Jorge Bacelar Gouveia

Professor Catedrático de Direito, Advogado e Jurisconsulto. Presidente do Conselho Fiscal da Ordem dos Advogados Portugueses. Presidente do Instituto de Direito e Segurança.

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O estado de exceção no Direito Constitucional tem o propósito de preservar a ordem constitucional, tal implicando a necessidade paradoxal, embora temporariamente e segundo o princípio da proporcionalidade, da adoção de uma legalidade de exceção que permita o reforço dos poderes públicos no combate às causas que o motivaram.

          Síntese

          1. O estado de exceção no Direito Constitucional tem o propósito de preservar a ordem constitucional, tal implicando a necessidade paradoxal, embora temporariamente e segundo o princípio da proporcionalidade, da adoção de uma legalidade de exceção que permita o reforço dos poderes públicos no combate às causas que o motivaram.

Se bem que, nas exigências atuais do Estado de Direito que o Constitucionalismo trouxe, o estado de exceção constitucional viva o dilema de ter de ser, simultaneamente, eficiente o bastante para afastar a crise que lhe deu origem, mas sem que essa ação comprometa o regresso à normalidade constitucional.

2. A Teoria do Estado de Exceção Constitucional, nos seus últimos desenvolvimentos, permite observar o fenómeno numa dupla vertente:

– de singular estrutura de defesa extraordinária da Constituição, na sua intensidade, amplitude e temporariedade;

– de vicissitude constitucional própria, com características diversas de todas as outras, repercutindo-se sobre a Constituição, fazendo desabrochar uma ordem constitucional alternativa.

3. Portugal também incorporou ao longo da sua história constitucional diversos instrumentos de estado de exceção, prevendo a atual Constituição da República Portuguesa de 1976 os institutos do “estado de sítio” e do “estado de emergência”.

          O seu regime jurídico – que se condensa em fontes constitucionais, internacionais e legais – deve ser estudado considerando os seguintes tópicos:

          – os pressupostos fácticos que o justificam;

          – as fases do procedimento para a sua declaração;

          – os efeitos materiais, organizatórios, espaciais e temporais da decisão de exceção, bem como as respetivas vicissitudes de execução, modificação e extinção;

          – o controlo – político e judiciário – que o estado de exceção decretado requer.

§ 1º Teoria do Estado de Exceção Constitucional

  1. O sentido do estado de exceção constitucional

I. O estado de exceção constitucional[1] pode ser definido como a alteração fundamental da ordem constitucional, de vigência transitória, que reforça o poder público, fundada na ocorrência de situações de anormalidade que lhe são lesivas, visando pôr-lhes cobro[2].

II. São três, deste modo, os elementos constitutivos deste conceito de estado de exceção constitucional:

um elemento material: “a alteração fundamental do ordenamento jurídico-constitucional”;

um elemento funcional: “reforçando o poder público em ordem à cessação das situações de anormalidade”; 

um elemento temporal: “com uma duração temporária”.

III. Porém, a cabal compreensão do estado de exceção no Direito Constitucional deve perspetivá-lo sob três vertentes, além daquilo que ele é como vicissitude constitucional própria[3]

– o estado de exceção como manifestação específica do poder político;

– o estado de exceção como ordenamento constitucional autónomo;

– o estado de exceção como princípio geral de Direito Constitucional.

  • Estado de exceção e poder constitucional

I. O poder de exceção constitucional localiza-se, num primeiro momento, no conjunto das funções constituídas, na medida em que o respetivo fundamento de validade se retira sempre da ordem constitucional estabelecida, e é, por natureza, uma figura pertencente à regularidade constitucional, atuando segundo os quadros constitucionais estipulados.

Para ser um poder constituinte, jamais se sujeitaria às constrições que conceptualmente se lhe reconhecem, sobretudo no princípio da retornabilidade à ordem constitucional pré-existente[4].

Por outro lado, o poder de exceção constitucional não se pode ilustrar pelo princípio da Kompetenz-Kompetenz, visto que não se lhe encontra a capacidade para se auto-organizar, mas apenas de se exercer segundo o esquema previamente traçado, por mais vago que seja.

E depois no plano material, há um conjunto de opções, de nível constitucional, que lhe estão vedadas.

II. A sua especificidade joga-se, pois, no seio das funções constituídas do Estado, na máxima intensidade que se permite ao exercício do poder constituído, com as três dimensões conceptuais referidas:

(i) a alteração material da ordem constitucional, em termos radicais se necessário;

(ii) para reforçar o poder público, em detrimento da comunidade política, a partir da verificação de um conjunto de causas desestabilizadoras da ordem constitucional, com o fito de esta preservar;

(iii) durante um período limitado de tempo, nunca a título definitivo.

Por isto se conclui que o poder de exceção constitucional, no conjunto das funções estaduais constituídas, é aquele que mais altera a Constituição e, por isso, é também aquele que, de uma perspetiva quantitativa e qualitativa, mais próximo se encontra do poder constituinte.

III. Todavia, a maior profundidade do poder de exceção – com a concomitante conclusão de que não pode estar sujeito a limites materiais idênticos aos que caracterizam a revisão constitucional – acarreta que, do ponto de vista teorético, não sejam postas em questão várias realidades constitucionais, que funcionam como seus limites.

A amplitude do conteúdo do estado de exceção, quebrando princípios que fazem parte da identidade constitucional, não se pode julgar como total, havendo a assinalar, na verdade, alguns pontos que delimitam negativamente a sua ação:

– há, em primeiro lugar, os limites materiais que se impõem tendo em consideração os padrões éticos transcendentes ao poder constituinte, embora a sua projeção no contexto do estado de exceção se assuma como algo externo ao respetivo poder, do mesmo modo que é externa a qualquer manifestação do poder público, maxime do constituinte, que também não pode tolher;

há, em segundo lugar, os limites estruturais dependentes do facto de o estado de exceção ser uma realidade prevista pela Constituição da Normalidade, quer em termos de fundamento de validade, quer em termos do regime da amplitude dos respetivos efeitos; ele não é uma figura que se possa apresentar à margem da ordem constitucional existente e pressupõe-na nos estritos limites positivos e internos que a mesma lhe fixa; a extensão desses limites é variável, embora os mesmos devam não apenas conformar-se com o princípio do Estado de Direito como também não ser de tal modo ténues que inviabilizem o regresso à normalidade constitucional;

há, em terceiro lugar, os limites funcionais, inerentes à sua própria eficácia: se é construído para resolver uma situação de crise, só deve permitir as atuações que se mostrem viáveis no contexto da resolução dessa crise; mas se as duas limitações anteriores se apresentam como abstratamente definíveis, no plano do Direito Suprapositivo e no do Direito Constitucional Positivo, estes já decorrem da configuração concreta de cada estado de exceção e das singularidades que cada sistema possui levando em linha de conta as opções que se possam colocar ao legislador, constitucional e infraconstitucional.

