A pandemia de COVID-19 compromete tudo e todos com cenários porventura inimagináveis, mas, sobretudo, com uma realidade que evolui a uma velocidade vertiginosa que, facilmente, desatualiza as medidas que, ponderando as circunstâncias conhecidas ao tempo em que são tomadas, são ultrapassadas pelas novas realidades.
Não há, assim, quem, com seriedade, se possa sentir esclarecido quanto às medidas a tomar na situação que vivemos.
Não é fácil criticar quem, nestas condições, procura dotar os cidadãos de meios adequados à proteção da sua saúde e, no que a este texto importa, aos seus direitos.
Não são tempos fáceis para se ser legislador e, convenhamos, nenhum de nós gostaria de estar na sua pele.
Há, no entanto, que ter em conta que, precisamente o facto de a realidade estar em rápida evolução e de, com todas as incertezas do momento atual, as entidades de saúde pública nos dotarem de previsões de crescimento da pandemia – que apesar de poderem ser otimistas (e espera-se que não) se revelam, já, preocupantes quanto ao tempo da duração desta situação de verdadeira “letargia social” forçada, mas, sobretudo, quanto ao estado em que cada um de nós encontrará as suas estruturas de apoio no final desse período de verdadeira “suspensão de exercício de direito de viver em sociedade”.
Esta evidência – que desde já se afirma – deveria, salvo melhor opinião e o respeito acima referido pela delicada posição de quem legisla, ter estado presente (dir-se-á, até, ter presidido) na conformação do conteúdo das normas aprovadas neste estado de crise.
Apesar de todas as incertezas – e muitas há – há a certeza de que teremos pela frente um longo período em que os cidadãos (nestes incluindo, obviamente, as partes e os seus mandatários) devem manter-se afastados de contactos diretos não essenciais.
A aprovação do DL 10-A/2020 de 13 de Março foi feita em condições que permitiam a perceção dessa realidade, dele constando, como especialmente relevantes na área que nos importa, os artigos 14º e 15º, integrados no capitulo VI, com o titulo “atos e diligências processuais e procedimentais”
Para melhor enquadramento desta exposição reproduzem-se os referidos artigos:
Artigo 14.º
Justo impedimento, justificação de faltas e adiamento de diligências processuais e procedimentais
1 — A declaração emitida por autoridade de saúde a favor de sujeito processual, parte, seus representantes ou mandatários, que ateste a necessidade de um período de isolamento destes por eventual risco de contágio do COVID -19 considera -se, para todos os efeitos, fundamento para a alegação do justo impedimento à prática de atos processuais e procedimentais que devam ser praticados presencialmente no âmbito de processos, procedimentos, atos e diligências que corram os seus termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios, cartórios notariais, conservatórias, serviços e entidades administrativas, no âmbito de procedimentos contraordenacionais, respetivos atos e diligências e no âmbito de procedimentos, atos e diligências regulados pelo Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto -Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, e demais legislação administrativa.
2 — A declaração referida no número anterior constitui, igualmente, fundamento de justificação de não comparecimento em qualquer diligência processual ou procedimental, bem como do seu adiamento, no âmbito dos processos e procedimentos referidos no número anterior.
3 — O disposto nos números anteriores é, com as devidas adaptações, aplicável aos demais intervenientes processuais ou procedimentais, ainda que meramente acidentais.
Artigo 15.º
Encerramento de instalações
1 — No caso de encerramento de instalações onde devam ser praticados atos processuais ou procedimentais no âmbito de processos e procedimentos referidos no n.º 1 do artigo anterior, ou de suspensão de atendimento presencial nessas instalações, por decisão de autoridade pública com fundamento no risco de contágio do COVID -19, considera -se suspenso o prazo para a prática do ato processual ou procedimental em causa a partir do dia do encerramento ou da suspensão do atendimento.
2 — A suspensão estabelecida no número anterior cessa com a declaração da autoridade pública de reabertura das instalações.
