João Vieira dos Santos
Doutor e Professor Auxiliar na Faculdade de Direito da Universidade Lusófona de Lisboa.
Jurista na CMVM.
Licenciado em Direito pela FDUP, Mestre em Direito e Gestão pela Universidade Católica Portuguesa do Porto, Pós-graduado em Direito Bancário, da Bolsa e dos Seguros pela FDUC e Doutor em Direito na FDUP, tendo sido aprovado por unanimidade nas provas académicas, com a tese intitulada “Regulação de Formas de Financiamento Empresarial FinTech – Em especial o Crowdfunding e as Initial Coin Offerings”.
A Tese de Doutoramento “Regulação de Formas de Financiamento Empresarial FinTech – Em especial o Crowdfunding e as Initial Coin Offerings” foi a vencedora do Prémio Abreu Advogados. Obra que o Grupo Almedina publica e disponibiliza no mercado a 5 de maio de 2022.
1. As Orientações do GAFI sobre Ativos Virtuais [1]
O Grupo de Ação Financeira (GAFI) − organismo intergovernamental que tem como objetivo desenvolver e promover políticas, nacionais e internacionais, de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo − publicou uma versão atualizada das suas Orientações para uma abordagem baseada no risco sobre ativos virtuais e sobre prestadores de serviços de ativos virtuais[2], no dia 28 de outubro de 2021.
A primeira versão destas Orientações foi publicada em 21 de junho de 2019, tendo esta atualização de 2021 vários objetivos. Um deles centra-se na clarificação de algumas definições relativas a ativos virtuais, nomeadamente stablecoins, non-fungible tokens (NFTs), decentralised finance (DeFi)e decentralised or distributed applications (DApp).
Tendo por base o exposto, procuraremos, neste breve artigo, explorar o entendimento desta versão atualizada das Orientações do GAFI em relação aos NFTs, bem como analisar as implicações que poderá ter esse entendimento no Direito Português e no Direito da União Europeia. A heterogeneidade que carateriza os NFTs tornam este tema especialmente complexo, merecendo uma cuidadosa reflexão.
2. NFTs nas Orientações do GAFI
O GAFI expõe o seu entendimento sobre NFTs no parágrafo 53 da versão atualizada das Orientações para uma abordagem baseada no risco sobre ativos virtuais e sobre prestadores de serviços de ativos virtuais. Nesse entendimento, é primeiramente determinado o âmbito do que o GAFI entende por NFTs, descrevendo-os como ativos virtuais que são únicos, em vez de permutáveis, e que são, na prática, utilizados como bens colecionáveis e não como instrumentos de pagamento ou de investimento.
Seguidamente, é referido que os NFTs, dependendo das suas características, não são geralmente considerados como ativos virtuais ao abrigo da definição do GAFI. Contudo, é também exposto que é importante considerar a natureza do NFT e a sua função na prática, independentemente da terminologia ou das referências comerciais que são utilizadas, porque o NFT pode substancialmente enquadrar-se nas normas do GAFI.
Segundo o GAFI, há NFTs que podem ser abrangidos pela definição de ativo virtual, sendo aqueles que, na prática, são utilizados para fins de pagamento ou investimento e que podem ser representações digitais de outros ativos financeiros já abrangidos pelas normas do GAFI. Em suma, o GAFI recomenda aos países terem esta abordagem funcional, devendo considerar a aplicação das normas do GAFI aos NFTs, de uma forma casuística.
Há, deste modo, um trabalho de enquadramento na sua jurisdição que cada país terá de efetuar para seguir as Orientações do GAFI, e é sobre esse trabalho, no caso português e da União Europeia, que nos centraremos, procurando prestar um auxílio para análise desta temática com o nosso contributo, que será seguidamente exposto e incidirá, sobretudo, no conceito de infungibilidade.
3. Conceito de Infungibilidade
Nos termos do artigo 207.º do Código Civil: “São fungíveis as coisas que se determinam pelo seu género, qualidade e quantidade, quando constituam objeto de relações jurídicas”.
Desta norma se retira que serão fungíveis todas as coisas que podem ser substituídas por outras do mesmo género e quantidade, sem que com isto percam qualquer valor utilitário ou económico. A contrario, as coisas infungíveis serão aquelas que não poderão ser trocadas sem que isso implique uma perda de valor utilitário ou económico.
Também se retira da mesma norma que a fungibilidade se trata de uma categoria jurídica e não física, pelo que as mesmas coisas podem ser fungíveis ou não fungíveis, consoante o negócio realizado. Ou seja, apenas in concreto, quando constituam objeto de relações jurídicas, se poderá afirmar se há ou não infungibilidade[3].