  • Estado de exceção e ordenamento constitucional

I. O estado de exceção como ordenamento constitucional autónomo[5], nos termos da sua própria definição, não deixa de se relacionar com o Direito Constitucional da Normalidade, ressaltando logo à vista a existência, ali, de normas de tipo excecional, pois que o respetivo conteúdo – tendo por base pressupostos específicos e prosseguindo o objetivo de terminar com a situação de anormalidade, ao transformar a ordem constitucional por forma a implicar a mudança dos respetivos princípios identificadores – plasma-se na adoção de uma regulação jurídico-constitucional contrária às orientações gerais substanciais que enformam o ordenamento constitucional.

Pode também haver normas especiais, além das normas excecionais, no estado de exceção como ordem jurídica própria. É que, efetivamente, mesmo nas situações de crise constitucional, não é possível prescindir-se de alguns desses princípios e a atuação excecional assim se mostra como meramente adaptativa de alguns deles, não tendo de ser-lhes sempre visceralmente contrária.

A intervenção dos efeitos excecionais constitucionais, não sendo neste contexto tão drástica quanto no caso das normas excecionais, incorpora regras especiais, conformando o sistema constitucional geral aos tempos de crise[6].

Este é um caso que se exemplifica com as normas que determinam a aceleração da produção dos atos de exceção ou que reforçam os mecanismos de controlo da legalidade excecional.

II. Mais: o estado de exceção constitucional, por definição, corresponde a uma ordem constitucional parcelar, e jamais total, sendo a regulação do estado de exceção, a despeito das suas evidentes singularidades, uma regulação parcial por referência à ordem constitucional da normalidade.

A cabal ordenação da exceção constitucional só tem sentido quando complementada pelo recurso às normas constitucionais da normalidade, caso contrário nem sequer se falaria de normas excecionais ou de normas especiais, que só o são por relação com as normas gerais.

A regulação de exceção nunca é uma regulação exclusivista, no propósito de só admitir normas que tenham que ver especificamente com os respetivos princípios ordenadores.

III. O mais complicado é saber em que termos o estado de exceção constitucional se afigura relevante perante a ausência ou insuficiência da previsão do mesmo por parte do Direito Constitucional Positivo, sendo certo que os avanços que hodiernamente se reconhecem no estado de exceção determinam que as fontes normativas do mesmo, como instituição inevitável à preservação da ordem constitucional, devam ser devidamente consagradas nas Constituições Positivas.

IV. Mas se essa regulação jurídico-constitucional não existir?

Do ponto de vista juspositivo, é forçoso aceitar que este vazio ou deficiência regulativa se traduz numa situação de lacuna do Direito Constitucional, a ser preenchida nos termos por que a mesma nele se equaciona.

Por mais rígido que se apresente, o texto constitucional jamais ignorará esta realidade, devendo integrar-se a lacuna constitucional dos poderes de necessidade, conferindo esses poderes sempre que os respetivos pressupostos se verifiquem, cessando os seus efeitos logo que a situação de necessidade termine.

O respetivo preenchimento deve ser feito segundo os processos que o Direito Constitucional disponibiliza para a tarefa de integração das suas lacunas. Mas a lacuna que se verifica é mais uma lacuna de exceção e não tanto uma lacuna de regulamentação: o problema não está tanto em não haver qualquer resposta, o problema está mais em haver uma resposta inapropriada, que não permita resolver os problemas. Daí que a solução da lacuna se deva dar criando normas excecionais e de duração temporária.

A relevância da necessidade constitucional, do ponto de vista mais restrito do estado de exceção constitucional, refrange a aplicação de um princípio constitucional de defesa da ordem constitucional, perante a ausência ou a deficiência de mecanismos destinados à sua proteção extraordinária.

V. Por tudo isto, o regime do estado de exceção constitucional tornou-se, assim, um dos elementos da reserva de Constituição, pela qual se exige a qualquer texto constitucional a disciplina desta matéria.

Outra coisa não seria concebível, de resto, em função de alguns aspetos que definem o estado de exceção com uma inequívoca projeção na órbita constitucional, como no-lo mostra cada um dos seus elementos constitutivos[7]:

a) o elemento material – implicando a compressão de direitos fundamentais e a reorganização dos poderes do Estado, maxime do poder executivo;

b) o elemento funcional – atendendo às situações que põem em causa a identidade estrutural do Estado, com que é dotada certa Constituição, em nome do combate às mesmas através da sua alteração substancial;

c) o elemento temporal – pela necessidade de a temporariedade da exceção ser associada ao desejo efetivo de retorno à ordem constitucional da normalidade. 

§ 2º O estado de exceção em Portugal

  • O reconhecimento do estado de exceção constitucional no Direito Português

I. A positivação do estado de exceção no Direito Constitucional Português esteia-se nas figuras do estado de sítio e do estado de emergência:

– a primeira com raízes no Constitucionalismo Português porque introduzida na Constituição de 1911; e

– a segunda criada, originalmente, com a Constituição da República Portuguesa de 1976 (CRP).

