor» – como sujeito de direito e de direitos, tendo o direito de ser ouvida sobre os assuntos que lhe dizem respeito.

E temo-la de a perceber integrada na família que a cria – com deveres e sobretudo com direitos.

Quando essa família não a cuida devidamente, esta criança pode ter de ser dali retirada e entregue nas mãos do Estado e/ou de terceiros, sempre com monitorização legal.

2. Ora, para vogarmos por uma nova cultura da criança, URGE formação contínua continuada, criativa, casuística.

Urge vontade de mudar mentalidades, urge, enfim, soletrar o alfabeto da esperança, mesmo que ele nos diga que aquela família não consegue dar nada mais, em termos de positiva parentalidade, ao João e à Jessica que nos chamou em surdina, lançando um SOS sobre a cidade.

Temos de estar atentos aos sinais.

As crianças dão esses sinais.

Nem sempre inequívocos. Por vezes subtis.

Há que saber ler esses sinais.

E que há que denunciar sempre que uma criança esteja a vivenciar, mesmo com base em meras suspeitas, uma situação de perigo para a sua vida, integridade física ou psíquica ou para o seu equilíbrio emocional e para a sua segurança e desenvolvimento.

Os vizinhos que aparecem sempre nas reportagens televisivas a agoirar que já pressentiam aquilo há muito, quando há uma tragédia infantil, devem denunciar a tempo e de forma preventiva.

Caberá depois às instância competentes investigar, analisar os factos e os sinais e agir.

            3. O sistema de promoção e protecção em Portugal, neste actual modelo de Justiça, gizado em 1999, e entrado em vigor em 2001, está pensado para uma actuação em pirâmide.

Na base, intervêm as entidades com competência em matéria de infância e juventude (ECMIJ) que tentam remover o perigo em consenso com os pais ou guardantes da criança, não podendo, contudo, aplicar medidas de promoção e protecção.

No nível seguinte, intervêm as CPCJ que só podem trabalhar com expressos consentimentos dos progenitores e não oposições da criança com mais de 12 anos (podendo validar-se uma não oposição de uma criança com menor idade desde que se lhe reconheça maturidade para o efeito).

As CPCJ, tuteladas superior e hierarquicamente, pela Comissão Nacional para a Promoção dos Direitos e Protecção de Crianças e Jovens (CNPDPC), aplicam as medidas de promoção e protecção com excepção da medida de adoptabilidade prevista no artigo 35º, n.º 1, alínea g) da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (doravante LPCJP).

Acredito muito no trabalho das CPCJ.

Porque elas são a voz das cidades, da boa vontade do bom homem e da boa mulher que deixa as suas próprias famílias e ruma, mesmo a horas pardas, ao mundo daquele menino violentado na sua dignidade de Criança, Cidadão do Mundo…

No fim da linha, intervêm os tribunais – podem trabalhar consensos, homologando acordos de promoção e protecção, ou podem ditar decisões finais após debates judiciais julgados por 3 juízes – um profissional e dois socais (julgando de facto e de direito).

O TRIBUNAL e as CPCJ têm de deixar de ser um edifício de criação de moldes para ser um ateliê de costura à medida do corpo de cada criança.

Acreditar nesta intervenção piramidal e sucessiva é acreditar que cada nível (que não é superior ou inferior a nenhum) vai fazer o que lhe compete, com os meios que tem e a legitimidade legal que lhe é conferida.

Como costumo dizer, temos de nos concentrar naquilo que mais ninguém vai fazer por nós…

4. Não há processos nas ECMIJ (não podem aplicar medidas de promoção e protecção.

Há processos de promoção e protecção nas CPCJ.

Há processos de promoção e protecção nos tribunais.

Num qualquer processo de promoção (pendente numa CPCJ ou num Tribunal de Família e Menores, ou de competência não especializada mas agindo como tal, no caso específico das comarcas de Bragança, Portalegre e Guarda), aplicam-se, se for caso disso, as medidas de promoção dos direitos e de protecção que consistem nas providências que visam afastar o perigo em que a criança ou o jovem se encontra, proporcionar-lhe as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação educação, bem-estar e desenvolvimento integral e garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso (artigo 34º da LPCJP).

