Paulo Faria
Nasceu em 1967, em Lisboa. Licenciou-se em Biologia por mero acidente. É, há longos anos, tradutor literário, tendo traduzido obras de autores como George Orwell, Jack Kerouac, James Joyce, Don DeLillo e Cormac McCarthy. Viajou em busca das nascentes de algumas das obras que traduziu, o que o levou ao Tennessee, ao Texas, ao Novo México. Venceu, em 2015, o Grande Prémio de Tradução APT/SPA, pela tradução de História em Duas Cidades, de Charles Dickens. Publicou Estranha Guerra de Uso Comum (romance, 2016) e crónicas nas páginas da revista Ler e do jornal Público.
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— Psicopatas! — gritou o homem, debruçado da varanda.
Sónia combinou encontrar-se no Parque Eduardo VII com uma amiga da faculdade, a Isabel, que ia passear a cadela. Isabel, bolseira de investigação, era a pessoa mais desbocada que Sónia conhecia. Uma vez, num jantar com gente importante do meio académico — professores universitários, malta graúda — em que Sónia estivera presente, Isabel, depois de todos contarem histórias selectas e piadas de salão, disse muito alto:
— O meu pai tinha uma tasca em Alfama e, à porta, havia um papagaio que ele trouxe do Ultramar. Cada vez que alguém saía da tasca, o papagaio berrava: «Ó cabrão, já pagaste a conta?»
No mesmo jantar, Sónia ouviu-a dizer, em voz de trovão, que as pessoas se dividem em duas categorias: as que já se puseram de joelhos na casa de banho, a esfregar o sarro da banheira, e as que têm quem lhes faça esse serviço. Sónia pensou: «Ainda há uma terceira categoria: os porcos que não têm quem lhes esfregue a banheira e que deixam o sarro acumular.»
A cadela de Isabel era um dogue-qualquer-coisa, um torpedo de músculos e tendões, com cintura de vespa e caixa torácica de culturista. A cabeça, maciça, parecia feita de pedra. Nos olhos, com pupilas de nácar, alternavam a candura palerma de uma criança pouco desenvolvida e a curiosidade feroz de um dinossauro carnívoro. Isabel dera-lhe o nome de Tchurra e tratava-a como um ser incompreendido. Soltou-lhe a trela, e a Tchurra lançou-se pelo relvado fora como um míssil teleguiado, derrubou três cães que se lhe atravessaram no caminho e, sem se desviar um milímetro da sua rota, chocou de frente com o maior cão ali presente, virando-o de pantanas, depois caiu-lhe em cima. Isabel e Sónia acudiram, arrastaram a Tchurra dali para fora muito a custo, no meio de uma algazarra de latidos e um coro de gritos dos donos apavorados.
— A Tchurra é a gorda da turma, não sabe controlar a força quando brinca com os outros meninos. Os outros pais não gostam nada que ela brinque com os filhos deles, têm medo que ela se sente em cima da cabeça de algum e o asfixie. Mas ela não faz por mal, não é, Tchurra? — disse Isabel, carinhosa, como se falasse com uma giganta bebé.
A cadela parecia agora indiferente, deixando-se conduzir com mansidão, como se um interruptor se lhe tivesse desligado no cérebro. Lá longe, os outros cães, que a arremetida dela desassossegara, davam piruetas, trepavam pelos donos acima, histéricos. Passava gente vestida de cores berrantes e lustrosas, aos pares, aos trios, a correr. As bicicletas sibilavam em enxame. O corrupio de cães pela trela não parava. A Tchurra espalmou-se ao comprido na erva, as quatro patas estendidas e o ventre colado ao chão, como um tapete feito da pele de uma fera exótica. Foi então que, vindo da varanda de um dos prédios sobranceiros ao parque, soou o grito indignado:
— Psicopatas!
