Nazaré da Costa Cabral

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Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Regente. Vice-Directora da Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal. Presidente do Conselho Superior do Conselho das Finanças Públicas – CFP (As opiniões expressas são opiniões pessoais da autora e não vinculam o CFP)


A Quarta Revolução Industrial (RI) iniciada na transição do milénio e agora em curso é a revolução da inteligência artificial (IA) e da robotização (duas coisas diferentes, mas que podem vir a ser associadas e sê-lo-ão certamente com o desenvolvimento dos chamados robots inteligentes e superinteligentes). Esta RI segue-se a e aproveita as potencialidades abertas pela revolução imediatamente anterior, a revolução digital, e de entre essas potencialidades, destaca-se o desenvolvimento da chamada ‘internet das coisas’ e dos ‘big data’. De certa forma, a IA é construída e alimentada a partir da coleção e tratamento de grandes dados que depois são replicados, num processo de constante aprendizagem, permitindo (re)construir comportamentos e (re)solver problemas mais ou menos complexos.[1]

Como tem sido sobejamente assinalado em estudos académicos e/ou realizados no seio de organizações internacionais relevantes (Organização Internacional do Trabalho, Fórum Económico Mundial, Fundo Monetário Internacional e a própria Comissão Europeia), esta revolução industrial acarretará (e já está a acarretar) importantes consequências sobre o emprego e nos mercados de trabalho.[2] De resto, a crise pandémica que estamos a viver terá apressado alguns dos impactos desta revolução: desde logo, a generalização do teletrabalho.

São assim seis os efeitos desta Revolução Industrial que aqui destacaria.

Em primeiro lugar, a destruição de empregos, ainda que numa parte compensada pela criação de novos. Haverá certamente novas atividades e profissões que surgirão, algumas muito qualificadas e ligadas desde logo ao desenvolvimento destas novas tecnologias (em especial no caso das engenharias de informática e afins). Nos últimos anos, têm surgido novas profissões nestas áreas e outras tantas se seguirão no futuro breve, a exigir novas qualificações – será ao que tudo indica um trabalho cada vez mais intelectual e menos manual.

Mas não tenhamos dúvidas de que outras tantas atividades e profissões serão sacrificadas. Desde logo, diversas das menos qualificadas e rotineiras. O caso de certas atividades e tarefas não apenas nas indústrias (hoje cada vez mais robotizadas), mas também no comércio (especialmente, no retalho, em grandes cadeias de supermercados e outras lojas comerciais). Mas também, por exemplo, no setor da restauração (desde logo, nas grandes cadeias de ‘fast food’ e não só), vemos já hoje exemplos, sobretudo em alguns países asiáticos (Japão e Coreia do Sul) de confeção das refeições e de serviço de atendimento aos clientes em restaurantes feito inteiramente por robots. O setor do transporte (de passageiros e mercadorias) é outro onde o trabalho humano está já fortemente ameaçado, e só não está mais e mais rapidamente por causa do delicado enquadramento jurídico dos problemas de responsabilidade civil que o transporte ‘sem condutor’ envolve.

Não é de excluir, por outro lado, que mesmo atividades muito qualificadas possam vir a sofrer o impacto dessa concorrência tecnológica: por exemplo, no caso da medicina e no caso do direito. No primeiro caso, não se trata apenas do desenvolvimento da telemedicina que, apesar de tudo, implica, ainda que à distância, a presença do fator humano. Estou a pensar também na possibilidade – usando computadores (super)inteligentes e através do desenvolvimento de algoritmos sofisticados – da realização do diagnóstico de doenças (com a minimização de erros de diagnóstico) e a prescrição das respetivas terapias. No segundo caso, o do direito, não apenas a possibilidade – já hoje em curso – de preparar e apresentar peças processuais digitais com argumentos jurídicos pré-formatados, mas também o desenvolvimento, usando de novo algoritmos adequados, de ferramentas computorizadas para dirimir conflitos ou resolver litígios, de capacidades de solução arbitral pela via tecnológica que prescindam, em última análise, da existência de um juiz.   

