José Pedro Teixeira Fernandes

Docente do ensino superior e investigador, lecionando nas áreas de Relações Internacionais e de Estudos Europeus. Tem diversos artigos publicados em revistas científicas nacionais e internacionais e vários livros nas suas áreas de especialização. Integra o painel de analistas e comentadores de política internacional do Jornal 2 da RTP. É autor de diversos artigos de opinião e análise de questões internacionais na imprensa escrita, nomeadamente, no jornal Público.

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Uma das grandes ironias da covid-19 é, pelo menos nesta fase, estar a afectar gravemente as áreas mais ricas e mais desenvolvidas da Europa e do mundo. São estas as que mostram uma nova fragilidade, inimaginável até há pouco tempo.

1. Políticos, jornalistas e médicos usam demasiadas vezes uma linguagem bélica para mobilizar a população na luta contra a pandemia da covid-19. Na imprensa, é usual lermos ou ouvirmos declarações de que “estamos em guerra” ou estamos a “lutar pela nossa sobrevivência”. É certo que é uma metáfora, mas é uma metáfora desproporcionada e provavelmente contraproducente, pois pode incutir também sentimentos negativos no ser humano e na sociedade: o medo do outro, o outro como inimigo — o portador o vírus.

No mundo de há cem anos sabia-se bem o que era uma guerra e os seus efeitos devastadores na humanidade. A I Guerra Mundial (1914-1918) foi uma catástrofe sem precedentes para Europa (sobretudo) e o mundo da época. No final da guerra — e nos anos seguintes — também se soube o que era uma terrível pandemia: a do vírus influenza A do subtipo H1N1, mais conhecida como gripe espanhola, ou pneumónica. Provocou imensas mortes e sofrimento humano (ver Laura Spinney, “Pale Rider. The Spanish Flu of 1918 and how it Changed the World.” NY, PublicAffairs, 2017).  Na sociedade portuguesa dessa altura, também foi marcante o sofrimento provocado por uma (a guerra) e pela outra (a doença). Mas, como nos mostra a imprensa de há cem anos, ninguém se via em guerra contra a gripe espanhola depois de ter sofridos os horrores inimagináveis da guerra das trincheiras de França e da Flandres, como sofreram, directa ou indirectamente, centenas de milhares de portugueses. 

2. Na Ilustração Portugueza nº 661 de 21 de Outubro de 1918, p. 321 (numa coluna intitulada “crónica”), podemos ler um texto curioso. Permite-nos ter uma ideia do ambiente que se vivia na época, com algum humor à mistura, sobre o medo e pânico social que também se instalou, do qual vou aqui transcrever um excerto. “Dá-se com a actual epidemia o que sempre se tem dado em casos análogos, agora com o agravamento de se confessar a impotência médica contra o mal, como se a medicina tivesse sido alguma vez mais do que um simples auxiliar da natureza: o medo concorre em grande parte para o alastramento da doença, parece que enfraquecendo os organismos e privando-os assim dos meios de resistência […] sabemos de um facto, a propósito, que tem feito de anedota e que apontamos como exemplo de precaução levada ao máximo. A aldeia onde costumamos procurar a indispensável compensação de um ano de trabalho não foi poupada pela grippe pneumonica, sendo poucas as famílias que não sofreram a desagradável visita.” Essa preocupação transformou-se “em pavor nos espíritos tímidos, entre os quais se conta o de certo comerciante que aos primeiros rebates [do dobre melancólico dos sinos] se meteu na cama, sem o mínimo de sintoma de ter sido acometido pela enfermidade. Visitámo-lo, inquirimos e respondeu-nos com a maior fraqueza que o que tinha era medo. — Todas as cautelas são poucas, declarou-nos. E como naquele momento um boletineiro lhe batesse á porta e lhe dissesse que era portador d’um telegrama, perguntou ansioso:  — Sabe de onde foi expedido? — Da Azambuja, respondeu o homem. — Da Azambuja onde a epidemia tem morto tanta gente? Não recebo! E não recebeu.” 

3. Nas sociedades ricas, desenvolvidas e sofisticadas da Europa e Ocidente imaginava-se ter vencido os deuses que condenaram Sísifo a um esforço sem sentido. Albert Camus dedicou um notável ensaio filosófico a esse mito clássico na sua abordagem ao absurdo da existência humana (ver Albert Camus, O Mito de Sísifo, trad. port.  Livros do Brasil, 2013). 