Sónia não cessava de se espantar com a facilidade com que as pessoas tinham deixado cair certas lutas, certas causas, até ali tão prementes, tão cruciais. Talvez esses desígnios não fossem, afinal, assim tão prioritários. Escassos dias antes de a pandemia começar, um coro indignado divulgava ainda os malefícios do plástico, falava-se em proibir os copos descartáveis, os sacos de plástico nos supermercados. Agora, no clima de paranóia sanitária, tudo isso fora varrido para muito longe. A ninguém parecia importar que, se toda a gente cumprisse à risca os conselhos e determinações das autoridades de saúde, o planeta inteiro ficaria, em escassas semanas, coberto por uma camada de luvas descartáveis de plástico com vários metros de espessura. Sónia passava horas a ver no Youtube vídeos de tartarugas e baleias presas em redes de pesca à deriva, exaustas, arrastando na sua esteira bóias ou âncoras de navios. Pescadores ou veraneantes em iates aproximavam-se, cortavam laboriosamente a rede. Os animais debatiam-se, repeliam os seus salvadores, tentavam fugir, apavorados. Assim que o último fio da rede era cortado, apressavam-se a desaparecer no oceano sem deixar rasto. Os vídeos, filmados com telemóveis, às três pancadas, acabavam sempre com gritos de entusiasmo dos salvadores, aplausos pelo êxito do resgate. Sónia não conseguia deixar de imaginar aquelas mesmas tartarugas e baleias a morrerem escassos dias depois, com os estômagos atafulhados com quilos e quilos de luvas descartáveis multicores.
Inscreveu-se no SOS Vizinho. Era um excelente pretexto para sair mais vezes de casa, para falar com pessoas. O pai não se opôs, era por uma boa causa. A verdade é que, aos poucos, começava a mostrar-se menos rígido, menos draconiano no cumprimento das normas de higiene. Sónia recebeu no telemóvel uma mensagem do coordenador concelhio do SOS Vizinho com a lista das compras de um idoso de setenta anos, chamado José Fráguas, que morava na rua dela. Quando se aproximou do prédio, olhando para os números das portas em contagem decrescente, percebeu que fora precisamente ali que, dias antes, vira um velho a ser repreendido pela filha. Tocou à campainha, o trinco estalou, uma voz, brotando do painel de botões, disse-lhe:
— Suba, suba, que eu não tenho medo de vírus nem de pessoas. A menos que a menina tenha.
Sónia aproximou a boca dos furinhos alinhados e respondeu também não tinha medo de vírus, só de imbecis. A voz no intercomunicador soltou uma risada crepitante. Ela subiu no elevador. Chegou ao patamar, a porta do apartamento estava entreaberta, um gato olhou-a e esgueirou-se para dentro. Ela deu um passo em frente, ficou à espera no limiar, com o saco de compras na mão. Empurrou a porta um pouco a medo.
— Posso entrar? — perguntou.
— Entre! — disse uma voz vinda das entranhas da casa.
Mal cruzou a porta, ela viu na parede, emoldurada, uma grande fotografia a preto-e-branco. Uma imagem ligeiramente desfocada, o instantâneo de um momento sem encenação. Homens sorridentes, com roupas antiquadas, casacos de napa, camisolas de gola alta, a abraçarem-se à luz crua de projectores. Em fundo, o escuro da noite, um muro alto, arvoredo.
— Isso foi quando saí de Caxias — disse uma voz grave nas costas de Sónia, que se voltou, surpreendida. Atrás dela, no corredor, estava o velho do outro dia, o tal a quem a filha dera uma valente descasca.
— Foi no dia 26 de Abril de 74. E aquele — o homem apontou com o dedo para uma das figuras na imagem, um jovem de bigodes e longas patilhas — sou eu. Ou antes — emendou, ao fim de uns segundos —, aquele fui eu, porque já quase não me reconheço.
Em O Aleph, Borges vê na simples mudança de um cartaz publicitário de cigarros o sinal de que o mundo irá esquecer Beatriz Viterbo, que acaba de morrer, e isso dói-lhe. Na Lisboa primaveril de 2020, pelo contrário, era a permanência dos mesmos cartazes desactualizados, anunciando produtos que já ninguém comprava, automóveis, apartamentos, viagens aéreas, a ferir os olhares, dando a ver o mundo morto que talvez não voltasse mais. Num dia de chuva, as pessoas na fila para a padaria encostaram-se aos edifícios, abrigando-se sob as varandas. Sónia e o pai, mantendo as distâncias em relação à pessoa da frente, deram por si diante da porta de um prédio. Um casal equipado com máscaras, luvas, viseiras, toda a artilharia sanitária, acercou-se, as mãos carregadas de sacos de compras, e a mulher, em voz imperativa e metálica, sem nenhuma inflexão humana, disse-lhes:
— Saiam da frente, por favor.