Em segundo lugar, assistir-se-á (creio que já estamos a assistir) a uma pressão para uma baixa de salários, ditada pela própria concorrência, ou o risco da sua existência, que as máquinas podem provocar sobre a procura do trabalho humano. Isto mesmo é visível em certas áreas, como a restauração. É uma área onde não é expectável termos grandes hipóteses de valorização salarial, em grande parte por causa do simples risco da existência dessa concorrência. 

Em terceiro lugar, verificamos que o trabalho será marcado por uma dose acrescida de instabilidade. O trabalho tornar-se-á menos duradouro (a ideia de empregos para a vida toda está cada vez mais afastada do nosso ‘imaginário coletivo’). Teremos, ao invés, cada vez mais, trabalhos intermitentes. Essa intermitência ocorrerá, por sua vez, em três níveis diferentes: (i) intermitência entre trabalhos diferentes; (ii) intermitência entre trabalho e educação ou formação ou formas não remunerados de atividade (por exemplo, o voluntariado); (iii) finalmente, tão-só intermitência entre trabalho e inatividade (isto é, ausência de qualquer tipo de atividade).

Em quarto lugar, podemos arriscar dizer que este poderá ser também um trabalho menos sobrecarregado: desde logo, pela maior prevalência do teletrabalho, que pressupõe um menor nível de esforço e de desgaste (desde logo, nas deslocações casa-trabalho, na maior difícil compatibilização entre vida pessoal ou familiar e vida profissional); depois, podemos vir a  assistir ao reforço do trabalho a tempo parcial ou de natureza afim (também com maior espaço para a conciliação entre a vida profissional e pessoal e com maior conciliação entre trabalho e lazer – as atividades de lazer e de cultura tenderão a crescer, pois haverá maior procura; aqui sim, o trabalho humano será mais dificilmente substituível, pois está sempre dependente do campo da emoção e da criatividade).

Em quinto lugar, a nova revolução industrial afetará também os movimentos migratórios, criando as chamadas formas de emigração/imigração virtual. Isto mesmo, além de facilitar processos de dumping social, torna difícil a identificação do local de trabalho ao qual o trabalhador está ligado, e assim a identificação ao espaço jurídico de onde resultam as suas obrigações e os seus direitos no plano laboral. No limite, podemos situações de vazio jurídico-laboral, a ausência tão-só de qualquer proteção, de qualquer regulação.

Por fim, em grande medida como consequência das situações anteriores, verificamos o aumento das situações de precariedade e a erosão da própria noção de trabalho. Já hoje assistimos a uma tendência que pode sair reforçada com esta crescente robotização e digitalização da atividade económica, e que é o surgimento das chamadas ‘zonas cinzentas’ de prestação de trabalho, isto é, situações que estão a meio caminho entre o trabalho e a prestação de serviços, desde logo pela diluição dos chamados critérios de jus-laboralidade (e ainda que a subordinação económica se mantenha),  tais como, por exemplo, a existência de um local e/ou horário de trabalho, a subordinação a ordens por parte de empregador, a regularidade na atribuição de uma dada remuneração.  Provavelmente, o trabalho tenderá a ser substituído por uma noção abrangente de ‘atividade profissional’, visando cobrir todas essas situações indefinidas ou de fronteira, que serão porventura crescentes.

No limite, este processo, a que alguns chamam de ‘uberização’ do trabalho, pode levar a considerar o trabalhador já nem sequer como um prestador de serviços, mas como um microempresário, em que o seu instrumento de trabalho – seja o veículo automóvel, seja a banca no cabeleireiro onde arranja as unhas, etc. – é arrendado de forma partilhada com outros iguais, também tratados como microempresários. Aqui, já não é o empregador que lucra e, por isso, também não é este que paga o salário. Quem ‘lucra’ é o próprio trabalhador, agora transformado em microempresário, e o até aí empregador torna-se tão-só locador do estabelecimento ou do veículo, com direito a uma renda fixa ou recebida em função dos proventos do primeiro.

