Edgar Valente

Advogado na Dantas Rodrigues & Associados – Sociedade de Advogados, RL, com escritório em Lisboa. Licenciado e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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Constituindo a situação epidemiológica do novo Coronavírus – COVID-19, uma realidade de natureza excecional e desejosamente transitória de que resultam, diariamente, consequências gravíssimas a nível mundial com milhares de novos casos de infeção e crescente número de mortos confirmados, com efeitos igualmente preocupantes em Portugal, foi declarado no passado dia 18 de março de 2020, o Estado de Emergência no nosso pais, com o Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, implicando a suspensão temporária de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos a fim de prevenir e travar a propagação do vírus.

Conjuntamente, foram adotadas medidas urgentes, extraordinárias e de cariz igualmente temporário tendo em vista, prever, por um lado, normas de contingência e resposta no combate contra a epidemia SARS COV-2 e, por outro, estabelecer um regime adequado à realidade atualmente vivenciada, incidindo sobre os mais variados setores, designadamente ao nível da contratação publica, aquisição de bens e serviços na área da saúde, assistência familiar e proteção social dos trabalhadores, entre outros.

Resultando da declaração de Estado de Emergência e respetiva execução através do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, a necessidade de restringir ao mínimo indispensável a circulação na via pública e a permanência em estabelecimentos abertos ao público, é determinado o dever geral de recolhimento domiciliário, o qual, em casos especiais é elevado a confinamento obrigatório e a um dever especial de proteção, impondo nestes casos, restrições acrescidas no que ao isolamento domiciliário concerne.

Tal circunstancialismo contende, de igual forma, com o setor imobiliário e, em especial, com a necessidade de proteção do direito à habitação constitucionalmente previsto, implicando, consequentemente, a necessidade de adoção de medidas de proteção dos arrendatários, em especial naqueles cujos contratos de arrendamento se encontram na iminência, judicial ou extrajudicial, de chegar ao fim, independentemente da forma de cessação visada.

As medidas em apreço, preconizadas essencialmente com o objetivo de paralisar de imediato, ainda que de forma temporária, os efeitos derivados da cessação dos contratos de arrendamento e consequente desocupação dos locados, visam assim evitar que os arrendatários em apreço sejam forçados a desocupar os imóveis que habitam e tenham de procurar uma outra habitação, com todos os transtornos que uma mudança de domicílio geralmente envolve, ou, no pior dos casos, não tenham mesmo qualquer alternativa de habitação numa altura onde é imposto o dever geral de permanência nas habitações a fim de prevenir e travar a transmissão do COVID-19.

Neste sentido, podemos delimitar o conjunto de normas existentes sobre a temática do arrendamento urbano no respeitante ao conjunto de medidas urgentes a adotar contra o surto epidemiológico COVID-19, por referência aos seguintes diplomas: Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, que procede à aprovação de medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e o Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, que procede à execução da declaração do Estado de Emergência efetuada pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março.

Iniciando pelo primeiro dos diplomas referidos, resulta do n.º 10 do artigo 7.º, cuja epígrafe é: “Prazos e diligências”, que “são suspensas as ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria.

Neste sentido, todos os meios processuais atualmente existentes destinados a produzir a cessação judicial do contrato de arrendamento ou a efetivar essa mesma cessação, mediante a desocupação coerciva do locado ficam imediatamente suspensos desde a data de produção de efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, isto é, desde o dia 14 de março de 2020, à qual retroage a produção de efeitos a referida Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, nos termos do artigo 10.º, o que sucederá desde que o arrendatário, por força da decisão judicial a proferir, possa ficar sem habitação.

O âmbito de aplicação da norma não é imediatamente percetível sendo necessária a análise cuidada do preceito para que se torne possível a respetiva apreensão do mesmo, porquanto, se a uma primeira luz nos parece ser intenção do legislador abarcar todo e qualquer processo em que o arrendatário se encontre na iminência de ver declarada a cessação do seu contrato de arrendamento, ou apreendido coercivamente o bem imóvel objeto do mesmo, da leitura atenta do disposto, tal desiderato não nos surge tão linear como porventura deveria ser.