3 — O disposto no artigo anterior é aplicável aos cidadãos, sujeitos processuais, partes, seus representantes ou mandatários que residam ou trabalhem nos municípios em que se verifique o encerramento de instalações ou a suspensão do atendimento presencial, ainda que os atos e diligências processuais ou procedimentais devam ser praticados em município diverso.
Destes artigos resulta regulada e classificada como situação de justo impedimento “a necessidade de um período de isolamento por eventual risco de contágio de COVID-19 de sujeito processual, parte seus representantes ou mandatários, desde que declarada por autoridade de saúde pública competente.
Tal situação deve ser alegada (naturalmente, dir-se-á), sendo, no entanto, a previsão do legislador restrita à prática de atos processuais e procedimentais que devam ser praticados presencialmente (o sublinhado é nosso) no âmbito dos processos, constituindo essa declaração fundamento da justificação de não comparecimento a qualquer diligência processual, ainda que o “impedido” seja um mero interveniente acidental.
Prossegue o artigo 15º do DL que, no caso de encerramento das instalações onde deve ser praticado o ato em causa, ou suspenso o atendimento presencial, por decisão da autoridade pública com o mesmo fundamento (risco de contágio por COVID-19) considera-se suspenso o prazo para a prática de ato processual (ou procedimento em causa) a partir do dia do encerramento ou suspensão do atendimento.
Nos termos do nº 2 deste arrigo, essa suspensão de prazo cessa com a declaração da autoridade pública da reabertura das instalações.
Estas as medidas que o Governo da República entendeu adequadas perante a situação que vivemos.
O que dizer dos mesmos?
Desde logo que são extremamente redutoras da realidade, tratando, de forma que nem sequer é nova ou inovadora uma pequeniníssima parte do problema, deixando de fora a questão nova fundamental resultante da auto-imposição de isolamento social que os cidadãos devem adotar.
Na verdade, não podendo deixar de se considerar positiva a expressa integração da situação de declaração de isolamento decretado por autoridade pública como justo impedimento, não se consegue descortinar nesta declaração muito mais do que uma concretização do que dispõe (e dispunha já) o artigo 140º do CPC., nos termos do qual se considera justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários que obste à prática atempada do ato, competindo à parte alega-lo, oferecendo logo a respetiva prova.
Ou seja, o que o Governo agora “determina” já pré-existia, desde que seguido um critério de normalidade que subjaz a uma boa decisão judicial em matéria de apreciação de um justo impedimento …
Quase desnecessário, por isso.
Talvez tivesse valido a pena alargar a todos os intervenientes esse justo impedimento para a prática de ato processual elevando, assim, à categoria de “facto notório” essa impossibilidade e, por isso, de conhecimento oficioso, sem necessidade de alegação – e prova, por documento.
Isto para não falar da complexidade de obtenção de uma declaração dessas para muitos mandatários, atendendo ao volume de trabalho em que estão envolvidas as autoridades públicas.
Afinal, a situação não é inovadora.
Mas, infelizmente, também não é nova, devendo ter-se presente que, em data anterior, por apelo conjunto dos Senhores Presidentes do Tribunal Judicial da Comarca do Porto e do Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados (restrito, por isso, aos Juízos da Comarca) e posteriormente (mas antes do Dec. Lei ser publicado) pela recomendação do Conselho Superior de Magistratura, já as partes – através dos seu mandatários – e os próprios Magistrados Judiciais, por sua iniciativa, estavam a pedir o adiamento das diligências agendadas para os termos mais próprios ou a decidir esse aditamento.
Nada de novo, assim, no essencial da proposta inserta no artigo 14º do Dec. Lei 10-A/2020 de 13 de Março.
Também no que ao artigo 15º diz respeito, não se pode dizer que nele se encontra algo de inovador, podendo, até gerar equívocos graves para as partes, porquanto sugere a suspensão do prazo (o sublinhado é nosso) para a prática de um ato processual, devendo este ato ser considerado apenas o que deve ser praticado presencialmente, uma vez que apenas a este se refere o nº 1 do artigo 14º, para o qual esta disposição expressamente remete.
