Sofia Ribeiro Branco

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Sofia Ribeiro Branco, nasceu em Lisboa, licenciou-se em Direito pela Universidade Católica Portuguesa em 1999, concluiu o mestrado em Ciências Jurídicas em 2008, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (dissertação sobre o direito dos accionistas à informação). É advogada, exercendo a sua actividade na área de contencioso, onde tem trabalhado, essencialmente, em assuntos de contencioso comercial (incluindo contratos de distribuição), societário, criminal e contra-ordenacional, em Portugal e no estrangeiro. É autora de “A representação de minorias accionistas no Conselho de Administração”, 2004.


Em concretização da autorização constante da Lei do Orçamento do Estado para 2020, o Governo aprovou em Conselho de Ministros de 22.12.2020 o Decreto-Lei n.º 9/2021, que alterou quase 180 diplomas e aprovou o novo Regime Jurídico das Contraordenações Económicas (ou “RJCE”), regime sancionatório aplicável transversalmente e estruturante para as atividades económicas em geral.

O preâmbulo do Decreto-Lei n.º 9/2021 esclarece que o seu propósito é promover e defender a maximização do bem-estar, da segurança e da proteção dos direitos dos consumidores, para o regular funcionamento dos mercados e a competitividade da economia e para a promoção da concorrência.

Refere-se ainda a título preambular a disparidade de regimes sancionatórios previstos nos diplomas que regulam a atividade económica como elemento justificador da criação de um Regime Jurídico das Contraordenações Económicas não obstante o enquadramento comum fixado pelo Regime Geral das Contraordenações (“RGCO”).

Assiste-se, assim, à criação de mais um regime contraordenacional especial, com soluções inovatórias, algumas delas de difícil compaginação com os princípios gerais do RGCO e com a Constituição. O RJCE surge, a partir de agora, como o regime-regra aplicável a muitas centenas de contraordenações, remetendo para o RGCO no que nele não estiver previsto, o qual, por sua vez, indica como subsidiários os Códigos Penal e de Processo Penal. Isto quer dizer que, mesmo que o RGCO não admita, pela natureza do ilícito em causa, determinadas restrições a Direitos, Liberdades e Garantias (como as buscas domiciliárias), desde que o RJCE as contemple, teoricamente, essas restrições poderão ser ultrapassadas. Como veremos, algumas dessas medidas, adotadas pelo RJCE, levantam sérias questões de conformidade constitucional.

O RJCE entra em vigor em 28.07.2021 e aplica-se a todos os processos em curso, desde que, em concreto, seja mais favorável ao arguido.

Destacamos abaixo alguns aspetos do RJCE a que atribuímos maior relevância.

Contraordenação Económica

Com o RJCE foi criada a figura da Contraordenação Económica, definida como o ilícito contraordenacional por violação de disposições legais e regulamentares relativas ao acesso ou ao exercício, por qualquer pessoa singular ou coletiva, de atividades económicas nos setores alimentar e não alimentar para o qual se comine uma coima.

Como regra, a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (“ASAE”) é a entidade com competência para fiscalizar, instruir e decidir os processos por contraordenação económica, tendo as suas competências sido reforçadas.

Âmbito de Aplicação

Ficaram expressamente excluídas, nomeadamente, as contraordenações ambientais, financeiras, fiscais e aduaneiras, das comunicações, da concorrência e da segurança social. As contraordenações assim nomeadas pelo RJCE regem-se por regimes sancionatórios próprios, aos quais, no entanto, tal como sucede com o RJCE, se aplicam, subsidiariamente o RGCO e os Códigos Penal e de Processo Penal.

Apesar de não identificadas expressamente como excluídas, outras contraordenações para as quais também foram criados regimes especiais, não deverão considerar-se abrangidas pelo RJCE. Nesta situação estarão, entre outras, as contraordenações na aviação civil, na área da privacidade e dados pessoais ou no setor energético.

Tendo em consideração o elenco de diplomas alterados pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, para além de regimes de aplicação geral, como a lei de proteção do consumidor ou o regime das infrações antieconómicas e contra a saúde pública, estão seguramente abrangidas pelo RJCE as contraordenações relacionadas com as leis específicas nele identificadas, aplicáveis, nomeadamente aos diamantes, ourivesarias e contrastarias, jogo, setor agrícola, tabaco, direitos de autor e propriedade industrial, dispositivos médicos e veterinária, instalações desportivas, turismo, segurança contra incêndios em edifícios, práticas individuais restritivas do comércio, leilões e prestamistas e produtos alimentares (incluindo leite, sal, mel, cacau, chocolate, geleias e açucares).

Por via do Decreto-Lei n.º 9/2021, o RJCE aplica-se também a realidades que não parecem caber no seu objeto nem no propósito da sua publicação. Nesta situação estarão, por exemplo, os procedimentos contraordenacionais por violação da Lei de Prevenção do Branqueamento de Capitais e do Financiamento do Terrorismo, aos quais passará a aplicar-se, em primeira linha, este RJCE (antes da aplicação subsidiária do RGCO) quando a competência instrutória para esses procedimentos não caiba às autoridades sectoriais identificadas na referida Lei (Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, Banco de Portugal, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos).