II. Na sua essência, o regime constitucional do estado de sítio e do estado de emergência foi logo definido na versão primitiva da CRP, tendo as posteriores revisões constitucionais efetuado alterações de pouca monta[8], podendo, em resumo, registar-se dois diferentes contributos:

  1. a revisão constitucional de 1982 – por um lado, a maior democratização do procedimento decisório do estado de exceção, em decorrência, em geral, da maior democraticidade alcançada no sistema de governo português mercê da substituição de um órgão de cariz militar e revolucionário (o Conselho da Revolução), sendo a respetiva intervenção de tipo autorizativo trocada por uma intervenção de tipo consultivo a cargo do Conselho de Estado; por outro lado, o aperfeiçoamento garantístico que se obteve através do aumento do número expresso de direitos fundamentais que passaram a ser insuscetíveis de suspensão na pendência das situações de exceção;
  2. a revisão constitucional de 1989 – muito menos importante do que a primeira, esta revisão caracterizou-se por um melhoramento técnico-jurídico do regime do estado de exceção, com o esclarecimento de dúvidas que a redação inicial tinha suscitado na doutrina, sobretudo na disciplina dos aspetos jurídico-formais da declaração do estado de exceção.  

III. As fontes normativas da regulação do estado de exceção não se limitam ao texto constitucional, havendo que realçar tanto as fontes internacionais como as fontes legais[9].

No plano internacional, Portugal encontra-se vinculado aos sistemas de proteção dos direitos do homem da Organização das Nações Unidas e do Conselho da Europa, pelo que também por aqui se aplicam os respetivos textos.

Repare-se que, não obstante ter havido a formulação de algumas reservas por parte de Portugal, em matéria das derrogações aos direitos do homem que são previstas no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e na Convenção Europeia dos Direitos Humanos não se depara com qualquer desvio relativamente ao regime que é formulado, respetivamente, nos seus arts. 4º e 15º, assim plenamente aplicáveis na Ordem Jurídica Portuguesa.

IV. No plano legal, o regime constitucional do estado de exceção é amplamente desenvolvido por uma lei que apenas trata destas matérias – a Lei sobre o Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência (LRESEE) (Lei nº 44/86, de 30 de setembro, com alterações posteriores), que integra os seguintes capítulos, nos seus 28 artigos:

  • Capítulo I – Disposições gerais
  • Capítulo II – Do estado de sítio e do estado de emergência
  • Capítulo III – Da declaração
  • Capítulo IV – Da execução da declaração
  • Capítulo V – Do processo da declaração 

Apesar do seu carácter específico, esse não vem a ser o único diploma pertinente porque outra legislação existe que, pontualmente, cuida de aspetos relacionados com o regime do estado de exceção: a legislação sobre referendos, a legislação sobre a responsabilidade penal dos titulares dos cargos políticos ou a legislação sobre a defesa nacional e as forças armadas.

  • Os pressupostos do estado de exceção

I. O texto constitucional, em matéria de pressupostos do estado de exceção, considera três situações possíveis para se levar a cabo a respetiva decretação[10]:

  1. a “agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras” – uma situação de carácter militar internacional, em que se regista a ofensa da integridade territorial do Estado;
  2. a “grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática” – uma situação de carácter político-institucional, na qual se põe em causa a estrutura constitucional do Estado, nos seus aspetos e princípios nucleares;
  3. a “calamidade pública” – uma situação de cariz social, de elevados prejuízos e que atinge um grande número de pessoas, causada por acidentes tecnológicos ou por catástrofes naturais (cfr. o art. 19º, nº 2, da CRP e o arts. 1º, 8º e 9º da LRESEE).

II. Estes pressupostos da decretação do estado de exceção não são isentos de crítica, várias tendo sido as dúvidas levantadas, quer quanto à sua formulação, quer quanto ao seu número.

Quanto à sua formulação, a apreciação de cada um destes pressupostos força à conclusão de que não existe um critério único subjacente à sua escolha como causas do estado de exceção. Para cada um deles foi decisivo um peculiar elemento que se teve em mente: causas humanas – agressão externa e perturbação da ordem constitucional – e causas naturais – calamidade pública; causas externas – agressão por forças estrangeiras – e causas internas – perturbação da ordem constitucional e calamidade pública; causas territoriais – agressão externa – causas políticas – perturbação da ordem constitucional – e causas sociais – calamidade pública[11].

O que de mais condenável se encontra na tipificação destes pressupostos é a respetiva parcial sobreposição, assim se obliterando muito do alcance autónomo que pudessem ter. A tipificação está longe de corresponder a uma separação rigorosa dos factos que podem originar o estado de exceção: os dois primeiros pressupostos oferecem muitas áreas de coincidência. A “agressão por forças estrangeiras” coincide, em parte, com a violação de alguns princípios que fazem parte da “ordem constitucional democrática”, como é inequivocamente o caso do princípio da integridade territorial do Estado Português[12]

Quanto ao seu número, o pluralismo dos pressupostos do estado de exceção não permite cabalmente resolver uma outra importante questão de ordem geral, relativa ao carácter aberto ou fechado desses pressupostos fácticos. É uma dúvida que sempre se coloca quando se está em face de uma tipologia jurídica, por definição plural.

Todavia, o texto constitucional é, a este respeito, mais concludente, ao afirmar que o “…estado de sítio ou o estado de emergência só podem ser declarados…” (art. 19º, nº 2, primeira parte, da CRP). Trata-se, na verdade, da afirmação constitucional do numerus clausus dos pressupostos do estado de exceção, feita de um modo expresso, dispensando o labor doutrinário da tarefa de proceder à sua determinação[13].

III. A ideia da segurança integra vários dos pressupostos do estado de exceção, e não apenas nos tipos de exceção tradicionalmente considerados político-militares, que em grande medida justificam o estado de sítio: a agressão militar ou a sublevação.

Também o estado de exceção social, que se prende com disrupções sociais, pode acolher a dimensão da segurança, na sua vertente de necessidade de proteção social em face da ocorrência de catástrofes naturais e acidentes graves.

  • A decretação do estado de exceção

I. No que tange à decretação do estado de sítio e do estado de emergência[14], regista-se um procedimento em que se envolvem os diversos órgãos do Estado, com isso se atestando, aliás, a importância que a CRP quis atribuir à situação de exceção constitucional (cfr. os arts. 10º e ss. e 23º e ss. da LRESEE):

  1. a iniciativa do Presidente da República: perante o preenchimento dos respetivos pressupostos, cabe ao Chefe de Estado tomar oficiosamente a iniciativa de pôr em marcha um procedimento para declarar o estado de sítio e o estado de emergência, elaborando para o efeito um projeto de declaração;
  2. a audição, a título instrutório, do Governo: havendo a intenção de iniciar o procedimento, o Presidente da República deve consultar o Governo, que emite parecer obrigatório e não vinculativo;
  3. a autorização da Assembleia da República: o projeto de declaração, devidamente acompanhado do parecer do Governo, é depois submetido a apreciação da Assembleia da República, que lhe concede ou não a sua autorização, não podendo, em todo o caso, introduzir-lhe emendas;
  4. a decisão final do Presidente da República: havendo a autorização parlamentar, cabe ao Presidente da República a última palavra, decretando ou não o estado de sítio e o estado de emergência, exatamente nos termos propostos (tendo ainda de contar com a referenda ministerial).