Encontram-se taxativamente previstas na LPCJP (artigo 35º, nº 1): Apoio junto dos pais; Apoio junto de outro familiar; Confiança a pessoa idónea; Apoio para autonomia de vida; Acolhimento familiar; Acolhimento residencial; e Confiança a pessoa selecionada para a adopção, a família de acolhimento ou a instituição com vista a futura adopção (da competência exclusiva dos tribunais).

As medidas de promoção e protecção estão hoje regulamentadas pelos Decreto-Lei n.º 164/2019, de 25 de Outubro (regime de execução da medida de acolhimento residencial), à espera ainda de uma PORTARIA; Decreto-Lei n.º 139/2019, de 16 de Setembro (regime de execução da medida de acolhimento familiar) – ver ainda Portaria n.º 278-A/2020, de 4/12; e pelo Decreto-Lei n.º 12/2008, de 17 de Janeiro (regime de execução das medidas de protecção em meio natural de vida), este alterado pela Lei n.º 108/2009, de 14 de Setembro (artigo 13.º, n.º 2).

No processo das CPCJ, as medidas em causa são aplicadas por celebração de um acordo de promoção e protecção que pressupõe naturalmente o assentimento dos pais, guardantes de facto e da própria criança com mais de 12 anos.

No processo judicial de promoção e protecção, as medidas são aplicadas por acordo de promoção e protecção ou por decisão proferida na sequência de debate judicial, sempre realizado por um juiz becado e dois juízes sociais.

Por outro lado, no decurso do processo, e mesmo na sua fase inicial, é possível aplicar uma medida provisória (hoje chamada cautelar), com a duração máxima de 6 meses, quando a emergência do caso assim o justifique ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente (artigo 37º) – cautelarmente, só se podem aplicar as medidas do artigo 35º, nº 1, a) a f), com exclusão da g), da LPCJP.

Será de emergência toda a situação que requer uma intervenção imediata, ainda que a título precário e provisório, de modo a remover tempestivamente o perigo detectado.

As medidas cautelares têm como duração máxima 6 meses e são obrigatoriamente revistas em 3 meses (artigo 37º).

Existem situações cuja gravidade e urgência impõem uma actuação imediata das entidades não judiciais, em ordem à efectiva protecção da criança, ainda que haja oposição dos detentores das responsabilidades parentais ou de quem tenha a guarda de facto.

Nesses casos, a ponderação dos interesses em confronto — respeito pelos direitos fundamentais dos pais e necessidade de consentimento para a intervenção de uma entidade não judiciária versus tutela de direitos fundamentais da criança, centrados nos valores essenciais da vida e da integridade física — justifica a imediata actuação protectora comunitária ou administrativa, sujeita a subsequente apreciação judicial.

Referimo-nos aqui aos chamados «procedimentos urgentes na ausência do consentimento», previstos no artigo 91º, da LPCJP, que devem ser seguidos de um «procedimento judicial urgente», com a tramitação estabelecida pelo artigo 92º, do mesmo diploma – falo dos procedimentos de urgência em situações de emergência [os processos são todos URGENTES mas os seus procedimentos podem ser uns mais do que outros – os que se podem classificar de emergência (definição feita no artigo 5º, alínea c) da LPCJP) devem ser ainda mais céleres do que os outros].

Assim, quando exista perigo actual ou iminente para a vida ou de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou do jovem [cfr. noção de «emergência» do artigo 5º, alínea c), 1ª parte] e, na ausência de consentimento dos detentores das responsabilidades parentais ou de quem tenha a guarda de facto, as ECMIJ e as CPCJ tomam as medidas adequadas para a sua proteção imediata, como seja o caso da retirada da família, e solicitam a intervenção do tribunal ou das entidades policiais.

Logo que recebida a comunicação das situações atrás referidas, efectuada pelas entidades, pelas comissões ou pelas autoridades policiais, o Ministério Público requer imediatamente ao Tribunal competente procedimento judicial urgente nos termos do artigo 92º.

O Tribunal, por seu turno, ante o requerimento do Ministério Público, profere decisão provisória no prazo de 48 horas, confirmando as providências tomadas para a imediata protecção da criança ou do jovem, aplicando uma das medidas previstas no artigo 35º, a título cautelar, nos moldes preconizados pelo artigo 37º, ou determinando o que tiver por conveniente relativamente ao destino da criança ou do jovem.

