Paulo Faria
Paulo Faria nasceu em 1967, em Lisboa. Licenciou-se em Biologia por mero acidente. É, há longos anos, tradutor literário, tendo traduzido obras de autores como George Orwell, Jack Kerouac, James Joyce, Don DeLillo e Cormac McCarthy. Viajou em busca das nascentes de algumas das obras que traduziu, o que o levou ao Tennessee, ao Texas, ao Novo México. Venceu, em 2015, o Grande Prémio de Tradução APT/SPA, pela tradução de História em Duas Cidades, de Charles Dickens. Publicou Estranha Guerra de Uso Comum (romance, 2016) e crónicas nas páginas da revista Ler e do jornal Público.
Conheça a sua obra em www.almedina.net
«Acho que devíamos fazer como em Itália, já hoje», pensou Carlos. «Ontem já era tarde. Todos fechados em casa, a vigiarmo-nos uns aos outros. A vigiarmo-nos a nós próprios. Às vezes, tenho vontade de sair de casa, mas reprimo o impulso. Com o tempo, hei-de habituar-me.»
Não estava a brincar. Nunca falara tão a sério, aliás. E nunca poderia estar a brincar, mesmo que quisesse, porque perdera o sentido de humor. A pandemia fizera-o perder o sentido de humor, já não era capaz de gracejar. E se um homem sem sentido de humor é uma criatura perigosa, pois bem, tanto pior. «Neste momento», disse para consigo, «sou uma criatura perigosa. Para defender os meus, estou disposto a tudo. Estou disposto a matar o que há de humano em mim, sou capaz de sufocar o que há de humano nos outros. Estou disposto a ir até ao fim.»
Os colegas de liceu descobriram-no há uns meses, um conhecido de um conhecido fez-lhes chegar o número de telefone dele, acrescentaram-no ao grupo de Whatsapp. Carlos passou a receber as mensagens, a participar nas conversas. Quando a doença começou, lá na China, viu afluírem ao telemóvel as piadolas, as fotografias legendadas com gracejos em letras gordas, uma garrafa de cerveja Corona numa ponta da mesa e uma chusma de garrafas de outras marcas na ponta oposta, encostadas umas às outras, cada qual com uma máscara cirúrgica em cima do rótulo. À medida que a epidemia foi progredindo, as piadas escassearam, até que desapareceram, de todo. Já ninguém se ri do vírus. As pessoas também já não se riem de si próprias. «Estamos em guerra, não temos vontade de rir», pensa Carlos.
A filha dele, a Sónia, chegou há três dias de Milão, onde estava a fazer Erasmus. Se Carlos tivesse levado a dele avante, a Sónia teria ficado lá. Agora, com o Skype, matam-se facilmente as saudades. Mas ela quis voltar, teimou. Na casa que a Sónia partilhava com cinco colegas já só estava ela e uma outra, uma napolitana. As outras regressaram a suas casas, mas a napolitana recusou-se a voltar a Nápoles, disse que não queria contaminar a família. Impôs regras apertadas lá em casa, mesmo antes de o governo decretar a quarentena nacional. Só falava com a Sónia por sms. Quando alguma delas queria ir à casa de banho ou à cozinha, tinha de avisar por mensagem e esperar pela resposta, para dar tempo à outra, se fosse caso disso, de sair da divisão e desinfectar tudo. E só se podia sair de casa para ir ao supermercado. A Sónia é um pouco rebelde, saía de vez em quando para dar uma volta ao quarteirão, para apanhar ar, para não enlouquecer, dizia ela. A napolitana, ao ouvir a porta da rua a fechar, mandava-lhe sms agressivas, acusatórias. «É por causa de pessoas como tu que isto se espalhou.» E a Sónia respondia-lhe, desafiadora: «Sim, foi por haver pessoas que esta pandemia aconteceu.» Carlos teve de dar razão à napolitana.
Sempre roera os dedos, desde que se lembrava. Não as unhas, os dedos, as peles em volta das unhas, arrancando bocados até sangrar. Como naqueles versos de Álvaro de Campos:
Tenho vontade de levar as mãos
À boca e morder nelas fundo e a mal.
