Pedro Costa Gonçalves
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Advogado (sócio da Morais Leitão). Diretor da Revista de Contratos Públicos, Presidente do Instituto Jurídico da Comunicação e Diretor Executivo do CEDIPRE.
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– Breve comentário ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, ratificado pela Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março –
Nota prévia
O Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, que estabelece medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus – COVID 19, define, nesse âmbito, um regime excecional de contratação pública. O diploma governamental foi objeto de ratificação pela Assembleia da República, através da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março.
A Lei n.º 1-A/2020 mobiliza, neste âmbito, uma figura própria do Direito Administrativo, a ratificação, que identifica um ato jurídico que promove a sanação ou correção de um vício orgânico, formal ou procedimental que afeta um ato anterior. No caso do vício orgânico, a ratificação traduz-se em o órgão competente vir a assumir como seu um ato praticado por órgão incompetente. Cremos que é precisamente esta última (vício orgânico) a situação que explica a ratificação promovida pela Lei n.º 1-A/2020: a Assembleia da República assume como seu um ato legislativo produzido pelo Governo, por supor que este não dispunha de competência para produzir algumas das normas do diploma de 13 de março. Observe-se, porém, que quanto ao regime excecional de contratação pública constante do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, não nos parece que o Governo tenha excedido as suas competências legislativas, mesmo considerando o que se encontra disposto no n.º 8 do artigo 2.º. Seja como for, a lei parlamentar ratifica os efeitos desse diploma desde a data em que começaram a vigorar e assume como seu o conteúdo.
I – Sentido do regime excecional de contratação pública
O regime excecional da contratação pública aprovado pelo do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 tem o propósito de simplificar e acelerar os procedimentos de realização das compras públicas necessárias para responder à epidemia da doença do COVID-19: dentro do seu âmbito de aplicação, o diploma autoriza, genericamente, a adoção de procedimentos de ajuste direto (em vez de procedimentos abertos à concorrência), derroga limites legais quanto à repetição de ajustes diretos ao mesmo operador económico e, em certos casos, aumenta os limiares para adoção do ajuste direto simplificado. Por outro lado, ainda com o mesmo propósito, o regime excecional prescinde da publicitação como condição de eficácia dos contratos adjudicados (condicionamento aplicável em geral aos contratos celebrados na sequência de consulta prévia ou ajuste direto).
A natureza excecional do regime – que se traduz na derrogação absoluta do princípio da concorrência, bem como das regras que o concretizam, designadamente sobre a escolha de procedimentos de adjudicação – obriga as entidades adjudicantes abrangidas pelo diploma a serem especialmente cautelosas quanto aos seguintes aspetos: i) aplicação do novo regime excecional apenas nos casos em que se afigure inequívoco que o contrato a celebrar está abrangido por esse regime; ii) não desconsideração de exigências legais gerais que o novo regime não dispensa, por ex., em matéria de impedimentos dos operadores económicos (artigo 55.º, do CCP) e, não menos importante, de impedimentos dos decisores públicos (impedimentos e suspeições previstos nos artigos 69.º e 73.º do Código do Procedimento Administrativo, no Regime do Exercício de Funções por Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos e no Estatuto dos Eleitos Locais).
II – Artigo 1.º, n.º 2: âmbito objetivo do regime
Quanto ao âmbito objetivo do regime excecional de contratação pública vale o critério geral de aplicação do diploma. Nestes termos, são abrangidos por esse regime os procedimentos de adjudicação de contratos públicos cujas prestações (de serviços, de entrega ou de disponibilização de produtos ou de obras) se destinam a satisfazer necessidades específicas das entidades adjudicantes relacionadas com: a “prevenção”, a “contenção”, a “mitigação”, o “tratamento” de infeção epidemiológica por COVID-19, bem como à “reposição da normalidade em sequência da mesma”.