Ora, para além de não se entender muito bem a que “prazo” se refere, poderemos admitir estar-se perante a prática de um ato presencial em cumprimento de um despacho para o efeito, sendo, nesse despacho, concedido o prazo agora suspenso.
Ora convenhamos, não seria, apenas de ter em conta o que já dispõe o nº 2 do artigo 138º do CPC (já pré-existente ao Dec. Lei em causa) no sentido de que “quando a prática do ato processual terminar em dia em que os tribunais estiverem encerrados, transfere-se para o dia seguinte”, reconhecendo que, apesar de tudo, esta disposição tem a vantagem de inequivocamente, se referir aos atos que devem ser praticados por meio eletrónico, necessariamente não presenciais, e não apenas a estes, como sucede com o Decreto-Lei 10-A/2020.
Como ficam, então, as questões respeitantes a todo conjunto de atos não presenciais, manifestamente esquecidos pelo legislador, apesar de constituírem, hoje, uma grande fatia da atividade nos tribunais, cuja relevância, não só pode pela quantidade mas pela qualidade desses atos, não podia deixar de ter merecido consideração por parte do legislador?
Ter-se-ia imposto – e vai impor-se, naturalmente, já a reboque dos acontecimentos – que um legislador prudente e avisado – (e este não foi) tivesse decretado imediata suspensão de todos os prazos processuais, prevendo expressamente, que essa suspensão inutilizaria a parte do prazo já decorrido até esse momento, impedindo qualquer dúvida interpretativa do sentido da determinação que porventura pudesse resultar do nº 2 do artigo 275º do CPC, quanto a esta questão, relevante e não despicienda.
Na verdade, só a suspensão imediata de todos os prazos processuais garantirá às partes e aos seus mandatários que, em tempo de reconhecida necessidade de isolamento social, esta (necessidade) possa ser satisfeita, não obrigando as partes ou os seus mandatários a praticar atos, com cominações graves para a sua falta, como, por exemplo, uma contestação, durante este período.
Como é possível ignorar – e o legislador fê-lo de forma ostensiva e lamentável – que foi pedido a todos os cidadãos que, voluntariamente se isolem, evitando deslocações e contactos sociais que não sejam inadiáveis?
Como é possível pedir às partes e aos profissionais do foro que evitem deslocações – ainda que seja ao escritório – ou contactos pessoais e se lhes exija que deem cumprimento a prazos processuais cuja inobservância pode ter consequências de gravidade irreversível?
Como se compreende que, nestas circunstâncias, o Governo não tenha pensado nisso?
Não se compreende. E é bom que o faça, acautelando eventualmente situações totalmente passadas, aplicando-se a prazos entretanto findos e, por isso, insuscetíveis de, em condições normais, ser suspensos.
Sob pena de poder gerar situações de profunda injustiça e de lesão séria dos direitos dos cidadãos.
Talvez valha a pena deixar última palavra para os prazos de direito substantivo (tal como a prescrição ou a caducidade) que, do mesmo modo devem ser salvaguardados por uma iniciativa legislativa que, essa sim, terá de ser verdadeiramente inovadora.
Para grandes males …. grandes remédios.
Em tempo: com esperança de que este texto estivesse já desatualizado face a alteração legislativa consultei o D.R., tendo verificado que, supervenientemente ao início a sua elaboração foi publicada, apenas, a Portaria 76-A/2020 de 18 de Março, relativa a “Silvicultura sustentável e “Proteção e Reabilitação de Povoamento Florestais …
Seguramente interessante, mas não relevante para a matéria sob apreciação.
Ainda não foi desta.
Vamos ter esperança de que o Legislador esteja mais atento à realidade, deixando de estar numa posição que parece traduzir um dos aspetos mais negativos da postura de “isolamento social” tão aconselhada…
Pedro Pinheiro Torres
Advogado especialista em Direito Processual Civil.
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