Sónia imaginou que ela e o pai recriavam, à porta daquele prédio, a performance Imponderabilia, de Marina Abramovic e Ulay. Nus, frente a frente, de olhos cravados um no outro, cada qual encostado à sua ombreira, deixariam apenas um estreito hiato, por onde os moradores, quer quisessem entrar quer sair, teriam de passar, roçando-se nos corpos de ambos. «A polícia de Bolonha interrompeu a performance da Marina e do Ulay ao fim de hora e meia, dizendo que era obscena», pensou. «Neste clima de loucura colectiva, eu e o pai, se tentássemos uma coisa parecida, nem cinco minutos durávamos aqui. As pessoas nem sequer se dariam ao trabalho de chamar a polícia. Linchavam-nos, sem mais.»
O homem à varanda gritou de novo: «Psicopatas!» Ao ver-lhe os traços finos e as mãos cuidadas, a barbicha aparada, Sónia não pôde deixar de pensar num Iago muito magro que vira certa vez em palco, insinuante e ressentido. Voltando-se para uma mulher de meia-idade, debruçada de uma janela no prédio contíguo, o homem disse muito alto, colocando a voz para se fazer ouvir cá em baixo:
— Nunca vi tanta gente na rua! Nunca! E olhe bem para aquelas panças, D.ª Mabília! Não quero ser injusto, mas é gente que não costuma fazer corrida, nem sequer caminhada! Agora deu-lhes para o exercício!
E, entusiasmado pelo aceno de cabeça aprovador da vizinha, clamou, com a gestualidade cuidada de um ditador de opereta:
— Psicopatas, sim! Não querem saber dos outros, não sentem culpa nem remorsos, não têm noção dos riscos. Não sentem empatia, nem lhes passa pela cabeça que alguém possa morrer por causa deles! Se não são psicopatas, são o quê?
Isabel pôs-se de pé, sacudiu os fundilhos das calças.
— Aquele gajo já vai ver — disse. Avançou com a Tchurra pela trela, postou-se debaixo da varanda. — Ouça lá — disse, de cabeça erguida. — É a mim que está a chamar psicopata? — Sónia acompanhara-a, já a antegozar a cena. «Vai haver molho», pensou, deliciada.
O homem, vendo-se interpelado, olhou para baixo, pressuroso. Percebia-se que estava muito satisfeito por alguém ter correspondido ao seu chamamento.
— O que é que a menina quer? — atirou. — Vá mas é para casa, de onde nem devia ter saído. — E depois, a meia-voz, para a vizinha: — Já viu isto? Que descaramento! Não cumprem as regras e ainda são arrogantes!
A Tchurra voltara a estender-se no chão, muito espalmada contra a calçada, a gozar o fresco do empedrado, e lançava para o alto um olhar entre estupefacto e desconfiado, dir-se-ia um viquingue diante de uma catedral.
Álvaro releu a Guerra das Gálias, de Júlio César. Como sempre lhe acontecia ao percorrer aquelas páginas, impressionou-o um episódio menor do cerco de Alésia, meia dúzia de linhas, não mais. Por não os poder alimentar, Vercingétorix expulsa da cidade cercada os velhos, as mulheres e as crianças. Estes não-combatentes cruzam a terra-de-ninguém e, chegados aos baluartes romanos, imploram que os aceitem como escravos e que lhes dêem de comer. César, temendo um ardil, recusa recebê-los. E por aqui se fica o general no seu relato. A última frase dele sobre o assunto, naquele seu tom gélido, falando de si próprio na terceira pessoa, é esta: «Mas César mandou pôr sentinelas no baluarte e proibiu que os acolhessem.» Não torna a aludir a estas pessoas, que abandonam para sempre os anais da História e cujo destino desconhecemos. Era isto que mais impressionava Álvaro: este vislumbre fugaz de um sofrimento tão grande, seguido de um eclipse total. Fechou o livro e lembrou-se dos sem-abrigo de Lisboa, dos sem-abrigo de todas as cidades da Europa, agora mais do que nunca entregues à sua sorte, a vaguearem para trás e para diante, entre as muralhas da cidade que outrora foi sua e os baluartes das forças de ocupação, a mendigarem comida em vozes cada vez mais sumidas, até se deixarem morrer discretamente. Lembrou-se dos espigões metálicos que vira alinhados poucos dias antes no rebordo de pedra de um prédio novo, para impedir os sem-abrigo de ali se deitarem ou sequer sentarem. Ocorreu-lhe que aqueles espigões se assemelhavam aos ouriços metálicos que se colam nas cornijas dos prédios, para repelir os pombos que ali querem pousar, evitando que eles caguem tudo. E ocorreu-lhe que aqueles espigões se assemelhavam também às puas de ferro cravadas em pequenas estacas que César mandou semear metodicamente, em quadrícula, diante dos seus baluartes, no cerco de Alésia, para repelir os atacantes gauleses, esfacelando-lhes os pés. E lembrou-se de um velho muito sujo a quem dava dinheiro regularmente, sempre que o encontrava perto da sua casa, e que lhe dissera uma vez: «Ando há vinte e oito anos escravizado pelo mundo.»
