Pascal Picq é paleoantropólogo. Depois de uma tese na Universidade de Paris VI e de  estudos pós-doutorais na Universidade de Duke (Estados Unidos), foi responsável pela introdução da etologia no campo da antropologia evolucionista. É autor de inúmeros livros, entre os quaisse destacam Le monde a-t-il été crée en sept jours? e Premiers hommes. É atualmente professor no Collège de France.

O autor apresenta-nos aqui o prefácio do seu mais recente livro Sapiens face a Sapiens: A Trágica e Esplêndida História da Humanidade, já em pré-venda. Consulte AQUI.


Prefácio

Num ensaio anterior, Premiers hommes, adotei uma perspetiva muito diferente das mais habitualmente assumidas para explicar a história natural da linhagem humana. Mais do que começar pelo fim — a nossa espécie atual, o Homo sapiens — e do que percorrer às arrecuas o caminho da nossa evolução, o discurso partia das origens dos primeiros homens, a viverem no coração das florestas da era terciária e na idade dourada dos nossos antepassados, grandes primatas ou hominídeos, grupo a que continuamos a pertencer, juntamente com os chimpanzés, os gorilas e os orangotangos atuais. Por outras palavras, partia do mundo das árvores e da nossa árvore genealógica para chegar aos primeiros homens.

De imediato, o plural poderia surpreender, e por dois motivos. O primeiro é cultural, ligado ao dogma do Homem à imagem do seu criador e do par original. O outro decorre da nossa situação atual. Como hoje em dia existe apenas uma espécie humana na Terra, é-nos sempre difícil imaginar que tenha havido várias espécies contemporâneas no passado e, ainda mais, depois do surgimento do género Homo em África, há 3 a 2 milhões de anos. Mas a Humanidade foi diversidade logo desde a origem, tendo, como fundo, esta questão fundamental: Quem são os primeiros homens? Porque, se isso era evidente na natureza presente (quando comparada com a dos nossos primos mais próximos, que são os grandes primatas), era-o muito menos no passado, principalmente à luz dos conhecimentos sobre as características durante muito tempo consideradas como exclusivamente humanas e que foram postas em evidência nos grandes primatas de hoje e nos Australopitecos do passado — como utensílios, comportamentos sociais ou ainda capacidades cognitivas.

A nossa descendência torna-se «humana» ao inventar a coevolução entre a biologia e os meios técnico-culturais, aquilo a que chamo a segunda coevolução. A primeira descreve o modo como coevoluímos com os outros organismos vivos e com o género Homo, ambos a interferirem e a moldarem uma evolução completamente diferente. A partir daqui, as espécies humanas aumentam a sua «capacidade ecológica», diversificam-se e instalam-se em todos os ecossistemas do Velho Mundo (África, Ásia e Europa).

Assim, ainda há apenas 40 mil anos, havia várias espécies humanas em coabitação: os Sapiens (Homo sapiens), os Neandertais (Homo neanderthalensis), os Denisovanos, os homens da ilha de Flores e, descobertos mais recentemente, os de Luzon (ou Luçon). Então por que motivo só conhecemos uma espécie atualmente? Trata-se de uma situação inédita. Na realidade, o único problema que as outras espécies tiveram está ligado à expansão dos Sapiens. Como? É difícil invocar um único fator, seja biológico ou cultural. Mas é inegável que os homens modernos, a nossa espécie, inventaram novas técnicas, novas organizações sociais e novas representações do mundo — que a explosão das expressões simbólicas, tal como a arte, testemunha —, o que, ao longo dos milénios, lhes permitiu implantarem-se por toda a parte, no Velho Mundo e nos Novos Mundos, até onde nenhuma espécie alguma vez fora. Há 30 mil anos, a Terra é exclusivamente sapiens.

Estamos agora a descobrir que os fatores da evolução continuam a moldar a nossa espécie. Melhor seria usar a palavra «redescobrir». Com efeito, desde o Renascimento, o grande propósito do humanismo era melhorar a condição do homem, ideia reforçada pelo movimento das Luzes e depois pela ideologia do progresso. Pensou-se alcançar este projeto na segunda metade do século xx, graças a avanços que a Humanidade até então nunca conhecera: esperança de vida, saúde, educação, cultura, conforto, urbanismo… todos eles fatores positivos que alimentaram a ilusão de que, graças à cultura, à ciência e à técnica, a Humanidade se libertara de todos os constrangimentos da evolução.

