Jorge Bacelar Gouveia
Professor Catedrático de Direito, Advogado e Jurisconsulto. Presidente do Conselho Fiscal da Ordem dos Advogados Portugueses. Presidente do Instituto de Direito e Segurança.
Da incredulidade ao choque
1. É sempre com emoção que se revive o dia 11 de setembro de 2001. E revivo-o a vários títulos, agradecendo à Livraria Almedina esta especial oportunidade para o fazer 20 anos depois.
Recordo que na madrugada do dia 11 de setembro de 2001 tinha acabado de chegar de uma longa viagem ao Brasil, mais concretamente de Curitiba-São Paulo, sul do Brasil que visitara por vários dias, proferindo algumas conferências académicas.
Logo que entrei em casa, após o desembarque no aeroporto, recebi um telefonema da minha mãe, que chorava perante o que estava a suceder e a pedir-me para ligar a televisão.
2. A princípio, pensei que fosse algo de fantasioso, tendo já um dos aviões colidido com uma das Torres Gémeas de Nova Iorque do World Trade Center, que visitara, pela última vez, em agosto de 1999.
Depressa percebi a verdade dos acontecimentos e a sua magnitude, lembrando nesses dias uma crónica que o Professor Carlos Amaral Dias começara a escrever no Diário de Notícias, com o título “Os dias que abalaram o Mundo”.
Confesso que tal título jamais desapareceu da minha memória, num primeiro momento por más razões, e num segundo momento por boas razões:
– por más razões, primeiro, por ter considerado que tal título, para aquela altura, era sensacionalista, não desvalorizando, contudo, os sérios acontecimentos;
– por boas razões, depois, que só mais tarde perceberia, porque, na verdade, esses acontecimentos – por junto com outros que se foram conhecendo e que se repetiriam – tinham sido certeiramente intuídos por aquele ilustre psicanalista como um momento de viragem na História da Humanidade.
A Segurança como o tema do século XXI
3. Eis que a porta de entrada no século XXI tornou o tema da Segurança como o seu tema central, passando a condicionar a nossa vida coletiva.
Decerto que a Segurança já havia sido entendida noutros terríveis momentos da História do século XX, com as duas guerras mundiais, mas agora a questão assumira outras proporções por via de um novo tipo de terrorismo, dito de 4ª geração, jihadista-fundamentalista, com traços próprios:
– um terrorismo “religioso”, fundado numa conceção radical e muito minoritária na interpretação de textos do Islão, que é uma religião de paz;
– um terrorismo “civilizacional”, que põe em questão os fundamentos da coexistência pacífica da diversidade de culturas que o mundo global alcançou com toda a maturidade, depois de muitas guerras;
– um terrorismo “barato”, em que qualquer objeto ou artefacto se pode transformar numa “arma”, como foi o caso do uso de aviões comerciais que embateram contra os edifícios de Nova Iorque, coisa que ninguém, por mais criativo que fosse, poderia cogitar;
– um terrorismo “capilar”, que é executado por pessoas comuns, que assumem uma missão salvífica, que passa, as mais das vezes, pelo seu próprio suicídio;
– um terrorismo “difuso”, que está em qualquer lugar, mas que não está em lugar algum, de geometria variável no tempo e no espaço.
4. Não se pode, por isso, estranhar que o tema da Segurança tenha progressivamente penetrado em todas as áreas da atividade humana, assim como nas Ciências Sociais e Humanas, e em particular na Ciência do Direito.
O 11 de setembro de 2001 como que redimiu o pensamento de Samuel P. Huntington – que tão ostracizado seria por causa do seu livro “O Choque das Civilizações”, que muitos fortemente verberaram – e veio sobretudo confirmar a intuição excecional do grande sociológico já falecido, Ulrich Beck, que cunhara antes o conceito de “sociedade de risco”, o qual depois desenvolveria, com os seus livros magníficos “Sociedade de Risco” (Risikogesellschaft) e “Sociedade de Risco Mundial” (Weltrisikogesellschaft) (ver obra).
A Segurança e o Direito: o novo Direito da Segurança
5. Felizmente que o tema da Segurança foi acolhido pelo Direito como um seu novo capítulo, a que se pode chamar “Direito da Segurança”, o qual se diferencia de um mero Direito Administrativo Militar ou Policial.