— Anda, pousa aqui o saco das compras — disse José, caminhando pelo corredor, precedido pelo gato. Sónia seguiu-o, no passo hesitante com que invadimos as casas dos estranhos. Entraram na cozinha.
— Trato-te por tu, pode ser? Chamas-te Sónia, não é? Olha, tens ali o dinheiro das compras, vê lá se está certo — prosseguiu José, apontando para as moedas e notas, metodicamente dispostas sobre a bancada. Tinha olhos grandes e cara de garoto. Era um daqueles homens que, envelhecendo, nunca perdem os traços de rapaz. Parecia um menino caduco. — Vou dizer-te uma coisa. Eu nem precisava desta ajuda, não tenho medo nenhum de ir às compras, antes pelo contrário. A minha filha é que me inscreveu, quase à força. Acabei por lhe dizer que sim, para não me chatear mais com ela. Mas, já que aqui estás, vamos conversar um bocado, se tiveres tempo e paciência para aturar um velho. Tenho saudades de conversar com alguém cara a cara sem me sentir vigiado, culpado. Vá, tira a máscara, para nos vermos um ao outro. Hoje a minha filha não me vem visitar, não há perigo.
Sónia sentou-se à mesa da cozinha, tirou a máscara. Detestava aquele sufoco.
— Estás-me a chamar psicopata, é? — atirou Isabel, deleitando-se com a sua própria indignação. — Dizes que não quero saber dos outros, que me é indiferente o sofrimento que posso causar a terceiros, é isso? Olha que tens andado distraído, amigo. Se queres chamar psicopata a alguém, há muitos candidatos na fila á minha frente. É estranho só agora te indignares.
O homem na varanda esbracejou, soltou monossílabos, fez menção de se esganiçar, mas Isabel, quando se lançava numa das suas catilinárias, era uma autêntica metralhadora pesada. Puxou a culatra atrás e disparou outra vez:
— Queres gente que não quer saber do sofrimento dos outros, para os poderes insultar? Então pega lá. Os chefes das empresas que fabricam e nos vendem telemóveis e todo o género de aparelhos feitos para durarem dois ou três anos, quando podiam fabricar outros que durassem dez ou vinte vezes mais, e que, dessa maneira, rebentam com o planeta inteiro. São psicopatas ou não? Os governantes e decisores que salvaram os bancos e lixaram as pessoas como nós. São psicopatas ou não? Os presidentes de câmara que expulsam os moradores para os subúrbios, dando-lhes cabo da qualidade de vida e da saúde, porque querem transformar Lisboa e o Porto em parques de diversões para turistas e nós só estamos aqui a incomodar. São psicopatas ou não? Os donos das grandes empresas que estão a ganhar fortunas com esta pandemia, mas que continuam a tratar os seus trabalhadores como lixo. São psicopatas ou não?
A janela fechou-se com estrondo. O homem desaparecera, de rosto abrasado de indignação. Começava a formar-se um pequeno ajuntamento.
— Já te foste embora? — gritou Isabel, sabendo que o homem estava atrás da vidraça, a espreitar. — Olha que eu estava só a começar… A lista é longa. — E, voltando-se para Sónia: — O papagaio do meu pai também berrava coisas às pessoas que passavam, mas, ao menos, não se armava em intelectual.
Afastaram-se as duas, deixando para trás os mirones, que perguntavam uns aos outros: «Mas o que é que se passou?» ou «Houve discussão, foi?» A Tchurra caminhava pela trela e, com os olhos de gelo muito abertos, parecia procurar respostas no rosto da dona.