A análise do peso procedimental de cada uma dessas intervenções leva a concluir que se está em face de um procedimento complexo quanto ao momento constitutivo, verificando-se as quatro características que, segundo ROGÉRIO EHRHARDT SOARES[15], lhe são comummente reconhecidas: (i) fim unitário da proclamação do estado de exceção, (ii) analogia de interesses decisórios, (iii) homogeneidade da atividade de apreciação jurídico-política e (iv) exercício de um mesmo poder de discricionariedade de celebração, quanto à oportunidade e quanto ao momento. 

II. Comprovada a natureza plurisubjetiva do ato de exceção, conglomerando, primeiro, o ato de aprovação parlamentar prévia (dito de “autorização da declaração do estado de exceção”) e, depois, o ato presidencial/governativo de aprovação final do estado de exceção (dito de “declaração do estado de exceção”), é de observar o modo como se organizam essas relações intersubjetivas, que tanto podem ser simétricas como assimétricas, em razão da igualdade ou desigualdade da posição de cada uma das partes envolvidas no momento decisório que se analisa.

Ressalta-se a posição proeminente do Chefe de Estado na conformação do ato de exceção: é a ele que compete a elaboração da proposta de ato de exceção que se submete à Assembleia da República, que é in totum aprovada ou rejeitada, daí se seguindo os demais trâmites até à perfeição do ato de exceção. Esta proeminência funcional do Chefe de Estado não é uma proeminência na fase constitutiva da decisão da exceção, mas sim no momento anterior da preparação da decisão, pelo que no momento constitutivo as vontades dos três órgãos são rigorosamente homólogas. A ampla liberdade de que o Presidente da República beneficia até ao momento de solicitar, junto do Parlamento, a aprovação do ato de exceção contrasta bem com o carácter meramente optativo de que se reveste a sua intervenção na fase da decisão do estado de exceção.

Este paralelismo de vontades decisórias no estado de exceção permite qualificar tal ato, enquanto ato complexo ou pluri-subjetivo que é, como um ato pluri-subjetivo ou complexo simétrico, no qual o peso de cada uma dessas três vontades singulares é sempre o mesmo: o do exercício de uma liberdade de opção, cada uma no seu momento procedimental próprio, quanto à decretação ou não decretação do estado de exceção. Não há, em qualquer uma dessas vontades, a possibilidade do exercício de vontades normativamente mais intensas, como as que pudessem derivar da liberdade de conformação do conteúdo da declaração do estado de exceção. Esta, depois de iniciado o procedimento parlamentar, fica rigidamente fixada, só podendo ser contornada pela abertura de um novo procedimento.

III. A comparação da distribuição deste poder de decretação por estes três órgãos com a organização do poder do Estado que o sistema de governo português prevê suscita o interesse de saber se há ou não correlação entre a primeira micro-solução e esta outra macro-solução de exercício do poder político do Estado. Essa questão tem também um notório significado porque a História do Direito Constitucional Português nos mostra existir sempre uma linha evolutiva constante, ao arrepio dos múltiplos e diversos sistemas de governo que foram sendo experimentados.

Pode verificar-se que não existe uma identidade de pontos de vista entre a conceção global do poder público, plasmada no sistema de governo semipresidencial atípico ou imperfeito adotada pela CRP, e as opções concretas tomadas em sede de procedimento do estado de exceção. É certo que as intervenções decisórias no estado de exceção, ainda que temporalmente diversas, dizem respeito aos três órgãos em torno dos quais se erguem os três componentes do sistema do governo: o Chefe de Estado, o Parlamento e o Governo. Mas não é menos verdade que o trilateralismo que se verifica no procedimento de decretação do estado de exceção não corresponde exatamente ao peso específico de cada um desses órgãos no sistema de governo, no qual a componente presidencial se apresenta enfraquecida, sendo a governamental uma emanação da parlamentar. Pode assim dizer-se que o paralelismo entre o poder de decretação do estado de exceção e a concreta distribuição do poder do Estado por esses órgãos do sistema de governo português só é atingido no plano formal da convivência dos três órgãos politicamente ativos, sendo depois de discernir as suas posições específicas.

O reflexo, no micro-aspeto do regime de decretação do estado de exceção, da distribuição dos poderes segundo o sistema de governo, se é certo que corresponde, grosso modo, à ideia do sistema de um empenho coletivo, não deixa de ser significativo, por outro lado, à luz do princípio da separação e interdependência de poderes que a CRP consagra. Este “empenho coletivo” dos órgãos políticos de soberania vem a traduzir uma das modalidades mais densas de concretização do conceito de “interdependência de poderes”, precisamente através da participação de vários órgãos de soberania, segundo a respetiva e mútua corresponsabilização. Não são frequentes os momentos em que a CRP entende ser necessário contar com uma colaboração orgânico-funcional tão intensa e abrangente, decerto ilustrativa da importância que o estado de exceção desempenha no contexto constitucional. E até se pode afirmar que, por via desta colaboração, a decretação do estado de exceção é, no seio dos concretos poderes constitucionais, aquela que porventura surgirá como mais estritamente partilhada e, ao mesmo tempo, controlada. Esta conceção de partilha do poder de decretar o estado de exceção, em certo sentido, situa-se nos antípodas da conceção liberal da separação de poderes e marca, decisivamente, a evolução que neste domínio se verificou[16].

  • A execução do estado de exceção

I. O entendimento da LRESEE, na matéria a que chama de “execução do estado de exceção”, confirma, em primeiro lugar, o sentido administrativo das entidades a quem incumbe tal tarefa, tal como se desenha no articulado constitucional[17].

