Sofia Lopes Agostinho

Licenciatura em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.


1. Introdução

O tema que ora nos ocupa, versa sobre a análise da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do processo n.º 1097/12.6TBMGR.C1 e a sua pertinente aplicabilidade aos litígios que ocorrem e continuarão a ocorrer nos dias que correm, no contexto da atual pandemia provocada pelo vírus SARS-Cov-2. O cerne da análise está portanto no impacto da referida pandemia na execução dos mais variados contratos.

Como tal, será imprescindível analisar, quer de facto quer de direito, os termos da decisão proferida.

a) Dos factos em discussão nos autos

No processo sob análise, resulta que as partes celebraram, a 7 de novembro de 2005, um contrato promessa de compra e venda de determinados lotes de terreno para construção sitos na freguesia de Santo António dos Olivais, em Coimbra. Perante o Tribunal de Primeira Instância, a Autora -promitente compradora- intentou ação declarativa com processo comum e forma ordinária, pedido que que se declarasse a resolução do referido contrato e que se condenasse o Réu -promitente vendedor- ao pagamento de quantia certa, alegando para tal que se reúnem os requisitos necessários para aplicação do artigo 437.º do Código Civil.

Em face da contestação do Réu, propugnando pela falta de fundamentação da ação e alegando factos que apontam para a improcedência da mesma, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo o Réu do pedido.

Inconformada, a Autora interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, no qual se deram como provados os factos que passaremos a analisar.

O litígio teve na sua base o facto de se ter apurado não ser possível licenciar os projetos de construção relativos aos lotes contratualizados.

Assim, e conforme informação prestada pela Câmara Municipal de Coimbra ao Réu, só com a alteração do Alvará de loteamento poderiam ser aprovados os projetos de construção dos lotes em litígio. Com base nesta informação, o Réu solicitou à Câmara Municipal de Coimbra uma alteração ao alvará de loteamento, de forma a viabilizar a aprovação dos respetivos projetos de construção. Tal pedido foi deferido, por ofício datado de 24 de abril de 2009, pela Câmara Municipal de Coimbra, quatro anos após a celebração do contrato promessa de compra e venda.

Entretanto, a 12 de fevereiro de 2009, ainda na ignorância da dimensão da crise económica que se fazia sentir, respetivos efeitos e consequências no setor imobiliário, a Autora requereu a notificação judicial do Réu para no prazo de 8 dias marcar a escritura pública contratualizada, sob pena de, não o fazendo, dar o contrato por definitivamente não cumprido, por culpa exclusiva do Réu. Tendo sido notificado de tais factos, o Réu não procedeu à marcação da escritura pública, comunicando à Autora que não se mostravam reunidos os pressupostos ajustados para celebração da escritura pública de compra e venda.

Posteriormente, a 20 de março de 2009, foi a Autora presencialmente informada da impossibilidade de celebração das escrituras dos lotes, dispondo-se o Réu a vender à Autora outros lotes do empreendimento alguns dos quais com características construtivas semelhantes. Contudo, a Autora recusou a proposta, optando por aguardar o licenciamento dos lotes contratualizados.

De carta datada de 11.04.2012, enviada pelo Réu à Autora e por esta recebida, constam, entre outros, os seguintes dizeres: “ (…) Por acórdão de 29.11.2011, já transitado em julgado, o Tribunal da Relação de Coimbra julgou definitivamente improcedente a acção proposta por essa empresa na qual era pedida a resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado em 7 de Novembro de 2005 relativo a dois lotes de terreno (…) Julgada improcedente a acção, resta a essa empresa cumprir o contrato, celebrando as escrituras e pagando os preços em dívida. Sucede que, decorridos vários meses sobre o desfecho do referido processo judicial não estabeleceram V. Exas como seria de esperar qualquer contacto formal no sentido de cumprir as V. Obrigações contratuais e legais; 3. Nessa conformidade, vimos pela presente solicitar que nos indiquem o prazo necessariamente breve, em que pretendem outorgar a escritura pública de compra e venda

Todavia, a Autora considerou que não lhe seria exigível que cumprisse o contrato, uma vez que o Tribunal da Marinha Grande, sancionado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, julgou definitivamente, apenas sobre a questão do incumprimento culposo do contrato por parte do Réu, e a consequente devolução do sinal em dobro, não se debruçando todavia, sobre a questão da alteração das circunstâncias que fundamentaram a decisão de contratar.

A Autora aguardou quatro anos pelo cumprimento do contrato. Por causas que lhe eram completamente alheias, a partir do ano de 2009, o mercado imobiliário terá sido “acometido a uma grave crise que se tem vindo a aprofundar. Hoje em dia, o mercado imobiliário está moribundo, quer pela ausência de crédito bancário à construção e à aquisição de casa própria, que por via da enorme crise que se abateu sobre todos os sectores da vida económica nacional”.

A Autora previa encetar e concluir a construção dos apartamentos objeto do contrato até cerca de um ano e meio após a realização da prometida escritura pública e, bem assim, vendê-los, dado que, no último trimestre de 2005 se verificava uma forte expansão das vendas na área de construção civil na cidade de Coimbra.

