Raquel Brízida Castro

Consulte a sua obra em www.almedina.net


Raquel Brízida Castro é Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Professora da mesma Faculdade e Advogada. É Constitucionalista, Especialista em Direito Público e em Direito das Novas Tecnologias. Para além do Direito Constitucional, Justiça Constitucional e Direito da Regulação, como Investigadora Principal do Centro de Investigação de Direito Público da FDUL, tem dedicado igualmente a sua investigação ao Direito Constitucional do Ciberespaço e ao Direito Constitucional dos Media. Foi vogal do Conselho Regulador da ERC – Entidade Reguladora da Comunicação Social, no mandato 2011-2016, e foi jornalista durante 25 anos, 19 dos quais na SIC, onde também foi Editora de Política da SIC e SIC Notícias. Raquel Brízida Castro dedica-se exclusivamente ao Direito desde 2011.


No próximo fim de semana, perante um cenário dramático gerado pela pandemia, o país vai escolher o seu Presidente da República, em pleno estado de exceção, decretado nos termos constitucionais.

Mas pode/deve haver eleições em estado de exceção?

A Constituição apenas proíbe, direta e expressamente, a revisão constitucional e a dissolução do Parlamento, em estado de exceção, declarado nos termos constitucionais.

Porquê?

No caso da revisão constitucional, para garantir que num momento em que o debate público é necessariamente perturbado pela situação de necessidade, a vontade do legislador de revisão se mantenha intacta, livre  e esclarecida.

No caso da dissolução parlamentar, entre outras razões, precisamente porque esta conduz automaticamente à convocação e realização de eleições legislativas.

Ora, a suspensão – ainda que parcial – dos direitos, liberdades e garantias, afeta, naturalmente, o debate e a propaganda eleitoral, a competitividade das eleições e a própria mobilidade dos cidadãos.

Daí a proibição. Da dissolução. Porque tal levaria a… eleições.

No caso das eleições presidenciais de 2021, muitos eleitores não poderão ou não quererão votar: porque estão infetados ou em isolamento; porque temem quebrar o confinamento; porque perante o crescimento aterrador do número de infeções e de mortes, o medo conforma-lhes a liberdade.

Por isso, salvo melhor opinião, parece-me que estes argumentos não podem deixar de ser relevantes para qualquer ato eleitoral. Por maioria de razão, para as eleições presidenciais marcadas para 24 de Janeiro de 2021.

Nos termos constitucionais, é possível o adiamento das eleições presidenciais por causa da pandemia?

Uma questão é a da conveniência e/ou oportunidade do adiamento das eleições. Outra é a da sua alegada impossibilidade jurídico-constitucional. Apenas me pronunciarei sobre a segunda questão.

A resposta perturba pela simplicidade hermenêutica e não convoca sequer outros critérios de  interpretação constitucional mais controvertidos, que impliquem ponderações.

Não existe nenhuma norma constitucional que imponha que o novo Presidente da República tenha de ser eleito e tome posse antes do seu antecessor completar cinco anos de mandato.

A Constituição é, quanto à data das eleições presidenciais, neutra e surpreendentemente evasiva e circular.

Primeiro, exige que o Presidente da República seja eleito nos sessenta dias anteriores ao termo do mandato do seu antecessor. Mas quando é a Constituição diz que termina o mandato anterior? Limita-se a dizer que o mandato do Presidente da República tem a duração de cinco anos e termina com a posse do novo Presidente eleito, a qual, nos termos constitucionais, deverá ocorrer no último dia do mandato do antecessor.

Ou seja, embora o mandato tenha a duração de cinco anos, ele só termina com a posse do novo Presidente, que terá de ser eleito nos 60 dias anteriores.

O mandato do atual Presidente Iniciou-se em 9 de Março de 2016, mas só terminará, nos termos constitucionais, quando o seu sucessor tomar posse.

Ora, por um lado, a Constituição prevê expressamente duas situações em que o sucessor não toma posse antes de o mandato do antecessor cumprir 5 anos: i) No caso de não haver uma separação de 90 dias das eleições legislativas; ii) perante a necessidade de reabertura do processo eleitoral por morte ou incapacitação de um candidato.

Por outro lado, a doutrina sempre admitiu que, em casos excecionais, o mandato do Presidente cessante possa exceder os 5 anos, sendo automaticamente prorrogado até à posse do seu sucessor perante a Assembleia da República, o que deverá ocorrer no 8.º dia a seguir à publicação dos resultados eleitorais.

Imprescindível, numa perspetiva exclusivamente jurídico-constitucional, é que as eleições presidenciais:

a) Tenham lugar nos sessenta dias anteriores ao termo do mandato do antecessor, o que pode variar nos termos constitucionais;

b) Sejam marcadas com a antecedência mínima de 60 dias, nos termos da Lei Eleitoral para o Presidente da República.

Entre a Política e a Constituição jurídica

Obviamente, que é sempre legítimo contrapor o argumento de que, em última instância, estamos perante decisões políticas. E, nesse campo, entre o confinamento total e a liberdade, as opções são infindáveis. Fechar aqui, abrir o postigo ali, desconfinar acolá, nem que seja por um dia ou apenas ao amanhecer. E não me refiro apenas às eleições.

A atividade política stricto sensu, é, incontestavelmente, a atividade mais livre das funções do Estado. Embora tenha como parâmetro direto a Constituição, no nosso ordenamento jurídico-constitucional não está sujeita ao controlo de constitucionalidade.

A responsabilidade pelas decisões de natureza estritamente política é, exclusivamente, política.

Sem prescindir, a partir do momento em que as normas constituem o instrumento por excelência da política, os limites funcionais do controlo jurídico de constitucionalidade são preteridos quando existem várias opções igualmente conformes à Constituição. O limite da política é a Constituição, na sua expressão jurídica. Por sua vez, o limite da justiça constitucional é a política.

Ora, perante o estado de exceção decretado nos termos constitucionais, até pode haver medidas extremas que, em si, sejam idóneas e adequadas aos fins que as justificam.

Contudo, essas mesmas medidas, avaliadas perante outras que lhes são contemporâneas, podem roçar a inconstitucionalidade, caso se revelem um encargo excessivo, desproporcional e atentatório do princípio da igualdade, na repartição do sacrifício.

Desde logo, se essas outras medidas subverterem os fins prosseguidos pelas restrições.

Enfim, como justificar ter uma porta fechada a cadeado, para evitar a entrada do frio, se é permitido que a mesma sala tenha todas as janelas abertas? (Este artigo foi elaborado a partir dos posts que a Autora publicou no Facebook e LinkedIn nos dias 7, 10 e 17 de Janeiro de 2021: “Reflexões constitucionais sobre o estado de exceção e o pós e/ou pré estado de exceção pandémico – posts XVI, XVII e XVIII”)