Do ponto de vista organizatório, a concretização da cláusula constitucional geral de execução administrativa do estado de exceção – que consiste na tomada das providências necessárias para a reposição da ordem constitucional atingida – é confiada ao Governo, assim guindado à posição de órgão supremo da respetiva “direção”.

II. No silêncio da LRESEE e da CRP, parece que tal incumbência de direção da execução do estado de exceção repousa no Conselho de Ministros.

É esta a instância governamental a quem compete praticar atos de idêntica natureza, como a aprovação de regulamentos de execução das leis em geral, além de possuir uma competência político-administrativa residual. A gravidade dos efeitos de execução não justificaria, por si só, solução diferente, esta sendo a que mais conforme está com o dramatismo da situação de crise, implicando a presença dos diversos membros do Governo, até porque quase todos eles se apresentam implicados nas consequências da execução administrativa de qualquer estado de exceção.

III. Do ponto de vista funcional, a direção da execução do estado de exceção atribuída ao Governo mede-se, por outro lado, pela faculdade que se lhe comete quanto à expressão do poder regulamentar de execução administrativa do estado de exceção, aliás, em exclusivo relativamente a outros eventuais focos de poder regulamentar.

O facto de ser cometida ao Governo a direção da execução do estado de exceção, na veste de Conselho de Ministros, determina que também seja esta a instância competente para a respetiva promanação.

IV. Quanto à respetiva forma, não se estabelece a necessidade de decreto regulamentar, que é a extrinsecação mais solene dos regulamentos governamentais, o que tem consequências em termos de participação presidencial no momento do respetivo controlo, através da mera assinatura: (i) nem essa é a forma para que aponta a LRESEE, que nada diz neste ponto; (ii) nem se trata de qualquer regulamento independente, porquanto se executa a declaração do estado de exceção.

A conclusão propende para considerar a resolução do Conselho de Ministros, a forma de ato jurídico-público residual, em face do carácter externo destes regulamentos, não olvidando que a instância deliberativa é o órgão executivo de tipo colegial.

V. Esse poder de dirigir a execução administrativa do estado de exceção não é protagonizado, porém, de um modo inteiramente livre, no plano formal. Incumbe ao Governo o estrito dever de informar o Presidente da República e a Assembleia da República, enquanto órgãos de decisão do estado de exceção, dos atos que tiverem sido tomados.

É um mero dever de informar que não concede aos outros órgãos de soberania, relativamente ao órgão governamental, qualquer parcela do poder de execução administrativa do estado de exceção.

No entanto, desempenha bem a função de habilitar os órgãos decisores da exceção a porem-lhe termo quando, por esses e outros elementos que forem disponibilizados, considerarem dever extinguir o estado de exceção ou, numa outra hipótese, introduzir-lhe modificações.

VI. A atribuição ao Governo do poder de dirigir a execução administrativa do estado de exceção – uma vez que, não sendo necessariamente de âmbito nacional, pode suscitar uma aplicação territorial parcelar das respetivas medidas – aconselha a perspetivar as competências que, na execução administrativa, podem ser conferidas a outras autoridades que, mais ou menos intensamente, partilhem do poder administrativo do Estado, no âmbito da sua Administração Direta.

Na execução administrativa do estado de exceção, para lá da direção que incumbe ao Governo, há o envolvimento de entidades administrativas regionais e locais, assim se diferenciando, para cada uma delas, entre o estado de sítio e o estado de emergência. Nesta relação que se estabelece entre o Governo, como órgão administrativo de cúpula na execução do estado de exceção, e outras entidades administrativas que com ele colaboram, encontram-se duas modalidades, territorialmente raciocinando, de execução administrativa do estado de exceção, as quais se juntam à uniforme execução nacional:

uma execução nacional (independentemente do tipo de território de aplicação);

uma execução regional (insular); e

uma execução local (continental).

VII. Esta descrição do poder excecional de administrar o Estado, em situação de estado de exceção de natureza regional e local, leva à identificação de três fenómenos bem distintos que ocorrem na organização administrativa:

1) a extensão da aplicação da Administração Militar Estadual Direta, através da substituição ou subordinação da administração civil, no âmbito regional e no âmbito local, com a atribuição da chefia da atividade administrativa aos respetivos comandos militares no estado de sítio;

2) a participação dos Representantes da República na execução regional do estado de emergência, órgãos da Administração Periférica Interna do Estado, com funções administrativas e políticas no âmbito regional, neste caso exercendo uma competência administrativa excecional.

É de realçar que estes fenómenos ligados à execução administrativa do estado de exceção estão longe de aparecerem como totais, somente se orientando, teleologicamente, segundo certas modalidades que pouco transformam a organização constitucional administrativa do tempo da normalidade.

Aquela que aparece com maior efetividade prende-se com o estado de sítio, pelo alargamento da componente da Administração Militar Direta do Estado a tarefas antes cometidas às estruturas administrativas civis da normalidade, seja em termos de substituição, seja em termos da sua subordinação àquelas. Esta é bem uma modificação de matiz estrutural. 

Nos restantes casos, porém, os fenómenos que se registam são mais ou menos de índole funcional, estando em causa a intensidade dos poderes administrativos exercidos, não o desaparecimento de estruturas administrativas da normalidade.

VIII. A execução administrativa do estado de exceção, nas conexões que se estabelecem com outras estruturas administrativas, não se realiza apenas no seio da Administração Direta do Estado e apresenta-se como do mesmo modo relevante no âmbito da Administração Estadual Indireta, em que se verifica um fenómeno de devolução de poderes. É a este respeito de mencionar a possibilidade conferida pela LRESEE, na pendência da situação de exceção, da nomeação de comissários governamentais para “…assegurar o funcionamento de institutos públicos, empresas públicas e nacionalizadas e outras empresas de vital importância nessas circunstâncias…” (art. 21º da LRESEE).

Esta situação relativa às entidades que se integram na Administração Indireta do Estado revela a existência de um fenómeno de índole orgânica, pelo qual se operam vicissitudes na titularidade dos respetivos órgãos. A nomeação de comissários governamentais nos períodos de exceção, conservando a competência administrativa normalmente exercida, é outra forma de defender os interesses do Estado, não através do exercício de um poder que externamente corrija atos de outrem, mas por intermédio da sua modelação interna, pela escolha de pessoas que se encontram afinadas pelo diapasão governamental, substituindo temporariamente os titulares ordinários dessas pessoas coletivas.

