José Manuel Oliveira Antunes

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Advogado com especial intervenção na área dos Contratos Públicos, no Direito da Construção e Urbanismo. É formador e docente convidado em cursos de Pós Graduação na área da Contratação Pública e autor de vários livros sobre a temática do Direito Público.


Com a publicação da Lei 30/2021 de 21 de Maio, que alterou – pela 16ª vez em 13 anos – o Código dos Contratos Públicos, o legislador introduziu um aditamento no artigo 113º, que regula as condições para proceder a convites em Consulta Prévia ou Ajuste Directo, com a seguinte redacção:

6. Não podem também ser convidadas a apresentar propostas entidades especialmente relacionadas com as entidades referidas nos nºs 2 e 5, considerando-se como tais, nomeadamente, as entidades que partilhem, ainda que apenas parcialmente, representantes legais ou sócios, ou as sociedades que se encontrem em relação de simples participação, de participação recíproca, de domínio ou de grupo”.

As entidades referidas no nº 2 são aquelas que não poderiam ser convidadas, por serem entidades “às quais a entidade adjudicante já tenha adjudicado, no ano económico em curso e nos dois anos económicos anteriores, na sequência de consulta prévia ou ajuste directo adoptados nos termos do disposto nas alíneas c) e d) do artigo 19º e alíneas c) e d) do nº 1 do artigo 20º, consoante o caso, propostas para celebração de contratos cujo preço contratual acumulado seja igual ou superior aos limites referidos naquelas alíneas”.

As entidades referidas no nº 5 são aquelas que “tenham executado obras, fornecido bens móveis ou prestado serviços à entidade adjudicante, a título gratuito, no ano económico em curso ou nos dois anos económicos anteriores, excepto se o tiverem feito ao abrigo do Estatuto do mecenato.”

Esta nova disposição é compreensível, tendo em conta que – muitas vezes com conhecimento e conivência das entidades adjudicantes – as mesmas pessoas, através de sucessivas novas empresas que criavam, beneficiavam de ajustes directos e convites em consulta prévia, despindo assim de completa eficácia o disposto no nº 2 do artigo 113º.

Mas se a intenção é boa, já o texto do nº 6 é pouco feliz e isso não se pode superar, a não ser que o legislador altere a redacção.

Ponto assente na redacção do nº 6, é o facto de ser da entidade adjudicante, a incumbência de saber quem não pode convidar.

E sabe que quem não pode convidar, são entidades em relação de grupo ou de simples participação, com entidades que já não poderiam naquele momento, ser convidadas nos termos do nº 2 e 5 do artigo 113º.

E a única entidade que conhece esta informação é a própria entidade adjudicante.

Para isso, cumpre-lhe verificar quem foram as entidades às quais fez adjudicações por ajuste directo e consulta prévia, no ano económico em curso e nos dois anos económicos anteriores e quais dessas, já tenham um preço contratual adjudicado, que não lhes permite serem convidadas de novo.

Esta informação, a entidade adjudicante obtém sem qualquer ajuda externa.

O problema da entidade adjudicante, coloca-se em saber se a/as entidades que agora pretende convidar, se encontram numa das situações previstas no novo nº 6 em relação a alguma das entidades já anteriormente convidadas e que tenham um preço contratual adjudicado acumulado, que não lhes permitiria serem convidadas de novo.

Obter esta informação é de grande dificuldade, se não de impossibilidade, para o adjudicante, pois os documentos públicos sobre cada sociedade não trazem estas informações e o acesso a mais informação que aquela que é pública, pode violar a lei sobre protecção de dados.

Sendo assim, a entidade adjudicante terá de pedir a colaboração dos convidados agora escolhidos, ou seja, a informação prestada por estes, declarando que não têm relação de grupo ou de participação com as entidades “impedidas”, que no caso afirmativo, as impossibilitaria também, de ser convidadas pela entidade adjudicante em regime de ajuste directo ou consulta prévia.

Aqui voltamos a ter outro problema: A sociedade convidada, sabe quais são as sociedades com que tem a relação de grupo ou de participação, mas não sabe, nem tem de saber, que ajustes directos ou consultas, em que essa participada foi adjudicatária e que entidades a contrataram. Então terá de pedir essa informação a essas sociedades, que apesar de estarem em relação de grupo ou de participação, não estão vinculadas a prestar tal informação à interessada, só porque estão em relação de grupo.  A relação de simples participação, nos termos do CSC, não dá poderes às sociedades para ordenarem a prestação umas às outras desse tipo de informação.

Portanto, para cumprir a lei nos termos em que está redigida, o procedimento que se afigura mais correcto será o seguinte:

1- Antes de proceder a qualquer convite nestas modalidades, a entidade adjudicante tem de possuir uma lista de todas as entidades que naquele momento (o momento do convite que agora quer fazer) não poderia convidar.

2- Quando convida uma outra entidade, pede-lhe uma declaração em como ela não está na situação prevista no nº 6 em relação a essas – e só sobre essas interessa saber – entidades cujo convite era impossível e não tem outra opção que não seja informar o declaratário quais são essas entidades (isto implica revelar informação que comercialmente pode a adjudicante não gostar de divulgar, mas é inevitável)

3- O mais aconselhável será que este pedido seja efectuado antes do convite se efetivar. Se a informação foi solicitada ao convidado em simultâneo com o convite e se o facto (impossibilidade) se verificar, o convite que foi feito fica sem eficácia e terá de se proceder a novos convites até preencher o nº de 3 convidados elegíveis para tal em Consulta Prévia. Não se coloca este problema nos ajustes directos, porque só se convida um, claro.