Foi nessa linha de pensamento que escrevi em 2020 um manual com 1200 páginas, “Direito da Segurança” (ver obra), em 2ª edição, publicado pela Livraria Almedina.
Trata-se de encarar a Segurança que é objeto deste novo Direito num prisma poliédrico, ela própria visando a proteção da pessoa no novo ambiente da segurança humana – e esta se libertando dos espartilhos da antiga e clássica (e obsoleta) “segurança político-militar”, que se confinava às relações político-internacionais entre Estados.
Este desabrochar da Segurança, nas suas múltiplas valências, só favoreceria o fortalecimento das outras dimensões da vida coletiva, para lá da mera democracia política, agora com as democracias económica, social e ambiental.
6. Ora, o Direito tem um importante papel a desempenhar em toda esta nova complexidade político-social que a verdadeira Segurança procura proteger, frisando-se que a Segurança é também um direito fundamental, a qual pode ainda – num notável paradoxo – ser razão para a compressão de outros direitos fundamentais.
É assim que este Direito da Segurança tem o fito de reequacionar os poderes do Estado – e de outras entidades jurídico-públicas, supra e infraestaduais – na sua relação com os cidadãos, bem como melhor articular as múltiplas estruturas de segurança, que se redimensionaram em função deste novel conceito de segurança humana.
7. Este Direito, em relação à Segurança, numa parábola mais imediatista, é, ao mesmo tempo, um “acelerador” e um “travão”:
– “acelerador” porque o incremento das ameaças e dos riscos – que o 11 de setembro trouxe, mas em geral a própria globalização e a Queda do Muro de Berlim já tinham em parte consubstanciado – implica que se intensifiquem os instrumentos de ação do poder público na busca de mais segurança;
– “travão” porque tal incremento não pode deixar de se desenhar no contexto do Estado de Direito, que não fica entre parêntesis, ainda que se possa aceitar novas modalidades de intervenção, sem se questionar a essência dos direitos e das liberdades que o Estado de Direito – para o ser na substância, e não apenas no nome – deve sempre reconhecer.
Afinal, o Direito da Segurança continua: a pandemia da COVID-19
8. A comprovar a necessidade de os estudos jurídico-científicos da segurança continuarem está a pandemia da COVID-19 que nos tem afligido nestes dois anos, desafiando não apenas os profissionais de saúde como também os juristas, mostrando quão desajustados estão os mecanismos existentes de configuração da vida coletiva para lhe fazer face.
Tive a sorte de há 22 anos discutir a minha tese de doutoramento sobre o “Estado de Exceção no Direito Constitucional” (e, recentemente, publiquei uma síntese da mesma, sob o título “Estado de Exceção no Direito Constitucional” – ver obra), mas estava longe de imaginar a sua utilidade prática, tendo então escolhido este domínio com a esperança de que o mesmo nunca se vivesse na realidade, o qual apenas teve a minha preferência pela sua beleza teórico-dogmática no plano do Direito Constitucional.
Mas logo se percebeu que tal tema é eterno e foram notórias as dificuldades e os erros cometidos, nas diversas escolhas para se combater esta pandemia, por parte de pessoas e organismos públicos.
9. A pandemia da COVID-19 – para quem ainda tivesse dúvidas, veio sublinhar a pertinência de um novo Direito da Segurança muito além da sua visão administrativo-policial, fazendo emergir outras estruturas de segurança na área da proteção civil.
Mas sobretudo, no caso português, a pandemia suscitou a urgência da obtenção de novos equilíbrios entre a liberdade e a autoridade, sem esquecer as dificuldades próprias da intervenção das autoridades públicas num Estado Regional como é Portugal, em que, ao lado de sistemas nacionais de saúde e de proteção civil, há sistemas regionais próprios.
Só pode ser de aplaudir o caminho – lento, mas seguro, passo que mais se estugaria nesta segunda geração de perplexidades que a segurança sanitária trouxe – que as Faculdades de Direito têm tomado no sentido de acolherem, nos seus planos de estudos, novas disciplinas e novos cursos sobre tópicos que se integram nesta grande dimensão intradisciplinar e transdisciplinar que o Direito da Segurança convoca.