À data em que lhe vinha a ser exigido o cumprimento do contrato, pelo contrário, e conforme argumentado pela Autora, “o aumento da dívida pública dos países periféricos da zona euro (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha), com aumentos dos juros que implicaram que a Troika (Comissão Europeia, BCE e FMI) procedesse ao resgate financeiro de alguns desses países, com subida de impostos e redução da despesa pública e da actividade económica e com consequente redução do consumo e aumento do desemprego; aumento da emigração portuguesa; aumento das insolvências; redução de salários; incumprimentos, por muitas famílias portuguesas, dos contratos de crédito para aquisição de casa; diminuição da procura de casas para aquisição.” Este contexto era, à data da celebração do contrato de promessa de compra e venda, totalmente imprevisível para ambas as partes.

b) Da Decisão

Ora, nos termos do artigo 437.º do Código Civil, isto é, ao abrigo do instituto da alteração superveniente das circunstâncias, são vários os requisitos para que se possa resolver um contrato, a saber: (i) que a alteração considerada relevante diga respeito a circunstâncias em que se alicerçou a decisão de contratar, isto é, a circunstâncias que, ainda que não determinantes para ambas as partes, se apresentem como evidentes, segundo o fim típico do contrato, ou seja, que se encontrem na base do negócio, com consciência de ambos os contraentes ou razoável notoriedade – «como representação mental ou psicológica comum patente nas negociações (base subjetiva), ou condicionalismo objetivo apenas implícito, porque essencial ao sentido e aos resultados do contrato celebrado (base objetiva); (ii) que essas circunstâncias fundamentais hajam sofrido uma alteração anormal, isto é, imprevisível ou, ainda que previsível, afetando o equilíbrio do contrato; (iii) que a estabilidade do contrato envolva lesão para uma das partes, quer porque se tenha tornado demasiado onerosa, numa perspetiva económica, a prestação de uma das partes (conquanto não se exija que a alteração das circunstâncias coloque a parte numa situação de ruína económica), quer porque a alteração das circunstâncias envolva, para o lesado, grandes riscos pessoais ou excessivos sacrifícios de natureza não patrimonial; (iv) que a manutenção do contrato ou dos seus termos afete gravemente os princípios da boa-fé negocial; (v) que a situação não se encontre abrangida pelos riscos próprios do contrato, isto é, que a alteração anómala das circunstâncias não esteja compreendida na álea própria do contrato, ou seja, nas suas flutuações normais ou finalidade ou nos riscos concretamente contemplados pelas partes no acordo contratual celebrado[1].

Assim, e conforme refere o tribunal a quo, uma das circunstâncias relevantes para os efeitos aqui pretendidos, será a modificação do valor da moeda[2]. Ademais, o tribunal refere que “[a] alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram o contrato pode resultar da alteração da legislação existente à data do negócio, como pode resultar de acontecimentos políticos ou da modificação repentina do sistema económico vigente. Essas situações são aquelas sobre as quais as partes não construíram quaisquer representações mentais (não pensaram nelas, pura e simplesmente), mas que são de qualquer modo imprescindíveis para que, através do contrato, se atinjam os fins visados pelas partes”.

In casu, sendo o objeto do contrato dois lotes de terreno para construção onde seriam erigidos edifícios com mais de uma dezena de apartamentos cada, e sendo intenção da Autora concluir a construção e vender os referidos apartamentos até cerca de um ano e meio após a realização da escritura, e considerando ainda que no último trimestre de 2005 se verificava uma forte expansão das vendas na área da construção civil na cidade de Coimbra, o Tribunal considerou que a Autora teria fundadas razões para crer que, permitindo o teor do contrato a expectativa de a escritura definitiva ser celebrada até fins de Março de 2006, os apartamentos estariam construídos e vendidos durante o ano de 2007.

Tal expectativa não se concretizou por força da crise económica de 2008 que afetou gravemente, e de forma imprevisível, o setor imobiliário.

Em face da factualidade disposta, o Tribunal propugnou que a celebração da prometida escritura pública de compra e venda implicaria a disposição imediata por parte da Autora, de uma quantia monetária elevada que, em face do panorama vivido à data dos autos, dificilmente lhe seria acessível. Assim, estariam reunidos os requisitos para que a obrigação de cumprimento o contrato por parte da Autora afetasse gravemente os princípios da boa-fé. Ademais, não estando perante um contrato aleatório, o Tribunal adianta que não poderá considerar-se coberta pelos riscos próprios do contrato a exigência do respetivo cumprimento.

Deste modo, considerou o Tribunal a quo que estariam, no presente caso, reunidos os requisitos para resolução do contrato promessa de compra e venda, celebrado entre a Autora e o Réu.

Como consequência, e de acordo com os artigos 439.º, 433.º e 289.º do Código Civil, foi decidido pela restituição pelas partes, de tudo o que teria sido até então prestado, nomeadamente as quantias do sinal e princípio de pagamento.