Sónia passava horas a ver no Youtube vídeos de asiáticos atarracados, indonésios ou malaios, a construírem piscinas subterrâneas na floresta. Cada vídeo durava uns vinte minutos ou meia hora, e a imagem era acelerada, para condensar naquele curto segmento a labuta, que durara semanas. Não havia música nem palavras, somente os sons das lâminas incansáveis a percutirem a terra dura. Os homens, sempre de tronco nu, descalços, de calções ou calças, abriam clareiras no arvoredo, escavavam enormes buracos geométricos, esculpiam colunas e nichos, caminhavam por montes e vales em busca de matérias-primas, aplicavam com as mãos a argamassa feita de termiteiras pulverizadas, pintavam as paredes de verde com folhas amassadas, canalizavam a água dos rios, usando colmos de bambu. No fim, invariavelmente, punham-se a chapinhar ou a nadar nas piscinas, à luz de velas metidas nos nichos. De cada vez que acabava de ver uma daquelas sequências, Sónia amaldiçoava o seu tempo perdido em vão. «Mas para que é que eu vi esta merda?», perguntava a si mesma, irritada. Dali a bocado, via outra. Gostava de imaginar a selva a reconquistar aqueles lugares assim que os autores dos vídeos partiam para escavar outra piscina longe dali, a vegetação a esboroar aos poucos as construções, tigres e serpentes a abrigarem-se naquelas grutas artificiais. Seria sinal de que a selva ainda subsistia em manchas suficientemente extensas, ainda suportava aqueles pequenos golpes e conseguia regenerar-se.
Sentados à mesa da cozinha, enquanto o gato se passeava para trás e para diante entre eles, José e Sónia conversaram muito tempo. Há pessoas com quem sentimos uma afinidade imediata, com quem travamos amizades sem preâmbulo nem nota introdutória. Ele disse-lhe que estava a ler novamente A Divina Comédia, de Dante. Perguntou-lhe se já lera, ela confessou que não lera tudo, só os primeiros cantos do Inferno, o que era uma falha imperdoável, para quem estudara em Itália e aprendera bem o italiano. Ele perguntou-lhe que curso tirara e, quando ela respondeu «pintura», mostrou-se genuinamente interessado. Foi buscar a sua edição de luxo, em grande formato, do Inferno, com as gravuras de Gustave Doré. Arredou um pacote de cereais, a lata do açúcar, duas ou três latas de grão, pousou o livro em cima da mesa e abriu as páginas na primeira gravura, aquela em que Dante, «no meio do caminho da nossa vida», olha por cima do ombro, entre árvores gigantescas, fitando-nos com uma expressão em que se misturam a perplexidade e um convite a que o sigamos, mas também o aviso de que, se o fizermos, iremos descobrir coisas que nunca mais esqueceremos. Sónia disse a José que gostava muito de Gustave Doré, que estudara a obra dele na cadeira de Gravura, e ele pediu-lhe que explicasse como é que, em termos técnicos, se faziam gravuras assim. As gravuras de Doré fascinavam-no, porque delas emanava a impressão de objectos formalmente perfeitos, insuperáveis. Dentro do género, nunca mais seria possível fazer melhor. E aquela primeira gravura do Inferno era, talvez, a sua preferida. Cada vez que contemplava a página, sentia-se dentro do desenho, a percorrer aquela floresta pelo seu pé, na esteira de Dante.
Sónia percebeu que o pedido dele não era um mero formalismo. Há muitas pessoas que nos fazem perguntas, mas que não querem, genuinamente, ouvir as respostas. Para espanto dela, assim que desfiou a sua explicação, ele pôs-se a tomar notas num caderno. «É para não me esquecer dos pormenores», disse. Ela explicou-lhe que Doré desenhava directamente em matrizes de madeira, que os seus gravadores de confiança depois trabalhavam demoradamente com delicados buris. Expôs as subtilezas da orientação dos veios da madeira e a respectiva importância no processo. Vincou que os gravadores sulcavam na superfície da madeira as partes do desenho que deveriam ficar em branco, deixando em relevo, como minúsculas cornijas recurvas ou planaltos liliputianos, os traços que o punho de Doré ali desenhara, e que a tinta depois banharia aquando da impressão. Tratava-se de um labor complexo, exigindo ao artesão que tivesse constantemente presente o desenho e o seu negativo, um objecto e o seu exacto inverso. Demorou-se a explicar o modo como os gravadores convertiam as sombras, os relevos e os claro-escuros do desenho original em tramas mais ou menos apertadas de entalhes, que o olho humano apreendia depois, no desenho impresso, como gradações de cinzento. Pediu uma lupa a José e apontou-lhe na página estes pormenores.