De resto, afigura-se que o direito do trabalho, tal como o conhecemos, estará condenado a desaparecer nas próximas décadas ou pelo menos a sofrer uma forte erosão.

O direito do trabalho, como o conhecemos e estudámos, é uma disciplina jurídica que surge no século XIX no contexto da revolução industrial de então, muito diferente da atual, uma revolução que passou pelo aparecimento da chamada mão-de-obra operária. Este trabalho operário, apesar ter já uma componente mecanizada, era essencialmente um trabalho braçal, um trabalho muito penoso do ponto de vista das condições físicas exigidas aos trabalhadores. Havia assim que regular essas condições de trabalho, para minimizar tal penosidade, instituindo horários de trabalho e tempos máximos semanais de trabalho, o direito ao descanso e claro está o direito à remuneração. De resto, o surgimento dos primeiros seguros sociais – um embrião da segurança social moderna – tem lugar também nesta altura, pela mão do Chanceler Bismarck e foi também justificado pela necessidade de dar proteção aos trabalhadores nos riscos sociais que mais diretamente estavam ligados a essa especial penosidade do trabalho que era desenvolvido nas fábricas. Não é admirar, portanto, que o primeiro seguro social, instituído em 1883, tenha sido justamente o seguro nos acidentes de trabalho.

É natural assim que esta erosão do direito do trabalho ocorra, neste novo contexto marcadamente tecnológico, e é natural que a ele se venham a suceder novas formas de regulação jurídica da atividade económica desta relação nova entre o homem e as máquinas. O foco poderá estar, sobretudo, na forma de regular juridicamente, em condições de equilíbrio, as relações entre os proprietários das máquinas e todos os restantes, a forma de aceder às máquinas, ou seja, a forma de fixar a propriedade das mesmas, e depois ainda, a forma como os ganhos de produtividade e a riqueza retirados dessas máquinas serão aproveitados e partilhados por toda a sociedade.

Como última nota, importa assinalar a forma como a crise pandémica (COVID 19) que estamos a viver terá apressado ou amplificado alguns dos impactos desta revolução: desde logo, a generalização do teletrabalho. Para além disto e com características mais desafiantes – e também mais preocupantes – verifica-se que a crise está a ter impacto negativo em sectores particularmente expostos à automação (por exemplo, em certas indústrias e também no sector da restauração)[3] onde por isso mesmo poderá dar-se o caso de, no pós-crise, esses postos de trabalho ficarem irremediavelmente perdidos, acelerando-se aí a transição para o trabalho automatizado ou robotizado. Por ora, os dados são insuficientes e haverá que, a breve trecho, demonstrar esta possível implicação. 

Todas estas mudanças no emprego e nos mercados de trabalho, agora eventualmente aceleradas pela pandemia, terão consequentemente também impactos sérios nos sistemas de proteção social, especialmente no âmbito dos regimes contributivos de segurança social, obrigando a repensar a forma como esses regimes devem ser estruturados, a sua abrangência, e respetivas formas de financiamento. A opção entre soluções de natureza contributiva (isto é, por contribuições pagas por trabalhadores e empregadores) e soluções de  natureza fiscal (diferentes tipos de impostos) num quadro de progressiva intermitência laboral será um dos desafios a encarar na futura estruturação e financiamento desses regimes.


[1] Veja-se, a este respeito, Oliveira, A. (2019). A Inteligência artificial, Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa.

[2] Por todos, leia-se World Economic Forum (2016).  The Future of Jobs Employment, Skills and Workforce Strategy for the Fourth Industrial Revolution. Available at: http://www3.weforum.org/docs/WEF_Future_of_Jobs.pdf.

[3] Veja-se, a este respeito, a recente divulgação da Organização Internacional do Trabalho sobre o impacto da crise pandémica no mundo do trabalho, e em particular nos vários sectores de atividade. Informação disponível aqui: https://www.ilo.org/global/topics/coronavirus/lang–en/index.htm