IX. Os efeitos organizatórios da execução administrativa do estado de exceção, em ligação com esta última vicissitude, acabam mesmo por transbordar da fronteira da Administração Pública e, por esta via, invadir zonas de atividade jurídico-privada.

É o que a letra da LRESEE afirma, ao considerar ainda admissível que estas nomeações transcendam o âmbito administrativo, respeitando às empresas que se considerem de “vital importância” (cfr. o art. 21º da LRESEE).

O critério legal desta peculiar intervenção governamental é não tanto o da natureza ou estrutura das entidades intervencionadas quanto o da atividade que exerçam, em vista das finalidades prosseguidas pelo estado de exceção, aí independentemente da distinção entre entidades públicas e privadas.

Vigora, neste contexto, uma conceção eminentemente prática, segundo a qual se pretende pôr ao serviço dos objetivos do estado de exceção aquelas atividades económicas que o possam favorecer no seu objetivo de preservação da ordem constitucional.

  • A extinção do estado de exceção

I. Assim como nasce e se modifica no plano material, territorial e temporal, o estado de exceção também morre, ocorrência que corresponde a uma séria preocupação regulativa para que esse momento aconteça de preferência num curto lapso de tempo, por força do princípio da sua vigência limitada.

Eis uma vicissitude que se plasma na extinção do estado de exceção, mas dela não há alusões constitucionais específicas[18].

II. É na LRESEE que devemos procurar uma resposta sobre o quadro possível das espécies extintivas do estado de exceção, nela se evidenciando três reconhecidas como tal, causas assim consideradas nominadas (cfr. o art. 13º da LRESEE):

1) a revogação presidencial por cessação dos pressupostos;

2) o decurso do prazo de aplicação; e

3) a recusa da confirmação parlamentar do ato de autorização.

III. Cabe, no entanto, perguntar se este quadro é completamente informativo a respeito das situações que originam a extinção do estado de exceção.

A observação dos dados de regime que se oferecem, partindo do esquema geral das possíveis causas de cessação da vigência da lei, força-nos a uma resposta negativa, havendo que considerar ainda três outras causas, estas inominadas:

4) a revogação do estado de exceção, por ato presidencial ou parlamentar, sem que esteja especificamente ligada à cessação dos pressupostos;

5) a substituição de um estado de exceção por outro estado de exceção menos gravoso; e

6) a revogação do estado de exceção por revogação superveniente do ato parlamentar de autorização ou de confirmação.

  • Os efeitos do estado de exceção

I. A decisão de decretação do estado de exceção – seja do estado de sítio, seja do estado de emergência – assume-se como discricionária, sendo delimitada pelo princípio da proporcionalidade, impondo a contenção, segundo os termos exigentes deste princípio fundamental de Direito Público[19], dos seguintes efeitos[20]:

– os efeitos materiais: na suspensão de direitos fundamentais;

– os efeitos organizatórios: na tomada das medidas administrativas apropriadas;

– os efeitos territoriais: na escolha da parcela do território nacional em que esses efeitos vão ter lugar; e

– os efeitos temporais: na duração desses mesmos efeitos. 

II. Os efeitos de índole material implicam a suspensão dos direitos, liberdades e garantias previstos na CRP.

Os direitos, liberdades e garantias, tal como a generalidade dos direitos fundamentais, destinam-se a ser exercidos no quotidiano da vida jurídica.

Por isso, não basta a sua consagração formal no plano das fontes e importa, correlativamente, que possuam eficácia, através da qual podem propiciar as vantagens que, por seu intermédio, são atribuídas aos respetivos titulares.

A alusão à “suspensão do exercício” implicita, obviamente, o congelamento dos poderes que os mesmos conferem aos respetivos sujeitos e que constituem um limite material da ação do poder público.

III. Os efeitos de cariz organizatório são muito mais limitados se comparados com os efeitos materiais. De um modo geral, permite-se o reforço das competências administrativas do Governo, órgão que chefia a execução do estado de exceção[21], dizendo-se que “A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência confere às autoridades competência para tomarem as providências necessárias e adequadas ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional” (art. 19º, nº 8, da CRP e art. 19º da LRESEE).

Vê-se que o estado de exceção provoca uma vicissitude de competência, alterando o esquema existente na distribuição dos poderes públicos, dotando determinadas entidades de poderes de que não gozam em circunstâncias ordinárias.

Isso explica-se pelas características que inerem ao exercício da função administrativa por parte do Governo, não só a respetiva continuidade funcional, mas também a sua colegialidade restrita, bem como ainda a disponibilidade sobre os meios materiais de uso da força – as polícias e as forças armadas.

IV. Relativamente às competências constitucionalmente estabelecidas dos órgãos de soberania que não sejam do foro administrativo, a orientação geral é a da respetiva intangibilidade, o mesmo se dizendo no tocante aos órgãos das Regiões Autónomas.

Com a decretação do estado de exceção, não se opera qualquer concentração de poderes no Governo, que vê unicamente os seus poderes administrativos reforçados, mantendo-se os restantes órgãos no exercício das suas competências ordinárias[22].

A utilidade desta limitação constitucional depende, assim, da consideração de três categorias de órgãos públicos, com soluções diferenciadas para cada um deles, com base num duplo critério do nível de consagração dessas instâncias, bem como do tipo de competência que exercem:

  • os órgãos de soberania e do governo próprio das regiões autónomas – verifica-se sempre a intangibilidade da respetiva competência administrativa, porque se trata da competência em geral destes órgãos constitucionais, expressamente abrangida pela cláusula de intangibilidade;
  • os outros órgãos constitucionais – podem verificar-se vicissitudes de competência administrativa, na configuração particular que se considerar necessária e adequada, mas apenas por força do regime constitucional do estado de exceção, num equilíbrio determinado, por um lado, pela sua não abrangência pela cláusula de intangibilidade e, por outro lado, pelo facto de as respetivas competências se encontrarem constitucionalizadas;
  • os órgãos não constitucionais – as vicissitudes de competência administrativa nem sequer dependem da situação de exceção constitucional, podendo essa intervenção fundar-se num qualquer outro título, ao não possuírem relevo constitucional, mas simplesmente legal.