Para se enquadrar no regime excecional delineado pelo diploma, o contrato a celebrar terá, em primeiro lugar, de se subsumir numa das categorias típicas de contratos de compras públicas: aquisição de serviços, aquisição de bens móveis (produtos) ou execução de obras. Em segundo lugar, as prestações do contrato têm de responder, de forma direta, a uma necessidade a satisfazer pela entidade adjudicante em, pelo menos, um dos domínios que a lei indica: prevenção, contenção, mitigação ou tratamento da epidemia. Em qualquer destes domínios, está em pauta a realização de compras necessárias num quadro de combate à epidemia. Menos nítido se afigura o perímetro dos contratos a celebrar para “reposição da normalidade” na sequência da epidemia – infelizmente, ainda não chegou o momento que exija uma reflexão sobre os contratos que podem ser celebrados neste âmbito, pelo que não vamos ocupar-nos por agora dessa tarefa.
III – Artigo 1.º, n.º 3: âmbito subjetivo do regime
Nos termos do artigo 1.º, n.º 3, do diploma, “as medidas excecionais previstas nos capítulos II e III são aplicáveis às entidades do setor público empresarial e do setor público administrativo, bem como, com as necessárias adaptações, às autarquias locais”.
A referência inicial do preceito a “entidades do setor público empresarial e do setor público administrativo” parece inspirada no Regime Jurídico das Unidades de Saúde do SNS (Decreto-Lei n.º 18/2017, de 10 de fevereiro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 75/2019, de 30 de maio), que distingue entre unidades de saúde integradas no setor público administrativo (Hospitais do Setor Público Administrativo) e as unidades de saúde com a natureza de entidade pública empresarial e, por isso mesmo, integradas no setor público empresarial (Hospitais E.P.E.).
Reconhecendo que esta marca de origem poderia conduzir a considerar-se que as entidades referidas são apenas os Hospitais (institutos públicos ou E.P.E.), a verdade é que não existe nenhum sentido para essa limitação ou restrição do âmbito de aplicação, que, por ex., deixaria fora do âmbito de regime excecional, além do próprio Estado (Ministério da Saúde; Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil), as ARS ou o Instituto Nacional de Emergência Médica. Não faria sentido este resultado, razão pela qual nos parece que, nos termos da sua própria letra, o diploma se aplica a quaisquer entidades do setor público empresarial (v.g., Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, E.P.E.), bem como a todas as entidades estaduais do setor público administrativo – embora este conceito não tenha aplicação fora do setor da saúde, podemos ao mesmo reconduzir, para este efeito, o Estado, os institutos públicos e as universidades públicas.
Embora devessem claramente beneficiar do regime excecional de contratação pública – o qual, pela sua própria natureza, se deveria aplicar a todas as entidades adjudicantes em relação aos contratos relacionados com a epidemia –, temos dúvidas de que assim seja quanto às associações públicas profissionais (v.g., Ordem dos Médicos, Ordem dos Enfermeiros), bem como quanto às IPSS (quando se trate de entidades adjudicantes). No entanto, sobre este específico ponto ainda adiantaremos uma observação adicional na anotação ao artigo 2.º.
O regime excecional aplica-se, ainda, “com as necessárias adaptações” às autarquias locais: em matéria de contratação pública, a referência às “necessárias adaptações” justifica-se em razão do disposto do artigo 2.º, n.º 4, que, naturalmente, não se aplica às autarquias locais. Ainda neste âmbito, pode questionar-se se o regime não pode ser aplicado por entidades do universo autárquico, como associações de municípios ou empresas locais (entidades equiparadas a autarquias locais). Embora a letra não contemple estas entidades, parece-nos que não há nenhuma razão para as excluir.
Em síntese, as dúvidas que o diploma suscita quanto ao seu âmbito subjetivo de aplicação deveriam ser sanadas pelo legislador de uma forma simples e direta: aplicação do regime excecional de contratação pública a todas as entidades adjudicantes. O travão para excessos e eventuais abusos não deve ser delineado em função do tipo de entidade adjudicante, mas antes em função dos contratos abrangidos.