Assim sendo, em primeiro lugar, o propósito aparente da presente disposição é o de proteger unicamente os contratos de arrendamento habitacionais e dentro destes, tanto os contratos de arrendamento para habitação permanente, como para habitação não permanente ou para fins especiais transitórios, de fora ficando os contratos não-habitacionais, pese embora a desproteção que tais contratos merecem no preceito em análise seja colmatada pelo disposto no n.º 1 do mesmo artigo, o qual dispõe, no que aqui interessa, que, quanto a todos e quaisquer atos processuais que devam ser praticados em processos que corram termos nos tribunais judiciais é aplicável o regime das férias judiciais, o qual se manterá até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.

Por outro lado, da parte final do preceituado no n.º 10 do artigo 7.º, parece ser colocada em crise a suspensão de processos em que o arrendatário, após o respetivo desfecho dos mesmos, goze de habitação alternativa, em contraposição com aqueloutros onde, efetivamente, não disponha de tal possibilidade, o que nos parece manifestamente desprovido de sentido, dado que tal conclusão sobre a existência ou não de habitação alternativa findo o processo em apreço, envolveria necessariamente um juízo casuístico que permitisse aferir se cada inquilino, de facto, teria para onde ir no final do processo, o que não sucede em momento algum na tramitação comum de quaisquer dos processos referidos, razão pela qual não se deve, no presente âmbito, levantar tal dúvida.

Por outras palavras, entendemos que o preceituado deverá abranger, inequivocamente, todo e qualquer contrato de arrendamento habitacional, devendo a parte final do mesmo ser interpretada meramente no sentido de que tanto as ações judiciais declarativa e executiva como o procedimento extrajudicial referidos no n.º 10 do artigo 7.º, como meios processuais que são, destinados, respetivamente, à declaração judicial da cessação do contrato de arrendamento ou à respetiva efetivação mediante a desocupação coerciva do locado poderem, como tal, determinar eventualmente que o arrendatário possa, efetivamente, ficar desprovido de habitação no final dos mesmos, sendo assim desnecessário aferir, caso tal venha a suceder, se o mesmo terá ou não habitação alternativa, na medida em que, em qualquer um dos casos, tais processos devem ser suspensos, como referido.

Por sua vez, o preceituado não cura de esclarecer se o disposto é ou não aplicável, de igual forma, às decisões transitadas em julgado resultantes de ação de despejo, pese embora, atenta a ratio legis da norma assim como do respetivo diploma em que a mesma se insere e do próprio objetivo preconizado de proteção social dos arrendatários visados, nos pareça evidente que as mesmas não serão passíveis de execução, no período de vigência do diploma em apreço, a par de que tais decisões constituem unicamente título executivo para efeito de ação executiva para entrega de coisa imóvel arrendada, prevista nos artigos 862.º e seguintes do Código de Processo Civil, a qual, por sua vez, é igualmente objeto da referida suspensão quando se refere a “processos para entrega de coisa imóvel arrendada”.

Importa, por último, notar que o regime referido no artigo 7.º quanto àqueles processos, vigorando desde o dia 14 de março de 2020, não tem ainda qualquer período temporal de vigência definido, na medida em que, como resulta do n.º 2 do mesmo preceito, este “cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional”, vigorando até então.

O artigo 8.º da Lei n.º 1-A/2020, por sua vez, sob a epígrafe “Regime extraordinário e transitório de proteção dos arrendatários” vem consagrar um regime transitório de proteção do arrendatário que vigorará desde o dia 14 de março de 2020 até que seja determinada “a cessação das medidas de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, conforme determinada pela autoridade nacional de saúde pública”, consistindo, como resulta da alínea a), na suspensão da produção de efeitos das denúncias de contratos de arrendamento habitacional e não-habitacional efetuadas pelo senhorio, sendo uniformemente abrangidos ambos os contratos de arrendamento, independentemente da respetiva finalidade.

