Miguel Lucas Pires

Professor Auxiliar da Universidade de Aveiro

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I – Âmbito de aplicação do regime

               De acordo com o n.º 3 do art.º 1.º “As medidas excecionais previstas nos capítulos II e III são aplicáveis às entidades do setor público empresarial e do setor público administrativo, bem como, com as necessárias adaptações, às autarquias locais.”.

               Ora, encontrando-se a contratação de trabalhadores a termo prevista no art.º 6.º, integrado no Capítulo III do diploma em análise, inequivocamente o âmbito de tal contratação é delimitado pelo aludido art.º 1.º, n.º 3.

               Procurando delimitar os conceitos de setor público empresarial, do setor público administrativo e autarquias locais, diremos que:

               a) o conceito de setor empresarial público compreende as empresas públicas estaduais, regionais e locais, assim como as entidades públicas empresariais (art.ºs 1.º a 5.º e 56.º a 61.º do Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de outubro);

               b) o conceito de autarquia local engloba as freguesias e os municípios (art.º 236.º, n.º 1, da Constituição);

               c) o conceito de setor público administrativo não encontra, na atualidade, consagração legal, sem prejuízo de se poder afirmar que nele reentram a administração direta do Estado, bem como a administração pública indireta (com exceção do já aludido setor empresarial público).

               Esta delimitação do âmbito de aplicação do diploma assume particular relevância, porquanto a legislação laboral aplicável a cada uma destas entidades não é coincidente:

               a) as relações jurídico-laborais constituídas pelas autarquias locais, pela administração direta do Estado, bem como a administração pública indireta (com exceção do já aludido setor empresarial público), regem-se pelo disposto na LTFP[1] (art.ºs 1.º e 2 .º desta Lei);

               b) as relações jurídico-laborais constituídas pelas entidades que integram o setor empresarial público sujeitam-se, no essencial, ao Código do Trabalho (art.º 17.º do Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de outubro).

II –Regime especial de contratação a termo

               O art.º 6.º, n.ºs 1 a 3, consente a contratação de trabalhadores a termo, por parte de todos os órgãos, organismos, serviços e demais entidades:

a) do Ministério da Saúde;

b) das forças e serviços de segurança;

c) da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil;

d) do Hospital das Forças Armadas (HFAR);

e) do Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos (LMPQF);

f) do Instituto de Ação Social das Forças Armadas, I. P. (IASFA, I. P.);

g) da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP); e

h) do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I. P. (INMLCF, I. P.).

No que concerne à duração destes contratos, o legislador optou pela modalidade do termo certo (em detrimento do termo incerto), fixando imperativamente a sua duração inicial em 4 meses (art.º 6.º, n.º 2), embora prorrogável por iguais períodos, mediante decisão dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e, consoante o caso, da saúde, da defesa nacional ou da justiça (art.º 6.º, n.º 4).

               Julgamos não ser esta a melhor opção, em face dos objetivos visados pelo próprio legislador, quais sejam a célere mobilização de efetivos para o combate e mitigação dos efeitos da pandemia Covid-19.

               De facto, tal prazo pode afigurar-se excessivamente curto relativamente a algumas das tarefas a contratar, para as quais o prazo de 4 meses pode revelar-se exíguo, sobretudo atendendo a que a razão de ser da contratação não se cinge ao combate à pandemia, alargando-se igualmente à reposição da normalidade social. Todavia, este obstáculo pode ser contornado pela possibilidade de renovação do vínculo, por iguais períodos.

               Inversamente e de forma ainda mais notória, a duração fixa inicial do vínculo (4 meses) pode revelar-se também excessiva.

Com efeito, sendo alguns trabalhadores contratados, por exemplo, apenas daqui a 2 meses, quando fosse expetável que a sua contratação se justificasse por apenas 1 mês, impõe-se a duração do respetivo vínculo por um período superior ao da necessidade a satisfazer.

Analogamente, em caso de renovação do contrato, por exemplo se, após os 4 meses iniciais, se comprova que o trabalhador é necessário apenas durante mais um mês, o seu vínculo permanecerá em vigor durante 3 meses sem que tal se justifique à luz dos motivos subjacentes à sua contratação.

               Melhor seria, a nosso ver, optado por uma de duas alternativas.

               Em primeiro lugar, utilizar a figura do termo incerto, vigorando os contratos de trabalho enquanto se mantivessem os pressupostos do art.º 1.º, n.º 2, permitindo assim, por um lado, que os contratos pudessem cessar em momento distinto (à medida que cada as tarefas desempenhadas pelos vários trabalhadores se tornassem supérfluas) e, por outro, que os vínculos não se prolongassem para além do período de verificação desses mesmos pressupostos.

