Luís Poças
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Doutor em Direito (Ciências Jurídico-Empresariais), pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Licenciado em Direito (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) e em Sociologia (ISCTE-IUL). Diretor Jurídico, de Compliance e de Recursos Humanos da Una Seguros. Vice-Presidente da AIDA-Portugal (Associação Internacional de Direito dos Seguros). Investigador Doutorado Integrado (e membro do Conselho Científico) do DINÂMIA’CET (ISCTE-IUL). Coordenador do Grupo de Trabalho Compliance da Associação Portuguesa de Seguradores.
1 – Introdução
Várias são as problemáticas suscitadas pelo Regime Jurídico da Distribuição de Seguros e de Resseguros, aprovado pela Lei n.º 7/2019, de 16 de janeiro (doravante, Lei da Distribuição de Seguros – LDS), quer de índole teórica, de coerência interna, de conciliação normativa com outros quadrantes do sistema jurídico, ou até de caráter prático.
As referidas problemáticas são propiciadas, quer pela origem, no Direito da União Europeia, do tecido normativo em questão – Diretiva (UE) 2016/97, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de janeiro de 2016 –, nem sempre plenamente harmonizável com a fisionomia dos institutos pátrios de Direito privado, quer pela circunstância de a relação de mediação de seguros assumir uma configuração tripartida (tomador do seguro – mediador – segurador), de caráter complexo, e implicar uma articulação prática com o contrato objeto da distribuição: o seguro. É neste último plano que se equaciona o problema objeto deste texto.
2 – O problema
Um dos princípios que verte da LDS, como sucedia já com o regime anterior[1], é o da liberdade de escolha, pelo tomador do seguro, do mediador do contrato (n.º 1 do artigo 48.º da LDS)[2]. Neste contexto, pode o tomador do seguro nomear, para cada contrato de seguro de que seja titular, um mediador (agente de seguros ou corretor de seguros). Poderá fazê-lo, quer aquando da subscrição do seguro, quer em momento posterior, podendo ainda dispensar o mediador anteriormente nomeado ou substituí-lo por outro (n.ºs 3 e 4 do mesmo artigo).
Focando-nos no caso de substituição de mediador, o n.º 4 do artigo em análise sugere que a mesma produz efeitos na data aniversária (ou de renovação) do contrato de seguro. Porém, nos casos em que um tomador de seguros (sobretudo quando se trate de uma pessoa coletiva, titular de um leque amplo de contratos de seguro) tenha contratualizado com um corretor de seguros a intermediação de todos os referidos contratos, e em que os mesmos tenham datas aniversárias (ou de renovação) distintas, gera-se uma dificuldade prática evidente quando o tomador do seguro faça cessar a relação contratual com um corretor e estabeleça nova relação com outro.
Ora, se a substituição do mediador só produzir efeito, perante o segurador, na data aniversária (ou de renovação) de cada contrato de seguro, então, entre a data de cessação da relação de corretagem e a data de produção de efeito da substituição de corretor verificar-se-á um hiato em que os contratos de seguro ficarão privados de mediação efetiva: a mesma não será assegurada nem pelo corretor cessante (que não se sentirá já legitimado pelo tomador do seguro a exercê-la) nem pelo novo corretor (que não estará ainda legitimado perante o segurador a exercê-la)[3]. Faltará ao primeiro uma legitimidade substancial (que se terá extinguido com a relação de corretagem) e ao segundo uma legitimidade formal (decorrente do momento legalmente definido de produção de efeitos da substituição do corretor). Quid iuris?
3 – O contrato de corretagem e a substituição de corretor
I – Na origem do processo de substituição de mediador (no caso, de corretor) de seguros estará a insatisfação do tomador do seguro face aos serviços prestados por aquele, ou o aliciamento por parte de um novo corretor.