IV – Artigo 2.º, n.º 1: “para efeitos de escolha do procedimento de ajuste direto para a celebração de contratos de empreitada de obras públicas, de contratos de locação ou aquisição de bens móveis e de aquisição de serviços, independentemente da natureza da entidade adjudicante, aplica-se o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 24.º do Código dos Contratos Públicos (CCP), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, na sua redação atual, na medida do estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa”
Na presente disposição está em causa a utilização do procedimento de ajuste direto para a celebração dos contratos aí tipificados independentemente do respetivo valor. Trata-se de uma aplicação específica da escolha do ajuste direto ao abrigo de critérios materiais, podendo as entidades adjudicantes dirigir o convite a um só operador económico e com ele celebrar um dos contratos tipificados.
Este n.º 1 do artigo 2.º suscita, para esta análise, três questões essenciais:
i) uma, primeira, de natureza procedimental, correlacionada com os pressupostos de recurso ao ajuste direto e com os contratos abrangidos (isto é, o âmbito de aplicação objetivo do regime);
ii) outra quanto ao âmbito de aplicação subjetivo (entidades abrangidas);
iii) e uma terceira, de natureza substantiva, atinente aos requisitos materiais de recurso ao ajuste direto.
Relativamente à primeira e como já foi referido na anotação ao artigo 1.º, os pressupostos objetivos legitimantes de escolha do procedimento de ajuste direto são todos – mas apenas e tão só – os previstos no n.º 2 daquele artigo, ou seja, os que tenham por objeto a adoção de medidas destinadas: a) à prevenção, contenção, mitigação e tratamento de infeção epidemiológica por COVID-19; b) à reposição da normalidade em sequência da infeção epidemiológica por COVID-19.
Para ambos os casos, o critério de escolha do ajuste direto exige, por parte das entidades adjudicantes, a demonstração – uma demonstração pelo menos suficiente ou plausível – da existência de um nexo de causalidade substantivo: que o recurso ao ajuste direto tenha sempre por causa uma situação epidemiológica por COVID-19.
Por outro lado, e quanto ao âmbito objetivo de aplicação, como já se referiu, o recurso ao procedimento de ajuste direto só permite a celebração dos seguintes contratos:
a) de empreitada de obras públicas, na noção que lhe é dada pelo artigo 343.º do Código dos Contratos Públicos (CCP), conjugado com o ANEXO XI, relativo às atividades de construção civil;
b) de aquisição e de locação de bens móveis, na noção dos artigos 431.º e 437.º do CCP, respetivamente;
c) de aquisição de serviços, na definição do artigo 450.º do CCP.
Excluídos do regime ficam, pois, quaisquer outros contratos, incluindo os demais contratos disciplinados diretamente no CCP, como sucede com a concessão de obras públicas e a concessão de serviços. Note-se que poderão ocorrer possíveis situações de contratos que envolvam prestações plúrimas (p. ex., de serviços e de empreitadas ou deste com a aquisição de bens móveis). Em tais situações, relativamente à identificação do específico contrato a celebrar, as entidades adjudicantes deverão guiar-se pelos critérios gerais estabelecidos no artigo 32.º do CCP.
Quanto à segunda questão – âmbito de aplicação subjetivo (entidades abrangidas) –, o n.º 1 deste artigo 2.º, ao referir que o regime excecional se aplica “independentemente da natureza da entidade adjudicante”, sugere a irrelevância da personalidade jurídica pública ou privada das entidades adjudicantes. Este modo gramatical ou qualificativo utilizado pelo legislador, se lido isoladamente, está em plena consonância com os n.ºs 1 e 2 do artigo 2.º do CCP, abrangendo, pois, qualquer uma das entidades adjudicantes aí identificadas, incluindo todas as entidades que assumam a qualidade de entidade adjudicante por preenchimento cumulativo dos requisitos de qualificação como “organismos de direito público”.
