André Almeida Martins

Doutorado e Assistente Convidado na Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa.
Associado Coordenador do Departamento de Contencioso do escritório do Porto da sociedade de advogados Uría Menéndez – Proença de Carvalho (2007/2019).


Fixação das Regras Processuais e Exercício da Função Arbitral na Arbitragem Voluntária é a mais recente obra de sua autoria. Obra que o Grupo Almedina publica e disponibiliza no mercado a 26 de Maio 2022.

Consulte a obra neste link.


O processo jurisdicional assume-se como um imprescindível meio de realização da justiça, quer seja perspetivado à luz do seu fim social, político ou jurídico. Em primeiro lugar, do ponto de vista social, o processo garante paz social, permitindo eliminar conflitos ou corrigir desvios ao cumprimento normativo, à luz dos valores e regras da justiça. Já da perspetiva política, o processo legitima o poder do Estado e assegura a estabilidade das instituições políticas, na medida em que operacionaliza de forma pública um mecanismo que garante um cumprimento generalizado da lei. Por fim, do ponto de vista jurídico, o processo apresenta-se como um instrumento de concretização jurisdicional das normas jurídicas de direito substantivo, que encerram as opções do legislador democrático sobre as mais diversas matérias e cuja garantia decorre de uma norma secundária – a norma processual – orientada à administração da justiça[1].

A nível estrutural, o processo traduz-se numa sequência de atos processuais, entrecruzados numa sequência temporal, lógica e teleológica, em vista da obtenção de um determinado resultado, como por exemplo a composição de um conflito ou o reconhecimento de um direito. Nos diversos domínios processuais ‒ civil, penal, administrativo, tributário ou constitucional ‒ a sequência de atos é definida por uma lei processual que a idealiza tendo como pano de fundo a sua repetição massificada e padronizada em inúmeros litígios[2]. Isto implica que a tramitação definida seja geral o suficiente para acomodar diferentes tipos de litígios concretos e que o processo se traduza numa forma padrão, tendencialmente rígida ou muito pouco flexível, de forma a garantir uma repetição uniforme que credibiliza o sistema aos olhos dos diversos utilizadores.

Porém, esta rigidez do processo pode traduzir-se – e a prática revela que se traduz efetivamente – em perdas de eficiência e eficácia na administração da justiça, na medida em que a tramitação processual se poderá revelar pouco adequada aos contornos específicos de um determinado litígio concreto. Esta dificuldade exacerba um problema que já resultaria, entre outros fatores, do elevado número de processos que chegam aos tribunais estaduais, que se traduzem na sua sobrecarga e incapacidade de responder à crescente procura[3].

Para obviar a este problema, as leis processuais atribuíram aos juízes poderes de gestão processual na condução do processo e de adequação das formas processuais (vejam-se os artigos 6.º e 547.º do Código de Processo Civil Português e artigo 139.º do Código de Processo Civil Brasileiro). Neste âmbito, permite-se, com limitações significativas, que o tribunal tente adequar o processo às especificidades do caso concreto, introduzindo-se assim alguma flexibilidade processual, de forma a garantir maior celeridade e eficiência na administração da justiça.

Esta ideia de flexibilidade não é, de resto, desconhecida do direito processual e da teoria geral do processo. Neste âmbito, destaca-se imediatamente a arbitragem e o processo arbitral, meio de resolução jurisdicional de litígios em que a flexibilidade processual é característica fundamental[4].  De facto, a evolução do direito da arbitragem, sobretudo no plano da arbitragem internacional, demonstrou que a solução mais adequada, ao invés de impor regras detalhadas ao processo arbitral (nomeadamente, as que vigoravam nas legislações processuais nacionais), era conceder autonomia às partes para estabelecer as regras processuais que deveriam ser seguidas no seu processo arbitral ou, caso as partes não exercessem tal opção, atribuir aos árbitros essa faculdade, sempre dentro dos limites do due process of law.