Como é sabido, o termo corretor de seguros designa a categoria de mediadores de seguros em que a pessoa exerce a atividade de distribuição de seguros de forma independente face às empresas de seguros (alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º da LDS). Em virtude dessa independência, não se verifica, diversamente das categorias de agente de seguros ou de mediador de seguros a título acessório (respetivamente, alínea a) do n.º 1 do artigo 16.º, e alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º, ambos da LDS), uma atuação do corretor por conta de um ou vários seguradores, nem a LDS requer a celebração de um contrato de mediação com cada segurador.
Assim, independentemente da qualificação a atribuir ao acordo de vontades onde se estabelece a remuneração do corretor junto de cada segurador – e da questão de saber se tal acordo não assume, afinal, a natureza de um contrato de mediação de seguros entre o corretor e o segurador (pressuposto em que, do nosso ponto de vista, assenta a generalidade de direitos e deveres entre ambos, estabelecidos nos artigos 23.º ss. da LDS[4]) –, a relação contratual privilegiada do corretor de seguros, em termos de formalização e estabilidade do vínculo, é firmada com o tomador de seguros[5].
Este contrato pode assumir conteúdo variável. Comporta, em regra, uma prestação de serviços de consultoria em matéria de seguros (domínio onde o corretor se obriga a apresentar ao seu cliente, potencial tomador de seguros, soluções diversificadas e adequadas às necessidades de segurança e mitigação de riscos deste), podendo, em situações-limite, abranger a elaboração de estudos de gestão de riscos, ou de caráter financeiro ou atuarial[6]. Em regra, e atenta a base de confiança em que assenta[7], a relação contratual é acompanhada da outorga ao corretor de poderes de representação do cliente (tomador de seguros) junto dos seguradores para todos os assuntos relacionados com a gestão dos contratos de seguro com estes celebrados ou a celebrar.
É a denúncia (ou resolução), pelo cliente do corretor, desta relação contratual tendencialmente estável e duradoura, e o concomitante estabelecimento de nova relação com outro corretor, que suscitam o problema acima equacionado: o da substituição de mediador.
II – Perante o segurador, e no âmbito dos contratos de seguro em que o cliente do corretor seja tomador, o processo de substituição de mediador é regulado nos n.ºs 4 e 5 do artigo 48.º da LDS. Para o efeito, o tomador deve informar o segurador com uma antecedência mínima de 60 dias relativamente à data aniversária do contrato (será o caso dos seguros de vida, celebrados por prazo certo, em regra superior a um ano) ou, no caso dos contratos renováveis, à data da sua renovação. Do n.º 4 do artigo 48.º resulta claro que é esta a data em que a substituição produz efeitos para cada contrato de seguro, cessando a mediação anterior e iniciando-se a do novo corretor nomeado.
Sendo, em tese, configurável a hipótese de o tomador do seguro informar o segurador da substituição, seguro a seguro, razões de ordem prática ditarão, porém, que o faça de uma única vez, quando denuncia (ou resolve) o contrato com o corretor que pretende substituir, visando, em definitivo, pôr termo à relação com ele mantida. Ora, como os efeitos da substituição se produzem separadamente para cada seguro, em função da respetiva data aniversária ou de renovação, o corretor substituído permanece o legítimo mediador do contrato, perante o segurador, até à data de efeito da substituição, mas não terá já legitimidade contratual, nem interesse em atuar (nem, decerto, manterá um contacto eficiente) com o tomador do seguro, seu ex-cliente. No rigor da literalidade do texto legal, portanto, todos os direitos e deveres do corretor, quer perante o segurador, quer perante o tomador do seguro, inerentes à qualidade de mediador do contrato de seguro que integra a sua carteira, se mantêm até que a substituição produza efeitos.
Já o novo corretor, estando investido da dita legitimidade contratual e mantendo uma relação próxima, recém-estabelecida, com o tomador do seguro, não verá a sua qualidade de mediador do contrato reconhecida pelo segurador até à data de efeito da substituição, não podendo invocar os direitos, nem estando submetido aos deveres, decorrentes dessa qualidade.