O estado de exceção tem mesmo, em certos casos, o efeito contrário de congelar o exercício de outras competências constitucionais, as quais não podem ser exercidas enquanto se mantiver a respetiva vigência: a proibição da dissolução do Parlamento (cfr. o art. 172º, nº 1, da CRP) ou a proibição da revisão constitucional (cfr. o art. 289º da CRP).

  1. O controlo do estado de exceção

I. O cuidado que o legislador constitucional pôs na elaboração de um regime do estado de exceção que respeitasse os exigentes vetores do Estado de Direito, de que a CRP justamente se reclama, visualiza-se ainda no tipo de controlo que entende fazer incidir sobre os respetivos atos[23], de dois tipos:

o controlo político; e

o controlo judicial.

II. O controlo de natureza política compete à Assembleia da República, a quem se atribui o poder de fiscalizar, a posteriori, a execução do estado de exceção, com a aplicação da responsabilidade política – a demissão do Governo por aprovação de uma moção de censura – ou da responsabilidade penal – por indiciação através de comissões de fiscalização parlamentar (cfr. o art. 28º da LRESEE).

A CRP admite a existência, numa nítida transição entre o político e o jurídico, de um controlo de tipo parlamentar a respeito da aplicação do estado de exceção, competindo à Assembleia da República, no âmbito do rol das competências de fiscalização política que lhe cabem, “Apreciar a aplicação da declaração de estado de sítio ou do estado de emergência” [art. 162º, al. b), da CRP].

Não é esta a única competência de fiscalização que a CRP prevê relativamente a vários atos do Estado, mas esta levanta problemas específicos, que derivam não apenas dos particularismos do estado de exceção como da sempre incómoda conjugação entre os controlos parlamentar e jurisdicional dessa situação de crise.

            A LRESEE vem de certo modo completar a atribuição constitucional desta competência fiscalizatória parlamentar, ao mencionar o procedimento específico a adotar para se conferir a esse poder fiscalizatório uma força real e operativa (cfr. o art. 28º da LRESEE): situa-a sempre no âmbito a posteriori, depois de o estado de exceção ter sido extinto.

III. O controlo de natureza jurisdicional efetiva-se, essencialmente, pelo Tribunal Constitucional, a quem compete verificar a constitucionalidade dos atos de decretação e de execução do estado de exceção que tenham natureza normativa, incumbindo aos restantes tribunais verificar a legalidade de atos, normativos ou não, bem como a aplicação da responsabilidade penal e civil que decorra da sua prática.

Só a sujeição do estado de exceção a uma fiscalização jurisdicional é que determina uma plena jurisdicização adjetiva de tal fenómeno. Curiosamente, no meio do elevado cuidado que a CRP pôs em regular tudo o que dissesse respeito à dinâmica do estado de exceção, a grande deceção encontra-se nesta matéria, em que nenhuma palavra é dita a respeito das especificidades processuais que decerto este domínio imporia em sede de sindicabilidade jurisdicional.

Esta conclusão, todavia, não pode ser utilizada para colocar em dúvida a efetiva submissão do estado de exceção ao controlo da juridicidade que constitucionalmente se encontra gizado. Essa sujeição retira-se do facto de o estado de exceção, em nenhuma parte do texto da CRP, surgir como um setor “imune” ou de fora da limitação material e formal que o ordenamento jurídico realiza, nem sequer o permitindo o próprio princípio do Estado de Direito que insufla todo o ordenamento constitucional português, ao facultar a todos o acesso à proteção jurisdicional.

A ponderação da singularidade específica do estado de exceção acentua, por seu lado, essa conclusão: representando uma crise de consequências tão profundas no ordenamento jurídico-constitucional e, por reflexo, noutros conexos setores do ordenamento jurídico, não se compreenderia que se pudesse desenvolver à margem da fiscalização da respetiva juridicidade, embora se deva admitir, neste particular, de diferentes cambiantes na vinculação dos órgãos decisores e executores aos parâmetros jurídicos condicionadores do exercício do poder de exceção. 

É a este respeito que a LRESEE toma a opção fundamental, como já se analisou em sede de direitos fundamentais que não podem ser suspensos, ao consagrar o princípio geral do acesso à via judiciária, com vista à defesa da legalidade de exceção. Os termos por que tal princípio se encontra formulado, recordando o direito fundamental de acesso à justiça, situam-se da perspetiva dos cidadãos que se veem lesados nos seus direitos, liberdades e garantias por atos de exceção que infrinjam o ordenamento jurídico de exceção. É claro que se trata de um afloramento de um princípio geral de acesso à justiça para a manutenção da juridicidade de exceção, não aparecendo apenas como uma visão específica de proteção dos cidadãos.  

  1. Monismo ou dualismo no estado de exceção?

I. A dualidade de figuras de estado de exceção, tal como o mesmo se encontra gizado pelo Direito Constitucional Português, só é dogmaticamente aceitável se a uma distinção terminológica corresponder, na verdade, uma real diferenciação de regimes aplicáveis a cada uma dessas figuras.

Crê-se que essa diferença de regime existe[24]. A separação entre o estado de sítio e o estado de emergência vem, então, a cimentar-se numa divisão mista, sublinhando-se a presença simultânea nessa diferenciação de elementos quantitativos e de elementos qualitativos.

II. Simplesmente, ela é tão ténue que nunca deveria justificar, por si, a apresentação separada das duas figuras, pelo que se costuma optar pela sua apresentação conjunta[25].

Note-se que este não é o panorama do Direito Constitucional Comparado Europeu, que habitualmente acentua – até por razões históricas muito fortes – a multiplicação dos instrumentos do estado de exceção.

III. É no texto da CRP que se situam as diferenças menos sensíveis entre o estado de sítio e o estado de emergência. Os critérios que, segundo o texto constitucional, permitem fazer a dissociação regimental entre um e o outro são dois, um qualitativo e o outro quantitativo:

  • o critério qualitativo tem que ver com a maior gravidade dos pressupostos do estado de sítio por comparação com os pressupostos que originam o estado de emergência;
  • o critério quantitativo liga-se à circunstância de o estado de emergência, ao contrário do que sucede com o estado de sítio, só poder suspender alguns – e não todos os que seria possível, pelo menos em abstrato, suspender – direitos, liberdades e garantias.