Mas o que seria razoável e consistente como objectivo do nº 6 do artigo 113º, já está a ser subvertido na prática de algumas entidades adjudicantes, que se encontram a solicitar informações globais e detalhadas a entidades “eventualmente a convidar”, sem tal pedido ser acompanhado da lista indicativa a fornecer pelo adjudicante, de quais as entidades impedidas para aquele determinado procedimento, pois é em relação a essas e a mais nenhuma que a informação solicitada se destina.

Como exemplo desta prática que entendemos completamente ilegal, determinada entidade adjudicante solicitou que “ Nos termos do disposto no n.º 6 do artigo 113.º do Código dos Contratos Públicos, na atual redação introduzida pela Lei n.º 30/2021, de 21 de Maio, e tendo em vista o eventual convite à apresentação de proposta a dirigir à vossa empresa num procedimento a lançar brevemente necessitamos que nos informem se existem e quais as entidades com que estejam especialmente relacionados, considerando-se como tais, nomeadamente, as entidades com que partilhem, ainda que apenas parcialmente:

(i) representantes legais, ainda que apenas parcialmente;

(ii) sócios, ainda que apenas parcialmente;

(iii) relações de parentesco, que já tenham contratado com a ESS na sequência de ajuste direto ou consulta prévia;

(iv) sociedades que se encontrem em relação de simples participação, sendo que, nos termos do n.º 1 do artigo 483.º do Código das Sociedades Comerciais (doravante CSC), considera-se que uma sociedade está em relação de simples participação com outra quando uma delas é titular de quotas ou ações da outra em montante igual ou superior a 10% do capital desta, mas entre ambas não existe nenhuma das outras relações previstas no artigo 482.º do CSC;

(v) sociedades que se encontrem em relação de participação recíproca, sendo que tal se verifica quando ocorre quando ambas as participações atinjam 10% do capital da participada, nos termos do n.º 1 do artigo 485.º do CSC;

(vi) sociedades que se encontrem em relação de domínio, sendo que, nos termos do n.º 1 e 2 do artigo 486.º do CSC, considera-se que duas sociedades estão em relação de domínio quando uma delas, dita dominante, pode exercer, diretamente ou por sociedades ou pessoas que preencham os requisitos indicados no artigo 483.º, n.º 2, sobre a outra, dita dependente, uma influência dominante. Com efeito, presume-se que uma sociedade é dependente de uma outra se esta, direta ou indiretamente: a) Detém uma participação maioritária no capital; b) Dispõe de mais de metade dos votos; c) Tem a possibilidade de designar mais de metade dos membros do órgão de administração ou do órgão de fiscalização, ou;

(vii) sociedades que se encontrem em relação de grupo, ou seja, aquelas em que, em virtude da constituição inicial (art. 488.º CSC), aquisição de ações/quotas superveniente (art. 489.º CSC), ou por contrato (arts. 492.º e 493.º CSC), apresentem uma direção unitária comum.”

Neste modo de proceder à aplicação do nº 6 doi artigo 113º, estão a ser praticados os seguintes actos ilegítimos e ilegais pela entidade adjudicante:

a) Encontra-se a elaborar algo como um cadastro das participações de grupo e das identificações dos seus órgãos sociais de entidades privadas, sem que para isso possua qualquer autoridade ou condição legal;

b) O pedido de informação formulado não refere sequer qual o tipo de procedimento ou objecto do convite, conduzindo a que uma entidade privada seja constrangida a prestar estas informações, para um convite por cujo objecto até não se interessaria ou não teria condições para apresentar proposta, pois não sabe qual é, quando presta a informação;

c) O pedido de informação da entidade adjudicante, nem sequer refere que esta se comprometeria a convidar o declaratário, se este cumprisse as condições de elegibilidade. Isto é, a informação solicitada, nem tem uma finalidade definida, podendo configurar no limite o que popularmente se designa por mera “bisbilhotice”;

A Legislação comunitária e nacional sobre proteção de dados, encontra-se flagrantemente violada por pedidos de informação formulados para os efeitos do nº 6 do artigo 113º, se o modo de as obter for aquele que atrás descrevemos. Nos termos da lei sobre proteção de dados, os dados pessoais devem ser adequados e relevantes para os fins para os quais são processados. Deve, em particular, ser assegurado que os dados pessoais recolhidos não sejam excessivos e não sejam mantidos por mais tempo do que o necessário para os fins para os quais são processados. Os dados pessoais devem ser processados ​​apenas se a finalidade do processamento não puder ser razoavelmente cumprida por outros meios.

Este simples exemplo, é mais um a confirmar a enorme dificuldade da administração publica portuguesa, compreender os limites das suas competências, extravasando imediatamente os seus poderes, sempre que o legislador inadvertidamente lhe permite. Em conclusão: quem tem de resolver e prover a regularidade de cada convite é a entidade adjudicante. Mas para tal desiderato, não pode violar a lei de proteção de dados, obrigação que notoriamente, muitas entidades não estão a cumprir.