Criticável será, porém, o facto de o preceituado apenas indicar como merecedores da referida suspensão de produção de efeitos os contratos objeto de denúncia e, não também, aqueles em que haja ocorrido a oposição à renovação, porquanto, ao referir-se apenas à figura da denúncia, parece apenas estarem abrangidos os contratos de duração indeterminada e não também, injustificadamente, os contratos com prazo certo, os quais constituem, aliás, a regra no que tange à celebração de contratos de arrendamento atualmente, sendo assim carente de fundamento tal exclusão, culminando, se interpretado literalmente, pela redução manifesta de proveito útil do disposto a uma percentagem reduzida de contratos.

Entendemos assim que, ao referir-se à denúncia de contratos de arrendamento habitacionais e não-habitacionais, pretende o legislador, de igual forma, abranger a oposição à renovação no respeitante aos contratos com prazo certo, aos quais, ainda que de forma equivoca, ainda é atribuído o termo “denúncia”, não apenas no senso do cidadão comum mas também pelo próprio legislador, por exemplo no que tange à possibilidade de revogação unilateral do arrendatário após a oposição à renovação do senhorio, nos termos do n.º 3 do artigo 1098.º do Código Civil, razão pela qual não nos parece desprimorosa tal interpretação extensiva do preceituado. 

No respeitante, por sua vez, à resolução dos contratos de arrendamento, importa notar que o legislador não estabeleceu qualquer suspensão expressa quanto aos mesmos, pese embora não necessite de o fazer, na medida em que, no respeitante aos contratos de arrendamento cuja cessação foi peticionada pela via judicial, como vimos, tais processos são objeto de suspensão, quer se encontrem na sua fase declarativa, isto é, em sede de ação de despejo, ou já na fase executiva, ou seja, em sede de ação executiva para entrega de coisa imóvel arrendada.

No que tange à resolução extrajudicial dos contratos de arrendamento, pese embora o lapso legislativo seja evidente, o efeito prático é o mesmo que vimos abranger os contratos cuja resolução é requerida pela via judicial, porquanto, ao desencadear a cessação extrajudicial de tais contratos, mediante uma das vias previstas no n.º 7 do artigo 9.º NRAU , isto é, notificação judicial avulsa, contacto pessoal de advogado, solicitador ou agente de execução ou, bem ainda, por escrito assinado e remetido ao arrendatário por carta registada com aviso de receção, nos contratos em que haja sido clausulado o domicílio convencionado do arrendatário, terá o senhorio, perante a inércia do inquilino na desocupação do locado, de desencadear o competente meio processual para obter a desocupação coerciva do imóvel de pessoas e bens, isto é, o procedimento especial de despejo, o qual é igualmente objeto de suspensão como vimos supra.

Passando à alínea b) do artigo 8.º da Lei n.º 1-A/2020, estabelece esta a suspensão das execuções de “hipoteca sobre imóvel que constitua habitação própria e permanente do executado”, o que, atenta a epígrafe “Regime extraordinário e transitório de proteção dos arrendatários” do preceito em que a mesma se insere, não deixa de suscitar dúvidas quanto ao respetivo alcance do preceito, uma vez que, em sede de execução de hipoteca, o executado será, em princípio, o mutuário e adquirente do bem imóvel arrendado, aproveitando a hipoteca a favor da entidade credora perante a qual foi constituída tal garantia real.

 Por outras palavras, executado será geralmente o proprietário do imóvel, na qualidade de mutuário do contrato de crédito hipotecário em que interviu e não o seu arrendatário, o que nos permite assim equacionar que a inserção da referida alínea no preceito em apreço pretenda proteger por um lado, as situações que literalmente nela se encontram previstas, isto é, ficam suspensas as execuções de hipotecas em que o respetivo bem imóvel constitui a habitação própria e permanente do executado e, por outro lado, ficam igualmente suspensas as execuções de hipotecas relativamente a bens imóveis arrendados em que os mesmos constituam habitação permanente dos respetivos arrendatários, assim salvaguardando os contratos de arrendamento para habitação permanente, entendimento que sustentamos.