Contudo, da conjugação deste n.º 1 com o n.º 3 do artigo 1.º já poderá resultar um âmbito de aplicação mais limitado, relativamente às entidades abrangidas, excluindo, por exemplo, as entidades do sector da economia social, designadamente as instituições particulares de solidariedade social. Ainda que a conjugação do articulado possa, no seu tom literal, sugerir isto mesmo, entendemos, desde logo à luz da presunção do legislador razoável, não ter sido essa a sua intenção. Efetivamente, perante um quadro epidemiológico que desafia, como nenhum outro, a colaboração de todas as entidades, em particular daquelas que, funcionalmente, se encontram mais próximas das entidades públicas (do Estado, das regiões autónomas, das autarquias locais), é de concluir que as entidades do sector da economia social, quando sejam entidades adjudicantes, também devem poder beneficiar deste regime.
Relativamente à terceira questão, o regime de escolha do ajuste direto com fundamento nos referidos critérios materiais, por força da remissão contida na parte final do n.º 1 do artigo 2.º – “aplica-se o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 24.º do Código dos Contratos Públicos…, na medida do estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa” –, não dispensa as entidades adjudicantes de, na decisão de contratar, fazerem menção aos requisitos cumulativos – substantivos e procedimentais – mencionados naquela alínea, nos termos da qual as entidades adjudicantes podem adotar o ajuste direto para a celebração de contratos de qualquer valor “na medida do estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, não possam ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos, e desde que as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”.
Ou seja, e para além dos requisitos que já resultam expressamente da norma em anotação – “na medida do estritamente necessário (proporcionalidade) e por motivos de urgência imperiosa” -, urge que as entidades adjudicantes, na fundamentação da decisão de contratar, demostrem, pelo menos de modo plausível, a verificação dos demais pressupostos necessários e de aplicação cumulativa para o recurso ao procedimento por ajuste direto por motivos de urgência imperiosa:
i) que os motivos de urgência imperiosa resultam de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante;
ii) que não são imputáveis, em caso algum, à entidade adjudicante; e
iii) que não possam ser cumpridos os prazos previstos para os procedimentos de concurso público.
O legislador não desonera, pois, as entidades adjudicantes do ónus de fundamentação. Não obstante, deve dizer-se que a situação de emergência e de calamidade provocada pela epidemia é, indiscutivelmente, um acontecimento imprevisível e, além disso, também, sem discussão, trata-se de um acontecimento não imputável à entidade adjudicante. Neste sentido, inclinamo-nos para considerar, aliás de acordo com o sentido primário do próprio regime excecional, que o contrato público adjudicado para satisfazer necessidades de prevenção ou de contenção da epidemia satisfaz, de plano, todos os requisitos exigidos pela alínea c) do n.º 1 do artigo 24.º do CCP. Neste contexto, a exigência de aplicação inscrita no preceito comentado convoca a exigência de uma fundamentação mais formal do que substantiva.
V – Artigo 2.º, n.º 2: “sem prejuízo do disposto no número anterior, no caso de se tratar de ajuste direto para a formação de um contrato de aquisição ou locação de bens móveis e de aquisição de serviços cujo preço contratual não seja superior a (euro) 20 000, é aplicável o disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 128.º do CCP”
Esta disposição estabelece um regime de ajuste direto simplificado especial e alargado, relativamente ao regime do artigo 128.º do CCP. O n.º 1 deste artigo prevê que no “caso de se tratar de ajuste direto para a formação de um contrato de aquisição ou locação de bens móveis e de aquisição de serviços cujo preço contratual não seja superior a € 5 000, ou no caso de empreitadas de obras públicas, a € 10 000, a adjudicação pode ser feita pelo órgão competente para a decisão de contratar, diretamente, sobre uma fatura ou um documento equivalente apresentado pela entidade convidada, com dispensa de tramitação eletrónica”.