De referir ainda que, quando as exigências de tempestividade e celeridade assim o impuserem, a intervenção judicial urgente, nos moldes supra referidos, pode e deve ser levada a cabo pelo Tribunal em que a criança ou o jovem for encontrado, conforme a exceção consagrada no artigo 79º, nº 3, da LPCJP, incumbindo àquele realizar as diligências consideradas urgentes e tomar as medidas necessárias à protecção imediata da criança ou do jovem.

Finalmente, uma vez proferida a decisão provisória/cautelar, nos termos preconizados pelo artigo 92º, nº 1, o processo prossegue sempre e em quaisquer circunstâncias como processo judicial de promoção e protecção, perante o Tribunal competente.

5. No campo dos maus tratos, queremos a concordância prática entre as intervenções criminal e de promoção de direitos e de protecção em 3 aspectos:

  • • na avaliação dos factos
  • • na obtenção da prova
  • • na protecção da vítima

            Logo que haja denúncia, deve haver uma simultaneidade de intervenções, por forma a que se alcance uma abordagem holística de cada caso e sem novos danos para vítima, devendo construir-se procedimentos testados de diagnóstico e intervenção, para que a igualdade na aplicação da lei não seja uma retórica.

            A vítima não pode sofrer os efeitos da ineficácia do sistema de JUSTIÇA.

Sem buracos negros na rede de protecção.

6. Sem querer saber se foi a figura mediática A ou B, a verdade indesmentível é que existiram crianças violentadas, em termos sexuais, em instituições estatais de acolhimento de crianças e jovens. Hoje, quer se queira ou não, com mais ou menos rendilhados politizantes, fala-se disso, não se entende tal como hipocritamente natural!

Existem crianças que morrem aos braços de seus pais, de seus naturais protectores, que deles não são donos, em momentos por vezes inesperados, não esperados, imprevisíveis mesmo com a melhor infraestrutura de apoio nas mãos do Estado.

Fazem-se programas televisivos em que se tenta colocar todo o sistema de protecção em causa só porque duas crianças infelizmente morreram aos braços brutos dos seus pretensos protectores. Far-se-ia esse programa se tal não tivesse ocorrido? Decerto que não, pois os milhares de crianças que são salvos todos os dias pelos nossos Comissários e pelo sistema tal como foi gizado em 1999 não rende audiências…

Diz-se que basta uma criança salva para se dizer que valeu a pena a nossa intervenção em matéria tutelar protectiva.

Contudo, também direi que um possível caso mal sucedido – que sempre lamentamos enquanto cidadãos – não é suficiente para se colocar no fogo do Inferno uma autêntica conquista do nosso sistema de protecção, enquanto entidade intercalar e decisiva no sistema protectivo português, com provas dadas desde 1991, ano da sua criação.

Naturalmente que há que averiguar o que correu mal numa determinada intervenção, se o modelo dessa intervenção era a mais adequada ao caso concreto, se as comunicações previstas na LPCJP foram todas cumpridas, se a interdisciplinaridade foi uma realidade, sem medo de protagonismos excessivos de alguma valência, tudo isto com vista a fazer um diagnóstico tendente a melhorar procedimentos e a evitar erros futuros.

Muitas vezes acusam-se as instituições de terem confiado demais.

Que não se caía agora no exagero contrário – por causa de alguns energúmenos pais não sejam agora todos os pais colocados no mesmo nível e todas as crianças retiradas do convívio dos pais em caso de dúvida, como que para evitar que a comunicação social nos sacrifique na praça pública…

E sobretudo, que não se esqueça a última instância de intervenção – os tribunais -, onde as hostilidades podem ser uma constante (já que a sua função é exactamente dirimir conflitos), assente que o consenso é a arma de actuação das Comissões.

Acima de tudo, convém que se definam políticas concretas de protecção à criança e à família, única forma de podermos melhorar a resposta às crianças em perigo. “O sistema falhou”, ouvi dizer na televisão: mas há algum sistema perfeito? Não será altura para melhorarmos a vida das crianças em vez de só discutir a sua protecção?

Não vale sair do nosso posto de combate.

Para a frente é o caminho.

E para que o esforço do nosso Mestre e Timoneiro Armando Leandro não tenha sido em vão…

Denunciem, façam a vossa obrigação, saibamos ler os sinais de perigo, ajamos de forma célere e integrada e deixem viver as crianças.