As leis de arbitragem acompanham, em geral, esta orientação que valoriza a autonomia privada e lhe atribui um papel de relevo na definição do processo do qual decorre a administração da justiça no caso concreto. Nesse sentido, vejam-se, por exemplo, o artigo 30.º da Lei da Arbitragem Voluntária Portuguesa (Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro) e os artigos 21.º e 22.º da Lei de Arbitragem Brasileira (Lei n.º 9.307, de 23 de setembro de 1996). Destas normas decorre que a lei concede às partes e, subsidiariamente, ao tribunal arbitral, margem de liberdade para definir as regras que vão reger o processo arbitral, diretamente ou através da remissão para regulamentos de instituições arbitrais, legislações nacionais ou quaisquer outros instrumentos normativos. Como é óbvio, a consagração desta autonomia e flexibilidade processual, que no caso das partes se traduz na celebração de um negócio jurídico processual, está balizada por diversos limites imperativos, entre os quais se destacam imediatamente os que resultam dos princípios fundamentais do processo equitativo como a igualdade das partes e o contraditório.

Também no âmbito das legislações processuais, nomeadamente, no processo civil, é possível definir soluções que valorizem o papel da autonomia privada na definição das regras processuais de que decorrerá a administração da justiça. Disso mesmo é exemplo, o artigo 190.º do Código de Processo Civil Brasileiro que dispõe que “Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.” Em vigor desde 2015, esta cláusula geral permite a celebração de negócios processuais entre as partes, nomeadamente definindo a tramitação processual a seguir no seu concreto processo civil, de forma a ultrapassar problemas que tipicamente decorrem da forma rígida e padronizada da legislação processual civil[5]. Desta norma decorre, assim, a possibilidade de as partes celebrarem negócios jurídicos em que se estabelecem regras processuais que, dentro de certos limites, se impõem ao tribunal e que tem a potencialidade de adequar o processo ao caso concreto e o tornar mais célere e eficiente.

No direito processual civil português não há nenhuma disposição semelhante à norma brasileira que se acaba de referir. Num contexto em que está mais do que evidenciada, aos olhos dos operadores judiciários, dos cidadãos e do próprio legislador, a necessidade de encontrar soluções inovadoras, que permitam ultrapassar ou, pelo menos, mitigar o entorpecimento da atividade judicial e contribuir para uma mais célere administração da justiça[6], fica a pergunta: vale a pena pensar numa cláusula geral para os negócios processuais que permita às partes definir aspetos da tramitação processual do “seu” processo?

BIBLIOGRAFIA

Blackaby, Nigel, Partasides, Constantine, Redfern, Alan, Hunter, Martin Redfern and Hunter on International Arbitration, 6.ª edição, Oxford, Oxford University Press, 2015.

Brito, Wladimir Teoria Geral do Processo, Coimbra, Almedina, 2020.

Dinamarco, Cândido Rangel; Badaró, Gustavo, Lopes, Bruno, Teoria Geral do Processo, 32.ª edição, São Paulo, Malheiro Editores, 2020.

Pedroso, João, Percurso(s) da(s) reforma(s) da administração da justiça – uma nova relação entre o judicial e o não judicial, in Sub Judice, 19, julho/dezembro 2000, disponível em https://www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina/ficheiros/171.pdf

Silva, Paula Costa e, Perturbações no cumprimento dos negócios processuais, Lisboa, AAFDL, 2020.


[1] Cândido Rangel Dinamarco, Gustavo Badaró, Bruno Lopes, Teoria Geral do Processo, 32.ª edição, São Paulo, Malheiro Editores, 2020, pp. 30-32.

[2] Wladimir Brito, Teoria Geral do Processo, Coimbra, Almedina, 2020, pp. 36-38.

[3] João Pedroso, Percurso(s) da(s) reforma(s) da administração da justiça – uma nova relação entre o judicial e o não judicial, in Sub Judice, 19, julho/dezembro 2000, disponível em https://www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina/ficheiros/171.pdf, pp. 31-32.

[4] Nigel Blackaby, Constantine Partasides, Alan Redfern, Martin Hunter, Redfern and Hunter on International Arbitration, 6.ª edição, Oxford, OUP, 2015, p. 30.

[5] Paula Costa e Silva, Perturbações no cumprimento dos negócios processuais, Lisboa, AAFDL, 2020, pp. 28-32.

[6] Veja-se a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 92/XIV/2.ª, que propõe a alteração do Código de Processo Civil (disponível em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=110777).