De acordo com a ideia de Julian Huxley (1887–1975), grande biólogo e primeiro secretário-geral da UNESCO, e em consonância com o programa desta entidade, graças às ciências, à cultura e à educação, as sociedades humanas mais desenvolvidas expressaram o potencial legado pela nossa evolução, nunca até então alcançado: falamos de trans-humanismo inicial. Contudo, a partir de agora, um novo trans-humanismo postula que, se a Humanidade chegou ao seu ponto mais alto, será então preciso recorrer ao «solucionismo» tecnológico para ultrapassar esta condição de natureza, por outras palavras, desligar-se da evolução.

Ora, não é o caso. Damo-nos conta de que aquilo que somos depende precisamente das escolhas culturais e técnicas dos nossos antepassados — bem como da alimentação — e dos estilos de vida contemporâneos. Aquilo a que se chama microbiota — a multidão de microrganismos que existe no nosso corpo e sob a nossa pele — interfere com a fisiologia e com as capacidades cognitivas. Assim, a biologia evolucionista está sempre em ação. A este aspeto vêm juntar-se as alterações dos meios natural (biodiversidade), urbano e climático.

Hoje em dia, embora a espécie humana e sapiens não esteja em perigo, uma parte crescente das populações humanas está, porém, apenas a «sobreviver» um pouco por todo o mundo: isto traduz-se em termos de saúde, de esperança de vida, de libido, de capacidades cognitivas e de fertilidade, entre outros aspetos. Trata-se de uma evolução negativa, cada vez mais dramática.

Embora a medicina associada à biologia evolucionista tenha permitido progressos inéditos desde a Segunda Guerra Mundial, arriscamo-nos a perder a guerra contra as bactérias. As utilizações indevidas dos antibióticos fornecidos por vários circuitos a nível mundial favorecem, através de seleção, o aparecimento de superbactérias contra as quais não dispomos de resposta (à semelhança das doenças nosocomiais).

Veja-se a forma como os mecanismos da evolução atuam, e devido aos nossos erros. Os nossos pequenos achaques quotidianos, tão banais passado meio século, arriscam tornar-se de novo mortais. Qualquer evolução é um compromisso, e, quanto mais uma espécie conhece um forte crescimento demográfico, mais modifica o meio que a rodeia; tem então de se adaptar às consequências. Desde que nasci, a população humana triplicou e envelheceu. As consequências são a destruição dos ecossistemas, a mudança climática e a urbanização maciça. As consequências destas consequências ainda mal se fazem sentir, mas entrámos numa fase crítica da evolução humana que já se traduz em profundas transformações antropológicas.

Surge igualmente um novo problema a partir da relação que estabelecemos com as máquinas. A revolução digital e os aparelhos em conexão modificam profundamente todos os aspetos das nossas vidas. Somos ameaçados por aquilo a que se chama a «síndrome do planeta dos macacos». Além das ameaças atuais que estas novidades fazem pesar sobre as nossas liberdades individuais, é forte a tentação de resvalar para a facilidade e para o conforto, uma dependência voluntária e nefasta que destrói tudo o que a aventura da descendência humana realizou desde há 2 milhões de anos: relações sociais, culturas, atividade física e sexual, mobilidade…

No entanto, entre uma Humanidade escrava das tecnologias e uma Humanidade pós-humana remodelada pelas tecnologias, deve ser possível imaginar uma Humanidade aumentada, decorrente de uma nova coevolução entre os seres humanos, a natureza e as máquinas.

Poderá então o Sapiens desaparecer? Sem dúvida, como aconteceu com todas as outras espécies. A questão reside em saber quando e como. Do ponto de vista darwiniano, a nossa espécie encontra-se de boa saúde, nunca tendo sido tão numerosa e diversificada. É uma vantagem considerável. Seja qual for o alcance de uma crise de saúde ou ambiental, se tal acontecimento tiver de acontecer, haveria populações que sobreviveriam. Mesmo que fossem, por exemplo, de dimensões reduzidas, transformar-se-iam numa ou em várias novas espécies por desvio genético e consoante a natureza do seu isolamento geográfico, à semelhança das espécies das ilhas da Sonda recentemente descobertas, como os homens e as mulheres de Flores e de Luzon. Outro prazo raramente evocado: a previsão da diminuição demográfica depois do horizonte de 2050 e os 10 mil milhões de seres humanos estimados para essa data. Estaria então a Humanidade em condições de garantir a sua descendência?

A ambição deste ensaio consiste em definir quem será o último homem. Será possível imaginar o conjunto das gerações futuras reunidas num novo projeto humanista universal tal como foi vivido através do movimento das Luzes, continuando a nossa evolução pelos próximos milénios, ou veremos surgir uma Humanidade completamente diferente?