No essencial, do n.º 2 do artigo 2.º do regime excecional de contratação pública resulta o seguinte:
- As entidades adjudicantes podem sempre adotar o ajuste direto ao abrigo de critérios materiais para a celebração de contratos de qualquer valor; de muito ou pouco valor, é irrelevante. Eis o que resulta da salvaguarda do primeiro segmento da norma, ao mencionar expressamente “Sem prejuízo do disposto no número anterior…”;
- Contudo, para contratos de aquisição ou locação de bens móveis ou de aquisição de serviços cujo preço contratual não seja superior a € 20 000, podem as entidades adjudicantes fazer uso do ajuste direto simplificado (no caso de empreitadas de obras públicas, continua a vigorar o regime geral do ajuste direto simplificado do n.º 1 do artigo 128.º do CCP, aplicando-se o limiar de € 10 000);
- Por força da remissão da parte final da norma, o procedimento de ajuste direto simplificado está dispensado de quaisquer outras formalidades exigidas pelo CCP, incluindo as relativas à celebração do contrato e à publicitação prevista no artigo 465.º. Ou seja, para produzirem efeitos jurídicos e financeiros, estes contratos encontram-se dispensados dos requisitos de publicitação e de eficácia do contrato estabelecidos no artigo 127.º do CCP;
- Em todo o caso, o legislador não exceciona o ajuste direto simplificado do regime excecional de contratação pública dos limites previstos no artigo 129.º do CCP. Trata-se de limites substantivos impostos aos próprios contratos: o prazo de vigência não pode ter duração superior a um ano a contar da decisão de adjudicação; não pode tal prazo ser prorrogado (sem prejuízo da existência de obrigações acessórias que tenham sido estabelecidas inequivocamente em favor da entidade adjudicante, tais como as de sigilo ou de garantia dos bens ou serviços adquiridos); e o preço contratual não é passível de revisão.
VI – Artigo 2.º, n.º 3: “aos procedimentos abrangidos pelo presente decreto-lei não se aplicam as limitações constantes dos n.os 2 a 5 do artigo 113.º CCP, estando as mesmas igualmente isentas do disposto no artigo 27.º-A do CCP”
Por este n.º 3 do artigo 2.º, o legislador, para todo e qualquer procedimento de contratação de empreitada de obras públicas, aquisição ou locação de bens móveis e aquisição de serviços, isenta – e bem – as entidades adjudicantes da verificação das prévias contratações com o operador económico. Ou seja, neutraliza integralmente o regime geral do CCP, previsto nos mencionados n.ºs 2 a 5 do artigo 113.º. Quer isto dizer que:
- Os contratos já outorgados e os que venham a ser outorgados com o mesmo operador económico não tem qualquer relevância para o “limite trienal”;
- As entidades adjudicantes não têm de verificar se, porventura, os operadores económicos a contratar já lhes fizerem (ou venham a fazer) fornecimentos gratuitos (liberalidades);
Para além disso, encontram-se também dispensadas da observância do regime do artigo 27.º-A do CCP, nos termos do qual deve adotar-se o procedimento de consulta prévia sempre que o recurso a mais de uma entidade seja possível e compatível com o fundamento invocado para a adoção deste procedimento. Isto é, o regime excecional de contratação pública – e igualmente bem – derroga a regra geral de preferência da consulta prévia em relação ao ajuste direto.
VII – Artigo 2.º, n.º 4: “as adjudicações feitas ao abrigo do presente regime excecional são comunicadas pelas entidades adjudicantes aos membros do Governo responsáveis pela área das finanças e pela respetiva área setorial e publicitadas no portal dos contratos públicos, garantindo o cumprimento dos princípios da publicidade e transparência da contratação”
Contempla-se nesta norma um dever específico de informação ao Governo, imposto a todas e a cada uma das entidades adjudicantes. Em geral, compreende-se a previsão de um tal dever. Contudo, deve entender-se que o mesmo não é extensivo às autarquias locais e entidades equiparadas, sem prejuízo, naturalmente, de estas entidades observarem os princípios da publicidade e transparência da contratação.