               Esta alternativa apresenta, ainda, a vantagem não desprezível de dispensar as formalidades administrativas de renovação após o expirar do prazo de 4 meses de duração inicial.

               Outra alternativa seria, mantendo o recurso à contratação a termo certo, não impor qualquer limite (mínimo ou máximo de duração), incumbindo às entidades competentes, em função da duração expetável das diversas tarefas, a fixação de tal prazo.

Concedendo-se que a fixação legal de um prazo inicial se pode justificar pela não sobrecarga dos serviços na avaliação concreta do tempo previsível de duração do vínculo a constituir (que justifica, igualmente, a dispensa de formalidades para tal constituição), pelo menos seria aconselhável a não imposição de um prazo fixo para as eventuais renovações, porquanto, considerando que as mesmas dependem de uma decisão ministerial favorável, nesse mesmo momento se imporia a avaliação do período pelo qual se justificaria a extensão contratual.

               Uma última nota para a dispensa de formalidades (art.º 6.º, n.º 2, parte final), da qual decorre, salvo melhor opinião, a desnecessidade de redução a escrito (exigida pelos art.ºs 40.º e 58.º da LTFP e pelo art.º 141.º do Código do Trabalho), podendo discutir-se a imposição do dever de fundamentação, considerando a natureza excecional da contratação a termo, quer no domínio do emprego público (art.º 57.º, n.º 1, da LTFP), quer no privado (art.º 140.º, n.º 1, do Código do Trabalho).

Ainda que se admita a subsistência de tal dever, sempre se dirá que o motivo legitimador da celebração dos contratos previstos no diploma em análise é facilmente concretizável, por remissão para o n.º 2 do art.º 1.º do mesmo, isto é, a “prevenção, contenção, mitigação e tratamento de infeção epidemiológica por COVID -19, bem como à reposição da normalidade em sequência da mesma”.

III – A relevância da distinção entre os regimes da LTFP e do Código do Trabalho e a sua (eventual) aplicação subsidiária

               Não obstante o diploma em análise comportar um conjunto de regras aplicáveis aos contratos nele previstos, não o faz de forma exaustiva, deixando de lado um conjunto de vicissitudes da relação laboral.

               Cumpre, por isso, esclarecer qual o regime aplicável a tais vicissitudes, parecendo-nos que o mais natural será a aplicação subsidiária do regime geral dos contratos a termo, seja ele o vertido no Código do Trabalho (para o setor empresarial público), seja o plasmado na LTFP (para as demais entidades contratantes abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 10-A/2020), em tudo quanto não contrarie o expressamente disposto nesse mesmo diploma.

               Vejamos dois exemplos a respeito da mesma norma (art.º 6.º, n.º 4)

               Admite tal preceito a renovação do contrato a termo, por iguais períodos, da duração inicial de 4 meses.

Apesar de o preceito o não afirmar, entendemos que tal renovação apenas será legítima em caso de manutenção, na data da renovação, dos pressupostos iniciais que presidiram à sua celebração, ou seja, a prevenção, contenção, mitigação e tratamento de infeção epidemiológica por COVID -19, bem como à reposição da normalidade em sequência da mesma (art.º 1.º, n.º 2), conforme exigem, respetivamente, o art.º 61.º, n.º 2, da LTFP e o art.º 149.º, n.º 3, do Código do Trabalho.

               Pelo contrário, não fixando a mesma disposição o número de renovações possíveis, mas encontrando-se redigida no plural (renovações), a intenção do legislador foi a de permitir, pelo menos, duas renovações.

Ora, se o número máximo de renovações permitida pelo Código do Trabalho é de três (art.º 149.º, n.º 4), na LTFP (art.º 60.º, n.º 1) apenas se admitem duas renovações.

Assim sendo, parece que estes contratos apenas poderão ser renovados duas vezes, quando celebrados pela administração direta e indireta (com exceção do setor empresarial público), podendo sê-lo mais uma vez, quando outorgados por entidade do setor empresarial público.

A não ser que, por via interpretativa, se conclua que a redação do art.º 6.º, n.º 4, pretendeu afastar os limites de renovação legalmente previstos (quer no Código do Trabalho, quer na LTFP), consentindo a respetiva ultrapassagem, atendendo à excecionalidade dos fundamentos legitimadores da constituição destes vínculos.

               Um argumento neste sentido pode retirar-se da circunstância de o preceito em causa não estabelecer expressamente qualquer limite ao número de renovações possível.