Mas os tempos eram outros. Foi escrito em 1942 e estávamos em plena II Guerra Mundial. O mundo parecia ruir e a guerra retirava sentido à vida humana. A medicina era fraca. O próprio Camus foi seriamente afectado pela tuberculose, uma doença infecciosa potencialmente mortal. Para os europeus e ocidentais, essa realidade, tal como da gripe espanhola, já só se encontrava nos livros de História. Por isso, quando confrontadas com o espalhar do novo vírus SARS-CoV-2 (coronavírus), na origem da pandemia da Covid-19, as nossas sociedades ficaram desorientadas. Tinham-se quase esquecido que a fragilidade da existência humana é intemporal, mesmo nas sociedades mais ricas, sofisticadas e tecnologicamente mais avançadas. E que o tormento de Sísifo pode sempre reaparecer mais à frente, fazendo ruir utopias sociais e políticas de sociedades perfeitas. Como descreve Albert Camus, “Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha, de onde a pedra caía de novo, em consequência do seu peso. Tinham pensado, com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança” (idem, p. 125).

A pandemia da Covid-19 é o novo castigo de Sísifo: pensávamos ter erradicado, ou pelo menos controlado, as doenças infecciosas mais mortais. Agora vemo-nos de novo, como Sísifo, na base da montanha. Algo que tínhamos ultrapassado e só era imaginado ainda existir no “Terceiro Mundo” da África, América Latina e Ásia menos desenvolvida. 

4. Uma das grandes ironias da Covid-19 é, pelo menos nesta fase, é estar a afectar gravemente as áreas mais ricas e mais desenvolvidas da Europa e do mundo. São estas as que mostram uma nova fragilidade, inimaginável até há pouco tempo. São estas que têm os melhores meios de saúde, mas são estas também onde a interligação da economia e da sociedade mais sofre com as medidas para conter e as consequências da paragem económica forçada.

Por outras palavras, são aquelas onde as medidas de contenção e isolamento social mais potencial têm de destruição da economia, do emprego e de um nível razoável de bem-estar, pelo menos tal como estávamos habituados. O tempo é naturalmente aqui uma variável crucial, mas, nesta altura todas as possíveis escolhas políticas são más, pelos seus drásticos efeitos secundários. Quanto mais se prolongarem as medidas de excepção — sobretudo as mais extremas que quase fazem parar toda a actividade económica e social —, mais vão ser afectados os direitos e liberdades individuais, a, economia e o tecido social. À direita exacerba-se o discurso securitário e à esquerda exacerba-se o discurso humanitário. Como resultado, podem (re)abrir-se sérias fracturas na sociedade. Pobres contra ricos, gerações mais novas contra gerações mais velhas, empresas e sectores de actividades económica que sofreram perdas desastrosas, contra empresas e sectores que beneficiaram com os inesperados negócios ligados ao pânico da covid-19 e à readaptação das condições de vida social e económica. 

5. Pela segunda vez, num espaço de doze anos, estamos a ser brutalmente empurrados para o sopé da montanha. Em 2008, foi a crise financeira iniciada nos EUA e que alastrou, em seguida, para a Europa, transformou-se na crise mais grave económico-financeira do pós-II Guerra Mundial. A União Europeia e Zona Euro ficaram rapidamente centro de um gravíssimo problema. A maioria dos europeus viu o seu nível de vida — e regalias sociais conquistadas ao longo de longas e sofridas lutas — em retrocesso.

Quase tudo o que era dado como certo pelas sucessivas gerações do pós-II Guerra Mundial, sobretudo a partir dos anos 1960 — quando, nas sociedades da abundância, se pensou que Sísifo vencera mesmo os deuses —, foi posto em causa. A partir de 2015 a recuperação da economia e a subida da montanha sem grandes paragens estavam a fazer esquecer esse passado traumático. Agora foi a China a estar na origem da covid-19 e a “globalização do vírus” a fazer o resto. 

Voltando a Albert Camus, a Sísifo e à fragilidade (e absurdo) da existência humana. Como este dizia, “Já todos compreenderam que Sísifo é o herói absurdo. É-o tanto pelas suas paixões como pelo seu tormento. O seu desprezo pelos deuses, o seu ódio à morte e a sua paixão pela vida valeram-lhe esse suplício indizível, em que o seu ser se emprega em nada terminar. É o preço que é necessário pagar pelas paixões desta terra.” (idem, p. 126).  Por isso, é preciso novamente “imaginar Sísifo feliz.” 

É isso que se impõe agora aos governos e à sociedade.

NOTA: Por opção do autor este artigo foi escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

In Público, 18 de março de 2020