Sem que eles dessem por isso, passaram-se duas horas. Sónia olhou para o relógio, disse a José que tinha de se ir embora, que os pais a esperavam para jantar, mas que gostara muito de o conhecer. Percorreram o corredor, o gato seguiu-os, a enlear-se nos pés de Sónia, como que a pedir-lhe que ficasse. No limiar, antes de abrir a porta, José disse-lhe:
— Vou contar-te uma coisa. Nunca falei à minha filha de Caxias, do que me fizeram lá — fez um gesto vago na direcção da fotografia em que ele próprio, numa outra vida, abraçava um amigo à porta da cadeia. — Ela só sabe que estive preso antes do 25 de Abril, mais nada. Nunca me perguntou nada, também nunca lhe contei.
Fitou Sónia, como que a perceber se podia prosseguir. Deve ter visto um encorajamento nos olhos dela, porque disse:
— Tornei a ver as unhas do bicho agarradas ao pé da mesa. Como há cinquenta anos. Há muito tempo que não as via. Foi preciso esta quarentena para o bicho voltar. E ontem, aqui no corredor, a meio da noite, vim beber água e o bicho saltou-me para as costas e cravou-me as unhas. Atirei-me contra a parede, a esfregar as costas na parede, para me livrar dele, como fiz quando me torturaram, ao fim de cinco dias e cinco noites sem dormir. Nunca percebi que género de bicho seria. Via-o agarrado ao pé da mesa, tinha muitas unhas, mas estava sempre do lado contrário ao meu.
Calou-se de repente. Talvez achasse que fora longe de mais.
— Agora chega. Conto-te o resto da próxima vez. Se houver próxima vez. Não te quero maçar, tenho pavor de ser aquele velho que dá secas aos mais novos com as suas histórias.
— Eu prometo que volto, para saber o resto — disse Sónia, sorrindo para ele. E saiu.
Sonhou naquela noite com a gravura de Doré, a primeira gravura do Inferno. Sonhou que estava dentro do desenho, que seguia Dante pela escuridão daquela floresta. E que em todos os troncos das árvores surgiam garras que se mexiam, febris, mas os bichos estavam do outro lado dos troncos e ela nunca os conseguia ver.
Álvaro fala ao telefone com o amigo Noël Genteur, o organizador da marcha anual de 16 de Abril, em Craonne, em homenagem aos mortos da infame ofensiva Nivelle de 1917. Noël diz-lhe que está muito triste por, pela primeira vez há muitos, muitos anos, a marcha não se ter realizado. Mas que é preciso continuar a semear. Que é preciso, sobretudo, semear sem pensar na colheita. Que o avô dele lhe dizia: «A seara só se mostra bela uma vez em cada ano. Portanto, se a vemos bela na Primavera, não a veremos bela no Verão, quando chegar o momento da ceifa.» Álvaro despede-se, desliga o telefone e sente-se pequeno, por esta arte do semeador não estar ao seu alcance. Por lhe faltar esta esperança, esta fé. Mas, naquela noite, também ele tem um sonho.
Sonha com os não-combatentes de Alésia, expulsos da cidade por Vercingétorix. Sonha que um deles, um só, sobrevive ao cerco na terra-de-ninguém. É uma mulher, ainda jovem. Esconde-se semanas a fio entre os cadáveres dos velhos, das crianças, das outras mulheres. Alimenta-se de raízes, de ervas, de um ou outro bocado de pão que lhe atiram do alto das muralhas. Assiste de longe, enroscada no chão, aos combates ferozes, às cargas de cavalaria. Ouve os clamores, vê as línguas de fogo. Uma bátega dá-lhe de beber. A batalha chega ao fim, os romanos vitoriosos apressam-se a derrubar os muros de Alésia e a incendiar os seus próprios baluartes. A mulher vê-os partir, seguidos por uma longa serpente de cativos acorrentados. Quando o silêncio desce sobre a terra e a noite cai, ela ergue-se do chão e afasta-se no escuro, trôpega, a delirar de fome. Acolhem-na numa aldeola, dão-lhe de comer. Vive doravante em liberdade.