Adicionalmente, não há coisas fungíveis por natureza, mas quando muito coisas normalmente fungíveis, e o mesmo poderá ser referido em relação a coisas infungíveis, podendo a singularidade depender da relação jurídica em causa[4].
Um exemplo normalmente dado neste contexto é o da moeda, que normalmente é fungível, mas se se emprestarem moedas para uma exposição, essas serão infungíveis e o contrato já será de comodato e não de mútuo[5]. Com base neste exemplo, também é possível aferir que o conceito de fungibilidade é volátil, podendo uma coisa ser fungível e infungível no mesmo dia, se essa coisa for objeto de negócios jurídicos diferentes de onde resultem classificações distintas em termos de fungibilidade/infungibilidade, como caso da moeda acima descrito.
Transpondo esta categoria jurídica para os NFTs, os mesmos exemplos poderão ser feitos. Um token poderá ser fungível ou infungível, consoante o negócio jurídico em causa. Daqui decorre que terminologia ou das referências comerciais ao token que são utilizadas pelo vendedor do token são irrelevantes, estando por isso em linha com o entendimento do GAFI.
Há, no entanto, algumas particularidades nos NFTs que se terá de ter em conta. Face à facilidade de dividir algo digitalmente, mesmo que um NFT seja infungível em termos jurídicos, se este for divisível as suas frações não serão, em princípio, fungíveis, porque serão permutáveis entre si. Só em casos muito excecionais é que isto não sucederá, por exemplo, no caso de um NFT de um desenho de uma pessoa, a parte relativa aos olhos ter mais valor económico que as restantes partes.
Os NFTs também são caraterizados por terem um código único que os identifica, no entanto, isso deve ser considerado irrelevante para a classificação de um token como fungível ou infungível juridicamente. Uma nota de euros também tem um código único identificador, mas é geralmente considerada fungível.
Resulta do exposto que, para aferir a fungibilidade ou infungibilidade de um token, o mais relevante é a fungibilidade/infungibilidade da coisa ou direito representado nesse token. Assim, as coisas e os direitos representados no token devem, em princípio, ser infungíveis para que o token possa ser qualificado como infungível.
Esta categoria jurídica da fungibilidade tem, em grande medida, os mesmos traços entre os Estados Membros da União Europeia[6], mas o GAFI tem um âmbito internacional pelo que se apoiou numa abordagem funcional por ser mais prática e abrangente.
Apesar de parecerem abordagens muito distintas, uma análise atenta de ambas permite inferir que estamos perante abordagens que acabam por ter os mesmos resultados práticos. Em rigor, é a categoria jurídica que acaba por ser a melhor ferramenta para permitir uma abordagem funcional, porque são as coisas fungíveis que são, normalmente, utilizadas como instrumentos de pagamento ou de investimento.
Para além das espécies monetárias serem, geralmente, fungíveis, como acima referimos, também os valores mobiliários se apoiam na categoria jurídica da fungibilidade[7]. Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 204.º do Código dos Valores Mobiliários, podem ser objeto de negociação organizada valores mobiliários fungíveis, livremente transmissíveis, integralmente liberados e que não estejam sujeitos a penhor ou a qualquer outra situação jurídica que os onere. No mesmo sentido, quando os valores mobiliários titulados estão integrados em sistema centralizado, a fungibilidade é imperativa, com base no n.º 1 do artigo 45.º do Código dos Valores Mobiliários[8].
Ademais, a referência a “situações jurídicas homogéneas” na alínea g) do artigo 1.º do Código dos Valores Mobiliários permite identificar a fungibilidade como caraterística essencial dos valores mobiliários. É daí que deriva a aptidão do valor mobiliário para circular[9], uma vez que se dispensa a necessidade de o comprador averiguar o conteúdo próprio do valor mobiliário previamente a cada transação, tornando todo o processo mais célere e passível de massificação no mercado de capitais[10].
Face a esta excursão, consegue-se identificar a ligação entre fungibilidade e circulabilidade, bem como a importância dessa circulabilidade para as finalidades de pagamento e investimento. Ou seja, uma coisa infungível terá mais dificuldades em circular e, consequentemente, de ser utilizada como um instrumento de pagamento ou investimento. Tal não significa uma impossibilidade de utilização de uma coisa infungível para esses fins, mas significa uma grande dificuldade de ter uma utilização massificada de uma coisa, consequentemente, desta ter uma dimensão relevante para fins de pagamento ou investimento.
Com base no exposto, é nossa opinião que a classificação jurídica de algum token como infungível bastará para adotar a abordagem funcional das Orientações do GAFI relativa a NFTs. Essa infungibilidade jurídica já reduzirá em grande medida o âmbito de NFTs em relação aos que são comercializados como tal, também em linha com as Orientações do GAFI.