Tentou tudo para abandonar este vício. Pincelou os dedos com vernizes amargos, envolveu-os em pensos rápidos. Comprou rosários gregos e andou com eles nos bolsos das calças, para manter as mãos ocupadas. Tudo em vão. Tinha os dedos calejados, eriçados de rebarbas. Agora, desde que a epidemia chegou a Portugal, deixou de roer os dedos, deixou de levar as mãos à boca a cada instante, em busca de uma ponta solta para puxar com os dentes. O medo da contaminação fez o que as dores e o incómodo das feridas nunca haviam conseguido. O medo sobressaltava-o e serenava-o ao mesmo tempo. Era agora um homem melhor. «A guerra torna-nos melhores. “Foca-nos”, como dizem as pessoas agora», pensou.
Disse a um amigo, o Álvaro, que estamos em guerra contra este vírus. Ele pareceu-lhe renitente em abraçar esta ideia. Chegou a dizer-lhe que as guerras se travam entre pessoas, entre seres humanos. Que as metáforas bélicas e militares não costumam prenunciar nada de bom para a democracia, para a liberdade. Carlos respondeu-lhe que não há, nos nossos hospitais, camas suficientes, ventiladores suficientes para todos. Que os nossos médicos vão ter de agir como numa cidade bombardeada, escolhendo, de entre as vítimas, quem merece ser salvo e quem é descartável. E disse-lhe que, entre a democracia e a vida, escolhia a vida. Não lho disse, gritou-lho, porque já estava enervado.
Foram de carro ao aeroporto, Carlos e a mulher, buscar a Sónia. De luvas de borracha e máscara cirúrgica. Levaram um par de luvas e uma máscara a mais, não fosse ela aparecer de cara descoberta e mãos nuas. Apareceu mesmo, é claro. Carlos obrigou-a a proteger-se. No carro, ela contou-lhes que um amigo dela, lá em Milão, fora multado por estar na rua sem motivo. Que cada pessoa que sai à rua tem de levar consigo um documento assinado, chamado autocertificação, atestando as razões que a levaram a sair de casa. Ir tratar de um familiar idoso, ir trabalhar, razões de saúde. E que o tal amigo tinha ido só apanhar ar. Depois, a Sónia começou a falar de Foucault e do panóptico, mas Carlos pediu-lhe que se calasse. Não confiava muito na eficácia das máscaras. Não confiava em nada, aliás. Em tempo de guerra, não se pode confiar em nada, em ninguém.
Em casa, ouve o tropel das crianças no andar de cima. Agora que não há escola, passam os dias fechados no apartamento, a correr de um lado para o outro, que nem bisontes. Pregam rasteiras uns aos outros, ouvem-se os corpos a cair. O pai grita: «Ó Vítor! És um estúpido!» O prédio é antigo, ouve-se tudo. Mas Carlos não se enerva, não se impacienta. O tumulto sossega-o. Se estão em casa, ao menos não andam na rua a contaminar os outros ou a trazerem o vírus para dentro do prédio.
«Se há coisa que esta pandemia nos ensinou», pensa, «é que os corpos dos outros são portadores de doenças insidiosas, mortais.» O Álvaro disse-lhe que sempre foi assim, mas ele calou-o com os números da mortalidade desta epidemia. Consulta as estatísticas de hora a hora, às vezes menos, no Worldometer. Tem lá tudo, gráficos, tabelas, os valores discriminados por países. Só não se informa quem não quiser. O Álvaro atreveu-se a dizer-lhe que, se tivéssemos um chip dentro de nós que nos fornecesse dados constantemente actualizados sobre o nosso organismo, se pudéssemos saber, minuto a minuto, o número de células de cada tipo que possuímos, o número e o género de micróbios que há dentro de nós, a composição química do nosso sangue, tudo, em suma, então deixaríamos de viver no sentido mais nobre da palavra. Passaríamos a ser espectadores da nossa vida celular, todos doentes por antecipação. E disse-lhe que toda a estatística, levada ao extremo, é totalitária, no sentido em que nos subjuga e escraviza. Carlos respondeu-lhe que, se esse chip existisse, ele seria o primeiro a querer que lho implantassem. Mais, até: exigiria que o implantassem em toda a gente, e que tivéssemos acesso aos dados dos chips dos outros em tempo real. Para não corrermos riscos. Não se pode correr riscos.