VIII – Artigo 2.º, n.º 5: “os contratos celebrados ao abrigo do presente regime excecional na sequência de ajuste direto, independentemente da sua redução ou não a escrito, podem produzir todos os seus efeitos logo após a adjudicação, sem prejuízo da respetiva publicitação, nos termos do n.º 1 do artigo 127.º do CCP”
Em termos práticos, o preceito vem derrogar o n.º 3 do artigo 127.º do CCP, que erige em condição de eficácia do contrato a publicitação da celebração de contrato na sequência de ajuste direto. A publicitação continua a ser exigida, mas o contrato pode produzir – por efeito direto da lei, que não tem de ser previsto nas peças do procedimento – todos os seus efeitos (jurídicos e financeiros) antes da publicitação e, mais do que isso, nos termos da lei, logo após a adjudicação. Quer isto dizer que o legislador considera neste caso que, mesmo quando deva ser reduzido a escrito, o contrato deve considerar-se juridicamente existente desde o momento da adjudicação; é por isso mesmo que pode produzir efeitos a partir desse momento. A solução da lei conduz a considerar-se a adjudicação, também nos contratos que devam ser reduzidos a escrito, como uma “declaração com um duplo sentido”: por um lado, como ato administrativo de conclusão do procedimento de adjudicação e, por outro lado, como uma declaração negocial de conclusão de um contrato (traduzindo como que a aceitação da proposta do concorrente).
IX – Artigo 2.º, n.º 6: “sempre que estiver em causa a garantia da disponibilização, por parte do operador económico, dos bens e serviços a que se refere o presente artigo, pode a entidade adjudicante efetuar adiantamentos do preço com dispensa dos pressupostos previstos no artigo 292.º do CCP, e os atos e contratos decorrentes podem produzir imediatamente todos os seus efeitos”
No essencial, esta disposição isenta igualmente as entidades adjudicantes do regime geral do CCP, relativo aos adiantamentos de preço, que consta do artigo 292.º do CCP. Este regime geral, como resulta imediatamente do intróito do seu n.º 1 – no “caso de contratos que impliquem o pagamento de um preço pelo contraente público, este pode efetuar adiantamentos de preço por conta de prestações a realizar ou de atos preparatórios ou acessórios das mesmas quando…”, pelos pressupostos a que submete a possibilidade de efetuar adiantamentos de preços, acaba por “converter” o adiantamento de preço numa faculdade excecional das entidades adjudicantes.
Ora, com habilitação no n.º 6 do artigo 2.º do regime excecional de contratação pública, as entidades adjudicantes passam a usufruir daquela faculdade em termos amplíssimos, podendo prever nas peças do procedimento a antecipação de pagamentos, com dispensa de todos os requisitos e formalidades estabelecidos naquele regime geral do CCP. E podem fazê-lo (ex vi legis) sem qualquer óbice quanto à respetiva eficácia, incluindo financeira, como resulta expressamente da parte final da norma do n.º 6 do artigo 2.º.
X – Artigo 2.º, n.º 7: “fica, igualmente, dispensada de autorização prévia a exceção para a aquisição centralizada de bens ou serviços abrangidos por um acordo-quadro para as entidades abrangidas pelo Sistema Nacional de Compras Públicas”
As entidades abrangidas pelo Sistema Nacional de Compras Públicas estão obrigadas a realizar as suas compras que sejam abrangidas por acordos-quadro celebrados por central de compras (v.g., central de compras do Ministério da Saúde gerida por Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, E.P.E.) no âmbito desses acordos-quadro (contratos públicos de aprovisionamento). Nos termos da lei geral, podem desonerar-se dessa obrigação mediante autorização prévia expressa do membro do Governo responsável pela área das finanças (cf. artigo 5.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 37/2007, de 19 de fevereiro). Pois bem, o preceito em análise dispensa a exigência de autorização prévia e, portanto, adota, a favor das entidades compradoras vinculadas, uma liberdade de desvinculação do acordo-quadro. É isto que nos parece deduzir-se do preceito, embora se reconheça que o mesmo teria sido bem mais claro se definisse que, no âmbito do regime excecional, a contratação centralizada deixa de ser obrigatória.