A par da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, também o Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março vem consagrar, no seu artigo 10.º, a proteção aos arrendatários de contratos não-habitacionais que sejam obrigados a encerrar os respetivos estabelecimentos cujo espaço se encontra arrendado, em virtude do cumprimento escrupuloso do conjunto de normas constantes do referido diploma, normas essas que estabelecem, entre outros aspetos, o conjunto de estabelecimentos que poderão continuar em funcionamento em contrapartida daqueloutras instalações e estabelecimentos comerciais, consagrados no anexo I ao mesmo, que deverão ser encerrados durante a sua vigência indeterminada, cuja data de entrada em vigor se inicia no dia 22 de março de 2020.

Assim sendo, o referido artigo 10.º, com a epígrafe “efeitos sobre contratos de arrendamento e outras formas de exploração de imóveis”, vem estabelecer a impossibilidade de invocação por parte do senhorio, enquanto fundamento de resolução do contrato de arrendamento, o encerramento do estabelecimento que se encontra instalado no locado.

De facto, a alínea d) do n.º 2 do artigo 1083.º do Código Civil estabelece que o não uso do locado por período superior a um ano, permite ao senhorio resolver o contrato de arrendamento, o que, na ausência de previsão em sentido contrário e na hipótese de o encerramento perdurar por mais de um ano, poderia fragilizar a posição do arrendatário que, em cumprimento do estatuído quanto à obrigação de encerrar o seu estabelecimento, poderia ver resolvido com justa causa pelo senhorio, o contrato de arrendamento do imóvel em que o mesmo se encontrava instalado, o que seria duplamente penalizador dos seus interesses, quer pelo prejuízo económico resultante da ausência de exploração do estabelecimento durante o período em que o mesmo se encontrava encerrado por imposição legislativa, como pela cessação do contrato de arrendamento por fundamento que, pese embora previsto e verificado, não lhe seria imputável, sendo assim bem-vinda a consagração da referida exceção ao disposto naquele preceito, a fim de evitar o surgimento de casos de manifesta injustiça que a própria lei poderia potenciar.

O referido artigo 10.º acrescenta ainda que tal fundamento não poderá, de igual forma, ser utilizado para sustentar a denúncia ou outra forma de extinção de contratos de arrendamento não habitacionais ou de outras formas contratuais de exploração de imóveis, nem como fundamento de obrigação de desocupação de imóveis em que os mesmos se encontrem instalados, pretendendo o legislador, desta forma, abranger todas e quaisquer possibilidades de o senhorio se poder prevalecer da circunstância de o estabelecimento se encontrar encerrado, para assim obter a respetiva cessação do contrato de arrendamento ou de qualquer outro contrato ao abrigo do qual seja permitida a exploração desse estabelecimento.

A par da natural impossibilidade de invocação por parte do senhorio do fundamento em apreço para denunciar o contrato de arrendamento não-habitacional, nos termos do artigo 1101.º e seguintes do Código Civil, entendemos que o disposto abrange, de igual forma, toda e qualquer estipulação inserta em contrato de arrendamento em que as partes estabeleçam como condição resolutiva, a caducidade do contrato de arrendamento perante o encerramento do estabelecimento comercial nele instalado.

No respeitante à adoção de medidas em matéria de arrendamento urbano no que diz respeito ao combate do COVID-19, resta, por último, dar nota de uma proposta de lei a submeter nos próximos dias à apreciação da Assembleia da República, destinada a suspender durante o período de três meses, a caducidade dos contratos de arrendamento, assim estabelecendo um regime excecional e temporário de contagem dos prazos dos contratos de arrendamento habitacionais e não-habitacionais. A aludida previsão da suspensão de prazos no que tange à caducidade dos contratos de arrendamento, na mesma linha das medidas de que vimos dando conta nas linhas anteriores, é bem-vinda, em especial, no sentido de promover a proteção dos arrendatários de contratos habitacionais cuja data de cessação, seja por caducidade pelo decurso do prazo estipulado ou por oposição à renovação pelo senhorio nos contratos com prazo certo, se verificasse durante o período crítico que atravessamos, assim permitindo ao arrendatário que continue a residir no locado, desde que continuando naturalmente a cumprir com as mesmas obrigações que lhe seriam imputáveis até esse momento.