Gustavo Brandão do Nascimento
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Advogado, formador e relator-adjunto do Conselho Superior da Ordem dos Advogados nos processos de laudo de honorários.
A Dicotomia Valor/Hora no Trabalho Intelectual Complexo e o Trabalho Burocrático e o Critério do Interesse Jurídico Mediato e Imediato na Determinação e Valorização dos Honorários do Advogado*
A mais recente jurisprudência do Conselho Superior da Ordem dos Advogados (CSOA) tem vindo a acolher, em alguns dos seus acórdãos, a distinção entre o trabalho ou serviço intelectual complexo por confronto com o trabalho meramente burocrático ou de expediente[1].
Com efeito, tais decisões assentam na premissa que nem todo o serviço prestado pelo advogado ao seu constituinte consubstancia a prestação de um serviço que requeira as qualidades intelectuais, especiais e complexas daquele. A distinção parte, então, do pressuposto que o valor/hora fixado será necessariamente diferente consoante se esteja perante trabalho que geralmente caracteriza a normal prestação do advogado e perante trabalho de natureza eminentemente burocrática.
Vemos como comum, nas contas de honorários e despesas que o advogado apresenta ao seu cliente, a inscrição, naquelas, de serviços como elaboração de comunicações, designadamente, de correio eletrónico, comunicações telefónicas com o cliente, colegas, agentes de execução, deslocações a conservatórias, notários, repartições de finanças, de e para o tribunal, etc.
Ora, não se duvida que é a este tipo de serviço a que se refere a recente jurisprudência do (CSOA), e, bem assim, alguma jurisprudência das Relações. Todavia, a distinção pode parecer mais fácil à primeira vista do que realmente é.
Relativamente ao tempo que o advogado passa na deslocação de e para o tribunal, por exemplo, não restam grandes dúvidas que o mesmo terá necessariamente de ser cobrado a um valor/hora diferente do que aquele que vai despender na inquirição de uma testemunha, em alegações ou na redação de uma petição inicial. Mas, como qualificar o trabalho que é despendido, por exemplo, num email dirigido ao cliente versando o mesmo sobre o assunto jurídico em mãos, ou o tempo que é gasto pelo advogado nas conversações telefónicas com o cliente ou terceiros sobre o mesmo assunto, ainda que o tempo despendido naqueles seja sensivelmente reduzido, ou, ainda, o tempo gasto no preenchimento do formulário eletrónico da plataforma CITIUS? Como se distingue trabalho intelectualmente complexo de meramente burocrático?
Em qualquer dos casos, a qualificação afigura-se de difícil concretização sem o auxílio de um critério operativo.
Cremos que o critério distintivo terá de ser encontrado no interesse jurídico imediato ou mediato que da concreta prestação do serviço do advogado releve para o objeto do mandato. Assim, se o advogado despende uma hora de serviço, v. g., na elaboração de um email, através do qual responde a uma solicitação do cliente concernente ao assunto jurídico que lhe foi confiado por este, e, se no âmbito do mesmo, o advogado praticou atos materialmente próprios da profissão, então, tal será configurado como trabalho intelectualmente complexo, porque praticado na circunscrição material íntima da atividade do advogado e no interesse jurídico imediato relevante para o objeto do mandato.
Destarte, e sem dificuldades, se qualificará a redação de uma petição inicial, contestação, minuta de contrato ou carta de interpelação como sendo do interesse jurídico imediato para o objeto do mandato e, portanto, serviço intelectual complexo.
Por outro lado, o tempo despendido pelo advogado, por exemplo, na deslocação para o tribunal onde decorrerá audiência de julgamento, por importante que seja, naturalmente, para o cliente, sempre representará, para este, um interesse jurídico mediato a ser inferiormente graduado para efeitos de arbitramento do valor/hora de honorários.
De igual modo, aplicando o citado critério, será trabalho meramente burocrático, e, portanto, de interesse juridicamente mediato para o objeto do mandato, o tempo que o advogado despende com a digitalização de documentos necessários à instrução de uma petição inicial e, bem assim, o tempo que o mesmo despende com a submissão eletrónica da peça processual e documentos.