III – A razão de ser do regime legal, embora suscitando o paradoxo (ou, no mínimo, a incongruência) do problema equacionado, é também compreensível. Com efeito, a alternativa ao regime consagrado seria a do efeito simultâneo, para todos os contratos de seguro, da substituição do mediador (quer a mesma fosse imediata ou no termo de um prazo).
Ora, assumindo a remuneração do corretor, normalmente[8], a natureza de uma comissão (associada ao prémio do seguro), e sendo a regra a da anualidade do prémio, visou o regime legal prevenir as situações em que o corretor substituído tivesse já auferido a comissão respeitante a toda uma anuidade do seguro mas cessasse funções antes do termo da mesma, gerando-se um problema quanto à remuneração do novo corretor.
Assim, a alternativa ao regime estabelecido na LDS suscitaria dificuldades não menos relevantes do que as que este veio comportar. Como a LDS não admite que um contrato de seguro pertença simultaneamente à carteira de dois mediadores diferentes (n.º 5 do artigo 47.º), nem que gere diretamente remunerações na esfera de ambos, a solução quanto à data de produção de efeitos da substituição do mediador, com os problemas que comporta, constituiu uma saída pragmática sem melhores alternativas.
IV – Haverá margem interpretativa para se entender que a produção de efeitos, contrato a contrato, da substituição do mediador, se reporta apenas ao direito à remuneração do corretor cessante (mas não aos demais direitos e deveres que resultam da LDS)? Não o cremos.
Desde logo, porque a redação do n.º 3 do artigo 48.º é clara quanto ao momento da produção de efeitos da dispensa de mediador e da nomeação de novo mediador, efeitos que, no caso da substituição (n.º 4 do mesmo artigo), são simultâneos. Nem o n.º 3 nem o n.º 4 estabelecem qualquer ressalva ou restrição quanto ao âmbito dos direitos e deveres do mediador cessante ou do novo mediador que permita estribar a ideia de que a substituição pudesse ter eficácia faseada para cada contrato de seguro, começando, quanto a certos domínios da atividade de distribuição de seguros, a produzir efeitos antes da data aniversária (ou de renovação) de cada seguro. A necessidade de certeza e segurança jurídicas inviabiliza também qualquer entendimento ambíguo e desprovido de apoio na letra da lei.
4 – Perspetivas de solução
Como referimos, o contrato estabelecido entre o corretor e o seu cliente – com base no qual aquele assume a qualidade de mediador dos contratos de seguro em que este seja tomador – é, em regra, acompanhado da outorga de poderes de representação, de modo a tornar mais eficiente e operacional a atividade de distribuição de seguros. Nessa medida, fica o corretor com poderes para agir em nome e como representante do tomador do seguro, vinculando-o perante o segurador. Do nosso ponto de vista, é esta a chave para o problema equacionado.
Assim, cumpre dissociar duas vertentes. Numa (a da relação contratual de corretagem), o corretor fica legitimado a atuar como mediador dos contratos de seguro de que seja tomador o seu cliente. Na outra (assente numa procuração) o corretor fica legitimado a agir como representante do seu cliente, caso em que, no limite dos poderes outorgados, a sua atuação produz os mesmos efeitos que produziria a do próprio tomador.
Desta forma, ao fazer extinguir o contrato de corretagem – extinção que poderá ocorrer de imediato, no caso, por exemplo, de resolução com justa causa – o cliente do corretor revogará também a procuração que haja emitido a favor deste. Informado o segurador pelo tomador de seguros, o corretor cessante poderá (e deverá) continuar a atuar como distribuidor dos contratos de seguro até que os efeitos da substituição se produzam para cada um deles. Mas deverá de imediato deixar de atuar como representante do seu cliente.