Esta linha de orientação parece-nos a mais acertada, por já seguir um critério bem conhecido da doutrina e jurisprudência, mas não afasta, evidentemente, algumas dificuldades. Uma dessas dificuldades é a volatilidade associada à fungibilidade, caraterística já referida supra. Um token pode ser fungível ou infungível consoante o negócio jurídico em causa, portanto apenas no caso concreto se poderá aferir a aplicabilidade das Orientações do GAFI, obrigando a uma atenção especial por parte do comercializador dos tokens e do supervisor. Desta linha de orientação, também decorrerão algumas implicações para o Direito Português e para o Direito da União Europeia, que veremos adiante.
4. Que Implicações?
As implicações de se recorrer à categoria jurídica da fungibilidade já são conhecidas no Direito Civil Português. Releva, por exemplo, para a distinção entre o contrato de mútuo (para coisas fungíveis — 1142.º do Código Civil) e o contrato de comodato (para coisas infungíveis — 1129.º do Código Civil), para a distinção entre o depósito e o depósito irregular (este para coisas fungíveis — 1205.º do Código Civil) e para a exequibilidade da compensação (esta exige duas obrigações que tenham por objeto coisas fungíveis – alínea b) do n.º 1 do artigo 847.º do Código Civil).
Relativamente ao caso particular dos NFTs, o alcance prático incide, sobretudo, no Direito da União Europeia. Primeiro, existe um impacto imediato na forma como os Estados Membros interpretam as definições da Diretiva (UE) 2018/843 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de maio de 2018, transposta para a ordem jurídica nacional através da Lei n.º 58/2020, de 31 de agosto.
No caso português, este entendimento que acima partilhámos poderá ajudar o supervisor e supervisionados na interpretação da definição de ativo virtual mais conforme com as Orientações do GAFI. Qualquer outro critério, alternativo ou adicional, dificultaria em grande medida a delimitação do que deve ser considerado um ativo virtual, para efeitos das normas de prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo.
Para
futuro, este entendimento poderá também ter fortes implicações na Proposta de
Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo aos mercados de
criptoativos[11]
e no Pacote legislativo em matéria de combate ao branqueamento de capitais,
sobretudo, na interpretação coerente destes futuros atos legislativos da União
Europeia[12].
[1] As opiniões expressas neste texto são as dos autores e não vinculam a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.
[2] Disponível em: https://www.fatf-gafi.org/publications/fatfrecommendations/documents/guidance-rba-virtual-assets-2021.html.
[3] Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo II, Coisas, Almedina, Coimbra, 2000, p. 153.
[4] Cfr. Miguel Galvão Teles, “Fungibilidade de valores mobiliários e situações jurídicas meramente categoriais”, in Direito dos Valores Mobiliários, Volume IV, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, pp. 175 e ss..
[5] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, “Anotação ao Artigo 207.º” in Código Civil Anotado, Volume I, 4ª ed. Revista e Atualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 201.
[6] Existem apenas pequenas diferenças entre jurisdições. Na Alemanha, a noção de fungibilidade baseia-se na sua natureza objetiva (não se confundido coisa fungível com coisa genérica), mas também na normalidade social e pelos costumes de tráfego. Adicionalmente, a fungibilidade na Alemanha restringe-se aos bens móveis, cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo II, Coisas, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 152 a 154.
[7] A fungibilidade dos valores mobiliários refere-se à mera categorialidade, ou seja, que os valores mobiliários da mesma categoria são fungíveis entre si, cfr. Miguel Galvão Teles, “Fungibilidade de valores mobiliários e situações jurídicas meramente categoriais”, in Direito dos Valores Mobiliários, Volume IV, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, p. 204. Tal entendimento tem correspondência no Direito da União Europeia, em que valores mobiliários são definidos, pelo artigo 1.º (1) (4) da Diretiva 2014/65/UE, como “as categorias de valores que são negociáveis no mercado de capitais (…)”.
[8] De acordo com o parecer genérico da CMVM sobre fungibilidade de valores mobiliários titulados, disponível em: https://www.cmvm.pt/pt/Legislacao/Legislacaonacional/Pareceres/Pages/fungibilidade.aspx?v=
[9] Cfr. Paulo Câmara, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, Almedina, Coimbra, 2018, p. 118. Em sentido divergente, considerando que a fungibilidade não é uma caraterística definidora dos valores mobiliários, Alexandre Soveral Martins, Títulos de Crédito e Valores Mobiliários, vol II (“As Ações”), Almedina, Coimbra, 2018, p. 23.
[10] Cfr. José Engrácia Antunes, Os Instrumentos Financeiros, 4.ª ed. revista e atualizada, Almedina, Coimbra, 2020, p. 92.
[11] Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX%3A52020PC0593.
[12] Disponível em: https://ec.europa.eu/info/publications/210720-anti-money-laundering-countering-financing-terrorism_en.