A Sónia não tem sintomas nem contactou lá em Itália com ninguém que tivesse sintomas, mas Carlos foi implacável. Felizmente, o quarto dela é num recanto da casa, não é local de passagem. Mal saíram do carro e entraram em casa, ordenou-lhe em tom firme que se fechasse lá. A casa de banho pequena ficou para ela, mais ninguém lá entra. Quando quer sair do quarto, ela manda aos pais uma sms. A mulher de Carlos fala com ela através da porta, embora ele ache desaconselhável. Das duas últimas vezes, a mulher acabou a chorar. É melhor falarem por Skype, de quarto para quarto. Quando passarem catorze dias, logo se vê. Fala-se agora em catorze dias de incubação, mas, daqui a catorze dias, as informações podem já ser outras. As regras mudam consoante a informação que vai sendo recolhida. É assim em tempo de guerra.
A Sónia mandou ao pai uma mensagem a dizer-lhe que não se pode pôr um país de quarentena e suspender a vida das pessoas sem suspender, ao mesmo tempo, a lógica do lucro, sem mudar a economia de alto a baixo. Que não se podem alterar radicalmente as relações entre as pessoas sem alterar radicalmente as relações económicas entre as pessoas. Que lógica do lucro e quarentena geral não casam.
Carlos viu na cozinha, em cima da bancada, um pequeno rectângulo de papel. Pegou-lhe, tinha impressos números e letras pequenas: Trasporto Passeggeri Lombardia — Titolo Aerobus. Largou logo o papelinho, que caiu no chão. Varreu-o com a pá e a vassoura, deitou-o no lixo. Desinfectou longamente a bancada, depois as mãos. «Não podemos vacilar, o inimigo espreita», pensou.
Ontem recebeu uma mensagem de um amigo, o Pedro, a avisá-lo de que, às dez da noite, deviam ir à janela bater palmas, para apoiar os profissionais de saúde. Há uns meses, o Pedro mandara-lhe mensagens indignadas por causa da greve dos enfermeiros, chamando-lhes todos os nomes feios possíveis, mas Carlos compreende que ele esteja agora noutro comprimento de onda. As circunstâncias mudaram. À hora certa, ele e a mulher abriram a janela da sala, começaram a aplaudir. A Sónia assomou à janela do quarto dela, que é mesmo ao lado. «Olá, vizinhos!», disse-lhes, e riu-se. Carlos achou-a bem-disposta, apesar de tudo. Quando os aplausos na rua cessaram e as pessoas fecharam as janelas, virou-se para ela e disse-lhe:
— Quanto àquilo de suspender a lógica capitalista, talvez tenhas razão, mas, para já, há coisas mais urgentes. Estamos em guerra, afinal.
Não se quis alongar, porque lhe pareceu que o vento soprava da janela do quarto dela para a varanda onde ele estava com a mulher, e a distância não é muito grande, uns três metros, talvez. A Sónia, porém, parecia ter a resposta preparada, e disse-lhe:
— Não, pai, tem de ser já. Não podemos ter autocertificação e selvajaria económica. Não nos podem pedir que sejamos pessoas responsáveis e cheias de sentido cívico e que, ao mesmo tempo, busquemos o máximo lucro possível. As duas coisas são incompatíveis.
Carlos fechou a janela. Ouve agora a filha, atrás da porta do quarto, a cantar a plenos pulmões a ária do catálogo, do Don Giovanni, com a cadência dos números que Leporello vai recitando adaptada aos últimos dados do Worldometer acerca do coronavírus, que ele consultou há pouco e lhe enviou por mensagem. «A minha filha terá enlouquecido?», pensa.
Paulo Faria
16 de Março de 2020