Já o corretor nomeado em substituição só poderá começar a atuar como ditribuidor de cada contrato quando se produzirem os efeitos da substituição. Mas, investido de uma procuração, poderá começar de imediato a agir como representante do tomador do seguro. Na medida em que os poderes outorgados o permitam, poderá, desde logo, em representação do tomador, atuar junto do segurador e do próprio corretor cessante no sentido de orientar a gestão dos contratos de seguro, nos termos em que o próprio tomador o pudesse fazer diretamente.
Em
termos práticos, portanto, a legitimidade resultante da procuração permite ao
novo corretor desempenhar, perante o segurador e no interesse do tomador, uma
parte substancial das tarefas e funções atinentes ao âmbito da distribuição de
seguros, previstas na alínea a) do artigo 4.º da LDS[9].
Em
conclusão, perante uma incongruência normativa e um problema prático –
resultantes da complexidade da relação de mediação e do seu caráter tripartido –,
a solução proposta decorre de uma abordagem pragmática, no quadro das
potencialidades proporcionadas pela experiência corrente da relação de
corretagem.
[1] Luís Poças, “Aspetos da mediação de seguros”, in Luís Poças, Estudos de Direitos dos Seguros, Porto, Almeida e Leitão, 2008, p. 154.
[2] Este princípio tem por limite a situação em que o mediador escolhido não esteja autorizado pelo segurador, caso em que este pode recusar a escolha, nos termos das disposições conjugadas dos n.ºs 2 e 7 do artigo 48.º da LDS. Do nosso ponto de vista, a legitimidade da recusa apenas pode assentar no referido fundamento, quer se trate de uma substituição de mediador (como literalmente resulta do n.º 7 do citado artigo), quer, por analogia, de uma nomeação inicial ou superveniente – cfr. Luís Poças, “Artigo 48.º – Anotação”, in Pedro Romano Martinez e Filipe Albuquerque Matos (Orgs.), Lei da Distribuição de Seguros Anotada, Coimbra, Almedina, 2019, pp. 403-404.
[3] O problema deste hiato verificar-se-á em todos os casos de substituição de mediador, mesmo quando esteja em causa apenas um contrato de seguro. Porém, tratando-se de uma carteira significativa de contratos, com datas aniversárias (ou de renovação) muito díspares, o problema agudiza-se, na medida em que tal hiato tenderá a ser especialmente prolongado quanto aos contratos cuja data aniversária (ou de renovação) seja mais distanciada.
[4] Luís Poças, “Aspetos da mediação de seguros”, cit., p. 193, n. 517.
[5] Luís Poças, “Aspetos da mediação de seguros”, cit., p. 146.
[6] Sobre o conteúdo do contrato, cfr. José Carlos Moitinho de Almeida, “O mediador na conclusão e execução do contrato de seguro”, in José Carlos Moitinho de Almeida, Contrato de Seguro – Estudos, Coimbra, Coimbra Ed., 2009, pp. 158 ss.
[7] Idem, pp. 159 e 160.
[8] Nos termos da alínea i) do artigo 4.º da LDS, a remuneração do mediador corresponde a uma comissão, honorários, encargos ou outro pagamento, incluindo um benefício económico de qualquer espécie, ou qualquer outra vantagem ou incentivo financeiros ou não financeiros, oferecidos ou concedidos em contrapartida de atividades de distribuição de seguros ou de resseguros.
[9] Nos termos desta disposição, constitui distribuição de seguros qualquer atividade que consista em prestar aconselhamento, propor ou praticar outros atos preparatórios da celebração de contratos de seguro, em celebrar esses contratos ou em apoiar a gestão e a execução desses contratos, em especial em caso de sinistro, incluindo a prestação de informações sobre um ou mais contratos de seguro, de acordo com os critérios selecionados pelos clientes através de qualquer meio, nomeadamente através de um sítio na Internet, e a compilação de uma lista de classificação de produtos de seguros, incluindo a comparação de preços e de produtos ou um desconto sobre o preço de um contrato de seguro, quando o cliente puder celebrar direta ou indiretamente um contrato de seguro, nomeadamente recorrendo a um sítio na Internet ou a outros meios.