XI – Artigo 2.º, n.º 8: “aos contratos celebrados ao abrigo do presente decreto-lei, aplica-se o disposto no n.º 5 do artigo 45.º da Lei n.º 98/97, de 26 de agosto, na sua redação atual, podendo o contrato produzir todos os seus efeitos antes do visto ou da declaração de conformidade, designadamente quanto aos pagamentos a que derem causa”
O preceito estabelece um regime de permissão de produção de efeitos do contrato antes do visto ou declaração de conformidade do Tribunal de Contas. Ora, sucede que o artigo 6.º da Lei n.º 1-A/2020, isenta de fiscalização prévia do Tribunal de Contas os contratos abrangidos pelo Decreto-Lei n.º 10-A/2020, pelo que o preceito em análise, que pressupunha a submissão desses contratos ao Tribunal de Contas, perde sentido. Assim, os contratos abrangidos pelo diploma de 13 de março produzem todos os seus efeitos desde o momento da adjudicação, consoante se dispõe no artigo 2.º, n.º 5.
Note-se, todavia, que, nos termos do artigo 6.º, n.º 2, a Lei n.º 1-A/2020, os contratos abrangidos pelo Decreto-Lei n.º 10-A/2020 “devem ser remetidos ao Tribunal de Contas, para conhecimento, até 30 dias após a respetiva celebração”.
XII – Nota final sobre a continuação dos prazos de procedimentos de contratação pública
Por fim, já fora do âmbito do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, deixa-se uma nota sobre a questão de saber se os prazos dos procedimentos de adjudicação se encontram suspensos por força da Lei n.º 1-A/2020 – nos termos do artigo 7.º, n.º 1 deste diploma, aplica-se o regime das férias judiciais a determinados “atos processuais e procedimentais”, que, manifestamente, não abrangem “atos” dos procedimentos de contratação pública. Todavia, o n.º 6, alínea c), desse mesmo artigo 7.º, estabelece que o disposto nesse artigo (e, portanto, também no seu n.º 1) aplica-se ainda, com as necessárias adaptações, a “prazos administrativos e tributários que corram a favor de particulares” – a lei esclarece o que são prazos tributários que corram a favor de particulares (“dizem respeito apenas aos atos de interposição de impugnação judicial, reclamação graciosa, recurso hierárquico, ou outros procedimentos de idêntica natureza, bem como aos prazos para a prática de atos no âmbito dos mesmos procedimentos tributários”), mas não faz o mesmo em relação ao conceito de “prazos administrativos que corram a favor de particulares”. Pois bem, temos muita dificuldade em considerar que a generalidade dos prazos que correm nos procedimentos de adjudicação de contratos (v.g., prazos para retificar erros das peças do procedimento, para apresentação de propostas) se possam considerar prazos que correm a favor de particulares. Além disso, e em outra ordem de razões, a tramitação eletrónica dos procedimentos de contratação também apontaria no sentido de uma desnecessidade prática de suspensão dos prazos. Porventura, por analogia com o estabelecido no n.º 7 quanto aos prazos tributários, talvez se possa dizer que “prazos administrativos que corram a favor de particulares” são os que se referem à prática de atos que os particulares devem praticar para defesa e proteção, pela via administrativa, dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, mas, ainda assim, excluindo os prazos dessa natureza que correm em procedimentos de adjudicação de contratos. Quanto a este último ponto, e ainda em reforço da ideia de que o artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 não se aplica aos prazos dos procedimentos de adjudicação de contratos, parece de invocar o silêncio do legislador sobre um ponto determinante como esse, ainda mais quando se trata de uma lei que ratifica um diploma que institui um regime excecional de contratação pública (observe-se a propósito que o legislador “não se esqueceu” de disciplinar a não suspensão dos prazos relativos a processos de fiscalização prévia pendentes ou que devam ser remetidos ao Tribunal de Contas: cf. artigo 6.º, n.º 3).
Licínio Lopes Martins
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Membro da Direção do Centro de Estudos de Direito Público e Regulação (CEDIPRE), Membro da Direção do Instituto Jurídico da Comunicação e Diretor-adjunto da Revista de Contratos Públicos.
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