Sanções

As Contraordenações Económicas foram classificadas como leves, graves e muito graves, variando os montantes das coimas em função da natureza singular ou coletiva do agente e da dimensão da empresa no caso das pessoas coletivas. Os valores das coimas, comparando com outros regimes, não são impressionantes. Dir-se-á, aliás, que, atendendo às sanções acessórias e às medidas cautelares aplicáveis, bem como aos meios de obtenção de prova que poderão ser utilizados, a coima poderá vir a ser a “pena” menos impactante para a empresa. Assim, por cada infração, são aplicáveis as seguintes coimas (aparentemente com exceção de regimes especiais que preveem coimas mais elevadas) e sanções acessórias[1]:


[1] No que respeita às coimas graves e muito graves indicam-se os limites mínimo e máximo aplicáveis em caso de agravação especial (em virtude do dano causado ou do benefício retirado).

Apesar de o RJCE se apresentar como um aglutinador e centralizador de regras e diplomas dispersos, não uniformiza plenamente os valores das coimas. Com efeito, os montantes acima enunciados correspondem àqueles que, em geral, passam a ser aplicáveis às contraordenações agora denominadas económicas e constantes da maioria dos diplomas alterados pelo Decreto-Lei n.º 9/2021.

Contudo, nalguns casos, mantêm-se as coimas de valor mais elevado já previstas. Encontra-se nesta situação, exemplificativamente, o regime aplicável às práticas individuais restritivas do comércio, cuja coima máxima continua a ser de € 2.500.000,00.

Caso esteja em causa uma contraordenação leve, o agente não tenha sido condenado por qualquer contraordenação económica nos últimos 3 anos, nem lhe tenha sido aplicada uma advertência, a autoridade pode levantar um auto de advertência com indicação das medidas corretivas a implementar em determinado prazo. Caso se verifique o cumprimento dessas medidas, será emitida uma advertência. Caso contrário, o processo de contraordenação é instaurado. A advertência não equivale a uma condenação, mas não pode ser aplicada nova advertência durante 3 anos.

Já no âmbito de um processo de contraordenação em curso, o RJCE prevê a possibilidade de aplicação de mera admoestação em caso de infração leve e dependendo do grau de culpa, sendo a admoestação considerada uma condenação, nomeadamente para efeitos de reincidência.

Uma novidade do novo regime consiste na previsão do pagamento voluntário da coima com desconto de 20% face ao seu valor mínimo em determinados casos. Caso esse pagamento voluntário seja efetuado no prazo para apresentação de defesa, há também isenção de pagamento das custas. O pagamento voluntário também equivale a uma condenação com efeitos na reincidência, sendo, neste caso, o processo arquivado salvo se tiver lugar a aplicação de alguma das sanções acessórias acima identificadas ou outra prevista em regime especial.

Medidas Cautelares

Durante a fase administrativa do processo (i.e., enquanto o mesmo corre junto da autoridade administrativa que, em regra, será a ASAE), em determinadas circunstâncias podem ser aplicadas medidas cautelares, sem audição prévia do visado. Para além das medidas cautelares “clássicas”, o RJCE prevê outras no caso do exercício de atividades ou práticas através de sítios na Internet:

Reforço de competências investigatórias

O RJCE prevê que a ASAE (ou outra autoridade a quem seja atribuída competência para o processo em causa) possa:

  • aceder livremente aos estabelecimentos e locais onde sejam exercidas ou se suspeita que sejam exercidas as atividades objeto da ação de fiscalização;
  • obter todos os elementos e informações que solicitar aos visados;
  • caso de contraordenações muito graves, realizar buscas domiciliárias sem necessidade de autorização do juiz de instrução caso o visado consinta na busca;
  • solicitar a cooperação necessária a todas as autoridades administrativas e policiais;
  • convidar as associações de consumidores a apresentar memoriais, pareceres técnicos, sugestão de exames ou outras diligências de prova

Este reforço de poderes da ASAE suscita-nos alguns comentários.

Em primeiro lugar, em termos gerais, o facto de estarem em causa contraordenações e não crimes, permite questionar a proporcionalidade das soluções adotadas no RJCE, nomeadamente quanto aos poderes de investigação atribuídos às Autoridades e à participação de associações de consumidores no processo.

Em segundo lugar, e dentro da mesma linha, em particular a possibilidade de realização de buscas domiciliárias revela-se excessiva, em particular se atentarmos no respetivo regime.

A norma que estatui a possibilidade de uma autoridade administrativa realizar buscas domiciliárias começa por suscitar dúvidas quanto à sua constitucionalidade orgânica e material, uma vez que restringe o princípio fundamental da inviolabilidade do domicílio de forma que pode ser considerada desproporcional.