Em síntese, a qualificação entre trabalho intelectual complexo e trabalho (meramente) burocrático assentará na distinção de um interesse imediato ou mediato juridicamente relevante, o qual será sempre determinado pelo objeto do concreto mandato conferido e desde que contido na circunscrição da atividade profissional do advogado.
De outra banda, poder-se-á contrapor criticamente que, não obstante o advogado estar vinculado às normas do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), e, portanto, obrigado a adequar os honorários aos serviços efetivamente prestados, a verdade é que, quando há uma fixação prévia de honorários determinados por hora de prestação de serviço sem qualquer distinção ou referência àquela dicotomia – fixação aliás com a qual o cliente, no âmbito dos princípios da autonomia privada e no pleno exercício da sua liberdade contratual[2], concordou –, a submissão dos honorários (rectius, da convenção) a uma sindicância à luz do princípio geral de adequação parece fragilizar a própria ratio da convenção prévia, inutilizando-a. É que uma eventual majoração do valor/hora no caso deste ajuste prévio permitirá colmatar o tempo que o advogado dedica ao trabalho burocrático, ou seja, tempo que não despenderá na prestação do trabalho intelectual complexo mais rentável, pois que, enquanto executa um não executa o outro. Dir-se-á, convocando-se a teoria económica, que tal situação configuraria, aqui, um custo de oportunidade, isto é, o custo de algo em termos de uma oportunidade renunciada.
Pergunta-se, pois, qual a vantagem da existência de uma convenção prévia quando, perante litígio relacionado com honorários, estes tiverem que ser forçosamente sindicados[3] pelo tribunal no sentido de determinar da sua adequação ou desadequação, independentemente da existência de um acordo prévio com o cliente acerca do seu modo de fixação?
Concordamos com SILVESTRE TANDEAU DE MARSAC, a propósito da discussão desta convenção na deontologia da Ordem dos Advogados de Paris, quando afirma que, mau grado a convenção prévia não ser obrigatória, a mesma poderá ser uma necessidade e constituir um importante instrumento de medida em caso de conflito, porquanto, por um lado, estabelece uma necessária transparência entre o advogado e o seu cliente sobre os elementos da remuneração do advogado, e, por outro, facilita a prova a respeito da obrigação que impende sobre o cliente[4].
Cremos, apesar de tudo, que a existência de uma convenção prévia não permite afastar ab limine a sindicabilidade da convenção, designadamente, da sua validade e admissibilidade à luz dos critérios do Estatuto. Independentemente da ocorrência de uma convenção prévia entre advogado e cliente relativamente aos honorários e sua fixação, tal circunstância não consubstancia uma carta-branca outorgada ao advogado, nem o exime, por exemplo, de ver essa convenção ser submetida a laudo sobre honorários.
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Texto
com alterações retirado da obra do autor: Dos
Honorários de Advogado – Em Especial o Laudo Sobre Honorários, Almedina, 2020.
[1] De igual modo, a jurisprudência dos tribunais superiores tem vindo a fazer semelhante distinção. Vide a este propósito o Ac. do TRE de 09-11-2017, processo n.º 3098/15.3T8FAR.E1, e o Ac. do TRL de 18-11-2014, processo n.º 33.040/12.7YIPRT.L1, disponíveis em www.dgsi.pt.
[2] Artigo 405.º do CC.
[3] No sentido de que a convenção prévia se refere ao trabalho intelectualmente complexo, cfr. Ac. do TRE de 11-09-2017, proferido no processo n.º 3098/15.3T8FAR.E1, Rel. Mário Coelho, disponível em www.dgsi.pt.
[4] SILVESTRE TANDEAU DE MARSAC, La Convention D’honoraires, in: Les Dossiers du Barreau de Paris n.º 4, novembro de 2007, Ordem dos Advogados de Paris, p. 8.