Paula Quintas

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Doutora em Direito. Professora do ISVOUGA. Membro do JusGov – Centro de Investigação em Justiça e Governação da Escola de Direito da Universidade do Minho.


O art. 25º, da CRP, expressa que a integridade moral e física das pessoas é inviolável.

Também o art. 81º, nº 1, do CC, estatui que “Toda a limitação voluntária ao exercício dos direitos de personalidade é nula, se for contrária aos princípios da ordem pública”.

“Problema típico é o de saber se o direito à integridade pessoal impede o estabelecimento de deveres públicos dos cidadãos que se traduzam em (ou impliquem) intervenções no corpo das pessoas (v.g., vacinação, colheita de sangue para testes alcoolémicos, etc.). A resposta é seguramente negativa, desde que a obrigação não comporte a sua execução forçada”, comentam JOAQUIM GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA.[1]

O legislador ordinário no art. 19º, nº 1, CT/09, assegura o direito de comprovação por parte do empregador das condições físicas ou psíquicas do (candidato a emprego ou) trabalhador, admitindo-se expressamente a realização de testes e exames médicos, sendo os respetivos pressupostos de admissibilidade os seguintes:

– Proteção e segurança do trabalhador ou de terceiros;

– Particulares exigências inerentes à atividade o justifiquem (v.g., atividades médica, de enfermagem);

– Seja fornecida, por escrito, ao candidato a emprego ou trabalhador a respetiva fundamentação.

O nº 3 estabelece que, a intervenção do médico, se limita a comunicar ao empregador a aptidão ou não aptidão para a função pretendida. Para um melhor enquadramento, revisitemos a história do art. 17º (Proteção de dados pessoais, do CT/09.

O art. 17º, nº 2, al. b), do nº 2, cuida exclusivamente dos chamados dados sensíveissaúde ou estado de gravidez (dados pessoalíssimos). Este número fez parte, aquando da publicação do CT/03, do conjunto de normas objeto de fiscalização preventiva, por, e após a proibição de o empregador exigir ao candidato a emprego ou ao trabalhador informação relativa à sua saúde ou estado de gravidez, permitir uma derrogação a essa proibição fundada nas “exigências inerentes à natureza da atividade profissional”, apesar de se exigir “por escrito a respetiva fundamentação”. 

O Acórdão n.º 306/2003, de 18.07[2]., pronunciou-se pela inconstitucionalidade do art. 17º, nº 2, segundo segmento, do decreto da Assembleia da República n.º 51/IX, que aprovou o CT/2003,  por violação do princípio da proibição do excesso nas restrições ao direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada, decorrente das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Entendeu o Tribunal Constitucional, que a norma constante do segundo segmento do n.º 2 do artigo 17.º do Código do Trabalho –“ na medida em que permite o acesso direto do empregador a informações relativas à saúde ou estado de gravidez do candidato ao emprego ou do trabalhador – viola o princípio da proibição do excesso nas restrições ao direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada, decorrente das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da CRP”.

Da declaração do TC, resultou então o aditamento previsto no nº 2, que obriga a que a informação seja prestada a médico, ou seja, há uma mediatização de todas as informações recebidas, e aquele apenas transmite ao empregador se o candidato a emprego ou o trabalhador está apto ou não para o desempenho pretendido.

Os princípios relativos ao tratamento de dados pessoais (art. 5º, do RGPD) são:

Princípio da licitude, lealdade e transparência: os dados são objeto de um tratamento lícito, leal e transparente em relação ao titular dos dados, nos termos da al. d);

Princípio da limitação das finalidades: os dados são recolhidos para finalidades determinadas, explícitas e legítimas, não podendo ser tratados posteriormente de uma forma incompatível com essas finalidades; o tratamento posterior para fins de arquivo de interesse público, ou para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, não é considerado incompatível com as finalidades iniciais, em conformidade com o artigo 89º, nº 1, segundo a al. b);

Princípio da minimização dos dados: os dados tratados são os adequados, pertinentes e limitados ao que é necessário relativamente às finalidades para as quais são tratados, dispõe a al. c);

Princípio da exatidão: os dados são exatos e atualizados sempre que necessário; devem ser adotadas todas as medidas adequadas para que os dados inexatos, tendo em conta as finalidades para que são tratados, sejam apagados ou retificados sem demora, de acordo com a al. d);

Princípio da limitação da conservação: os dados são conservados de uma forma que permita a identificação dos titulares dos dados apenas durante o período necessário para as finalidades para as quais são tratados; os dados pessoais podem ser conservados durante períodos mais longos, desde que sejam tratados exclusivamente para fins de arquivo de interesse público, ou para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, em conformidade com o artigo 89º, nº 1, sujeitos à aplicação das medidas técnicas e organizativas adequadas exigidas pelo presente regulamento, a fim de salvaguardar os direitos e liberdades do titular dos dados, nos termos da al. e);

Princípio da integridade e confidencialidade: os dados são tratados de uma forma que garanta a sua segurança, incluindo a proteção contra o seu tratamento não autorizado ou ilícito e contra a sua perda, destruição ou danificação acidental, adotando as medidas técnicas ou organizativas adequadas, dispõe a al. f).

De acordo com o nº 2, o responsável pelo tratamento é responsável pelo cumprimento destes requisitos e tem de poder comprová-lo («responsabilidade»)[3].

Como corolário da intervenção do médico (do trabalho), há que aludir ao modelo da ficha de aptidão (aprovado pela Portaria nº 71/2015, de 10 de março), a qual deve ser preenchida pelo médico do trabalho face ao exame de admissão, periódico, ocasional ou outro do trabalhador (art. 2º, nº 1).

A ficha de aptidão deve ser dada a conhecer ao trabalhador, ao responsável do serviço de segurança e saúde no trabalho e ao responsável pelos recursos humanos da empresa, nos termos do disposto no art. 110º, do RJSST (art. 2º, nº 2, da Portaria citada).

Sobre o consentimento do trabalhador, no considerando 43) do RGPD, preceituou-se que “[…] em casos específicos em que exista um desequilíbrio manifesto entre o titular dos dados e o responsável pelo seu tratamento, o consentimento não deve ser tido como fundamento válido de licitude deste”.

Muito antes, já o TC (Ac. nº 368/2002, de 25.09), e num outro momento histórico-jurídico, entendia que a realização de testes ou exames constitui em certos casos um ónus relativamente à obtenção do emprego e noutros casos um verdadeiro dever jurídico de que pode depender a própria manifestação da relação laboral. Pelo que, a obrigatoriedade da sujeição a tais exames não deve ser realizada pela natureza e finalidade do exame de saúde, como abusiva, discricionária ou arbitrária, convindo que o médico não se afaste do “estritamente necessário, adequado e proporcionado à verificação de alterações na saúde do trabalhador causadas pelo exercício da sua atividade profissional e à determinação da aptidão ou inaptidão física ou psíquica do trabalhador para o exercício das funções correspondentes à respetiva categoria profissional”. (DR, II Série, de 25.10.03).

Em suma, a legitimidade dos testes à Covid-19 no regresso ao trabalho obriga ao cumprimento cabal do disposto no art. 19º/CT09 e estrito cumprimento dos princípios gerais de tratamento plasmados no RGPD.


[1] Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra Editora, 4ª ed., 2007, p. 456.

[2] Pub. No DR, I Série, de 18.07..

[3] PAULA QUINTAS e HÉLDER QUINTAS, Código do Trabalho Anotado, Almedina, 5ª. Ed. 2020, p. 102 e 103.