Acresce que o RJCE parece prever que a Autoridade em causa comece por tentar realizar a busca obtendo o consentimento do buscado. Este consentimento deve ser “documentado de qualquer forma”, formulação que nos suscita dúvidas e que trará certamente questões na sua aplicação prática. Ainda em termos de consentimento do visado, refira-se que o RJCE prevê, na mesma disposição legal em que as buscas domiciliárias são reguladas, que, em caso de recusa ou obstrução à ação da autoridade administrativa esta pode solicitar a colaboração às forças policiais, sem prejuízo da responsabilidade contraordenacional e criminal do visado que recuse ou obstrua essa ação das autoridades.

Na hipótese de o visado não dar o seu consentimento à busca domiciliária (eventualmente arriscando a mencionada responsabilidade contraordenacional e criminal), é que a autoridade deve pedir autorização ao juiz de instrução criminal territorialmente competente, mediante promoção do Ministério Público.

Em terceiro lugar, a previsão no RJCE de que devem ser prestadas pelo visado à Autoridade competente as informações que lhe sejam solicitadas sob pena de incorrer em responsabilidade contraordenacional ou criminal é de constitucionalidade duvidosa por potencial violação do princípio da não autoincriminação.

Processo

Aos processos de contraordenação que sejam instaurados por contraordenações económicas aplicam-se as regras do próprio RJCE e, subsidiariamente o RGCO e as normas penais e processuais penais, neste último ponto seguindo a regra aplicável aos demais processos de contraordenação.

O RJCE estabelece alguns princípios e algumas regras clarificadoras de alguns aspetos processuais. Nomeadamente, fica assegurado o direito de impugnação judicial de todas as decisões tomadas pelas autoridades administrativas no decurso de todo o procedimento até à sua potencial entrada em Tribunal. Ficam de fora da regra da impugnação apenas as medidas que se destinem a preparar a decisão final e que não colidam com os direitos ou interesses das pessoas.

É garantido ao arguido o exercício do direito de defesa no prazo de 20 dias, podendo requerer a sua audição, juntar documentos e arrolar testemunhas.

No que respeita às testemunhas, à semelhança de outros regimes sancionatórios, o RJCE prevê que as testemunhas são obrigatoriamente apresentadas por quem as arrola. Esta disposição pode determinar violações do direito de defesa, na medida em que, não tendo os arguidos os poderes das autoridades, não podem obrigar ninguém a comparecer no processo para ser ouvido, o que poderá significar a impossibilidade de fazer prova dos factos por si alegados. Tipicamente, vê-se com dificuldade a possibilidade de o arguido conseguir assegurar a apresentação do participante da infração, das pessoas indicadas como testemunhas no auto de notícia ou de outros terceiros.

Por seu turno, as autoridades podem convocar para depôr como testemunhas quaisquer pessoas, notificando-as para o efeito, o que, para além da referida restrição ao direito de defesa do visado, é ainda suscetível de tornar o processo pouco equitativo, colocando o arguido numa posição de exagerada desigualdade.

Salientamos uma regra saudável que o RJCE trouxe ao prever que o agente autuante ou participante não pode exercer funções instrutórias no mesmo processo.

Uma vez apresentada a defesa e realizadas as diligências instrutórias deverá ser proferida decisão, a qual, sendo condenatória, pode ser impugnada judicialmente, tendo o recurso efeito suspensivo e não podendo o valor da coima ser aumentado pelo Tribunal (aplicando-se, portanto, o princípio da proibição da reformation in pejus).

No que respeita ao conteúdo da decisão condenatória, o RJCE prevê a sua fundamentação sumária, o que poderá conduzir a uma ainda maior flexibilização dessa fundamentação e gerar questões de constitucionalidade duvidosa.

Da decisão a proferir pelo Tribunal de 1.ª Instância pode recorrer-se para o Tribunal da Relação caso a coima aplicada seja superior a € 2.500,00. Esta limitação restringe o direito de recurso, constitucionalmente previsto, antecipando-se forte litigiosidade em torno da mesma.

Execução

A contrário do RGCO e dos regimes sancionatórios em geral, o RJCE prevê a execução das coimas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, em processo de execução fiscal, podendo a respetiva cobrança coerciva ser atribuída aos agentes de execução.

Regime Transitório

Nos processos de contraordenação que estejam pendentes à data de entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 9/2021 é concedida aos arguidos a possibilidade de pagamento voluntário da coima nos termos previstos no RJCE, com desconto de 20% relativamente ao valor mínimo, independentemente do valor máximo da coima aplicável.

Importa também considerar que, como se refere expressamente no referido Decreto-Lei (apesar de tal já decorrer dos princípios gerais de direito sancionatório), aplica-se o regime que em concreto for mais favorável ao arguido.

Ora, atendendo ao âmbito vastíssimo de aplicação do RJCE, haverá certamente um número considerável de processos e de situações de visados a rever.

Lisboa, 15.02.2021