IV. Na normação infraconstitucional, avança-se com outros relevantes critérios, além da densificação que se faz do primeiro dos critérios constitucionais enunciados.

A LRESEE explicita que os dois pressupostos da “agressão militar” e da “perturbação da ordem constitucional” originam o estado de sítio e o que pressuposto da “calamidade pública” dá azo ao estado de emergência (cfr., respetivamente, os arts. 8º e 9º da LRESEE).

O novo critério legal, que ultrapassa o que se estabelece na CRP, é o do grau de militarização das autoridades administrativas – com a substituição e a subordinação das autoridades civis pelas autoridades militares no estado de sítio e apenas a coadjuvação daquelas por estas no estado de emergência.


[1] Sobre o estado de exceção em geral na doutrina portuguesa, v. Marcelo Rebelo de Sousa, Direito Constitucional, Braga, 1979, pp. 174 e ss.; CARLOS BLANCO DE MORAIS, O estado de exceção, Lisboa, 1984, pp. 11 e ss.; António Damasceno Correia, Estado de sítio e estado de emergência em Democracia, Lisboa, 1989, pp. 111 e ss.; Jorge Bacelar Gouveia, Os direitos fundamentais atípicos, Lisboa, 1995, pp. 457 e ss., O estado de exceção no Direito Constitucional, Coimbra, 1998, I, pp. 557 e ss., e II, pp. 781 e ss., Manual de Direito Constitucional, II, 6ª ed., Coimbra, 2016, pp. 1019 e ss., e Direito da Segurança, Coimbra, 2018, pp. 327 e ss.; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, IV, 4ª, Coimbra, 2000, pp. 346 e ss.; J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6ª ed., Coimbra, 2003, pp. 1099 e ss.; PEDRO LOURENÇO DE SOUSA, O Direito Penal e a Defesa Nacional, Coimbra, 2008, pp. 73 e ss.

[2] Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, O estado de exceção…, II, pp. 1265 e ss.

[3] No estrangeiro, os contributos a respeito do estado de exceção são inúmeros, cumprindo referir os seguintes: Rafael Bielsa, El estado de necesidad en el Derecho Constitucional y Administrativo, Buenos Aires, 1957, pp. 56 e ss.; Geneviève Camus, L’état de nécessité en Démocratie, Paris, 1965, pp. 9 e ss.; Gerardo Morelli, La sospensione dei diritti fontamentali nello Stato Moderno, Milano, 1966, pp. 1 e ss.; Pietro Pinna, L’emergenza nell’ordinamento costituzionale italiano, Milano, 1988, pp. 1 e ss.; Francisco Fernández Segado, El estado de excepción en el Derecho Constitucional Español, Madrid, 1978, pp. 11 e ss.; Pedro Cruz Villalón, Estados excepcionales y suspensión de garantías, Madrid, 1984, pp. 13 e ss.; Leandro Despuy, Les derechos humanos y los estados de excepción, Cidade do México, 1999, pp. 1 e ss.; GIORGIO AGAMBEN, Homo sacer, Belo Horizonte, 2007, pp. 25 e ss., e O estado de exceção, Lisboa, 2010, pp. 11 e ss.; AAVV, Traité de Droit de la Police et de la Sécurité, Paris, 2014, pp. 301 e ss.

[4] Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, O estado de exceção…, II, pp. 1438 e ss.

[5] Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, O estado de exceção…, II, pp. 1446 e ss.

[6] Este é um caso que visivelmente se exemplifica com as normas que determinam a aceleração da produção dos atos de exceção ou que reforçam os mecanismos de controlo da legalidade excecional.

[7] Como escreve GIORGIO AGAMBEN (O estado de exceção, p. 45), “A teoria da necessidade não é mais, aqui, do que uma teoria da exceção (dispensatio), em virtude da qual um caso específico é subtraído à obrigação da observação da lei. A necessidade não é fonte de lei nem sequer propriamente suspende a lei; limita-se a subtrair um determinado caso à aplicação literal da norma”.

[8] Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, O estado de exceção…, I, pp. 557 e ss.

[9] Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, O estado de exceção…, I, pp. 608 e ss., e pp. 622 e ss.

[10] Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, O estado de exceção…, II, pp. 781 e ss.

[11] Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, O estado de exceção…, II, p. 808.

[12] Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, O estado de exceção…, II, pp. 809 e 810.

[13] Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, O estado de exceção…, II, p. 810.

[14] Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, O estado de exceção…, II, pp. 1025 e ss.

[15] ROGÉRIO EHRHARDT SOARES, Direito Administrativo, Coimbra, 1978, pp. 145 e ss.

[16] Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, O estado de exceção…, II, pp. 1125 e ss.

[17] Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, O estado de exceção…, II, pp. 1136 e ss.

[18] Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, O estado de exceção…, II, pp. 1159 e ss.

[19] É do seguinte teor o preceito constitucional que consagra o princípio da proporcionalidade, que é o art. 19º, nº 4, da CRP: “A opção pelo estado de sítio ou pelo estado de emergência, bem como as respetivas declaração e execução, devem respeitar o princípio da proporcionalidade e limitar-se, nomeadamente quanto às suas extensão e duração e aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional”.

[20] Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, O estado de exceção…, II, pp. 814 e ss.

[21] Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, O estado de exceção…, II, pp. 940 e ss.

[22] É bem explícita sobre esse ponto a CRP, no seu art. 19º, nº 7, ao prescrever que “A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência só pode alterar a normalidade constitucional nos termos previstos na Constituição e na lei, não podendo nomeadamente afetar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania e de governo próprio das regiões autónomas ou os direitos e imunidades dos respetivos titulares”.

[23] Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, O estado de exceção…, II, pp. 1173 e ss.

[24] Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, O estado de exceção…, I, pp. 710 e ss., e Estados de sítio e de emergência, in AAVV, Enciclopédia de Direito e Segurança (organização de JORGE BACELAR GOUVEIA e SOFIA SANTOS), Coimbra, 2015, pp. 195 e 196.

[25] Cfr. Jorge Bacelar Gouveia, O estado de exceção…, I, pp. 706 e ss.