  1.  O instituto da Alteração Superveniente das Circunstâncias e a sua aplicação à pandemia causada pelo vírus SARS-Cov-2 e à crise económica subsequente

Analisada a situação do processo, cumpre por ora sintetizar em que termos poderá a presente decisão relevar para os conflitos emergentes de contratos que vigorem ou se tenham prometido celebrar, no atual contexto pandémico em que vivemos.

Sendo certo que o princípio pacta sunt servanda é um dos mais firmes pilares do direito civil, inspirado na necessidade imperativa de segurança jurídica nas relações contratuais, seria inconcebível que a lei não contemplasse exceções, que desonerassem as partes do cumprimento de um contrato especialmente oneroso para uma delas, provocando um desequilíbrio acentuado entre as prestações, e sobrepondo-se a outro dos grandes pilares do direito civil, a autonomia privada.

No espetro oposto ao princípio pacta sunt servanda, está a cláusula rebus sic stantibus, que representa a ideia correspondente ao subjetivismo liberal, que acentua o momento da celebração do contrato, e de acordo com a qual, qualquer alteração das circunstâncias deve relevar para a extinção do contrato.

Ora, na ausência de uma cláusula de hardship, que dite a vontade das partes, cabe, as mais das vezes aos Tribunais, desvendar, em face das circunstâncias concretas de cada caso, quando é que uma alteração anormal das circunstâncias é relevante o suficiente para motivar a alteração ou resolução do contrato.

É precisamente neste contexto, que o artigo 437.º cumpre a sua função.

Em face da letra da lei, o primeiro grande obstáculo será precisamente desvendar o conceito indeterminado de “alteração anormal”. Neste sentido, ajuda-nos Almeida Costa, esclarecendo que “A alteração anormal caracteriza-se pela excecionalidade: é a anómala, a que escapa à regra, a que produz um sobressalto, um acidente, no curso ordinário ou série natural dos acontecimentos[3], bem como Menezes Leitão que defende que “Situações excepcionais como uma revolução ou o deflagrar de um estado de guerra podem facilmente ser qualificados como alteração das circunstâncias (…) Alterações legislativas completamente inesperadas também devem ser qualificadas como tal. Já outras hipóteses como a simples alteração do preço dos produtos comercializados ou a não obtenção das autorizações admnistrativas necessárias não preencherão o requisito da anormalidade[4].

O segundo ponto que cumprirá analisar, será o de saber em que circunstâncias a manutenção do contrato afeta gravemente o princípio da boa-fé. Sobre este ponto, já se pronunciou Menezes Cordeiro, defendendo que “Torna-se difícil fixar um quantitativo percentual a partir do qual o dano é incompatível com a boa-fé; algumas decisões jurisprudenciais inculcam, no entanto, a ideia de prejuízos descomunais[5].

Por fim, importa que a alteração em causa não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato. Neste sentido, e especialmente relevante para o caso sob análise, propugnou o Tribunal da Relação de Lisboa, em Acórdão de 11/12/1986, que “no contrato-promessa de compra e venda não é de considerar qualquer flutuação do valor da moeda dentro dos riscos do contrato, mas tão só aquelas flutuações que estejam dentro da normalidade da vida económico-social que não relevam face ao princípio da estabilidade dos contratos[6].

Ora, conforme já analisado a propósito da crise de 2008, a imprevisibilidade de uma crise económica que não se avizinhava aquando da celebração de determinado contrato, ou mesmo no seu início por “ignorância da dimensão da crise”, conforme defendido pelo Tribunal da Relação de Coimbra no âmbito do Acórdão supra analisado, poderá ser o suficiente para que o mecanismo da alteração anormal das circunstâncias seja ativado, contando que o risco próprio do contrato não aponte em sentido diverso.

No fundo, a conjuntura socioeconómica provocada pela pandemia, poderá justificar, especialmente no que respeita a determinados setores específicos que viram a sua atividade profundamente afetada, que a manutenção de determinados contratos afete gravemente os princípios da boa-fé, por conta de um circunstancialismo que certamente ninguém poderia prever, alterando a base factual em que as partes fundaram a decisão de contratar.

Transpondo este dado adquirido por força da jurisprudência e doutrina supra analisadas, para o contexto pandémico em que nos encontramos, através de um raciocínio analógico, será caso para dizer que o incumprimento de contratos que resulte da atual conjuntura socioeconómica, poderá estar abrangida pelo mecanismo da alteração anormal das circunstâncias, mutatis mutandis.


[1] Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo n.º 648/2007-1, datado de 03/07/2007, Rui Vouga.

[2] À semelhança do propugnado por PIRES DE LIMA & ANTUNES VARELA (in “Código Civil Anotado”, vol. I, 3ª ed., 1982, p. 388)

[3] ALMEIDA COSTA in “Direito das Obrigações” cit., p. 299.

[4] LUÍS MENEZES LEITÃO in “Direito das Obrigações”, Vol. II, 2ª ed., 2003, p. 129.

[5] MENESES CORDEIRO in “Da Alteração das Circunstâncias” cit., p. 68.

[6] in Col. Jur., 1986, tomo 5, p. 145.