João Leal Amado

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.


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1. A Lei n.º 14/2018, de 19 de março

          Colocava-se, há muito, a questão de saber se ao trabalhador assistia ou não um direito de oposição à transmissão do seu contrato de trabalho,em caso de transmissão para outrem da empresa em que aquele labora. É que, tradicionalmente, o sistema jurídico concentrava esforços na salvaguarda do emprego do trabalhador, garantindo que a transmissão da empresa não implicava a extinção do respetivo contrato. Verificada a transmissão, o trabalhador conservava o emprego, ainda que a identidade do seu empregador mudasse. E, deve reconhecer-se, é com isto que, na maior parte dos casos, o trabalhador se preocupa: manter o emprego, independentemente da identidade do empregador. Porém, surgiu a dúvida: o trabalhador não tem, decerto, o poder de autorizar ou de vetar a transmissão da empresa ou estabelecimento, pois esta é uma faculdade empresarial, inerente ao princípio da livre iniciativa económica; mas não gozará o trabalhador do direito de se opor à transferência do seu contrato para o adquirente da empresa?

          A questão começou por ser suscitada no plano do direito europeu e vinha gerando, entre nós, um intenso debate doutrinal. Ora, com a Lei n.º 14/2018, que alterou o regime jurídico aplicável à transmissão de empresa ou estabelecimento, muita coisa mudou. E mudou, sobretudo, no que tange ao direito de oposição do trabalhador. Passou então a ler-se no n.º 1 do novo art. 286.º-A do Código do Trabalho: «O trabalhador pode exercer o direito de oposição à transmissão da posição do empregador no seu contrato de trabalho em caso de transmissão, cessão ou reversão de empresa ou estabelecimento, ou de parte de empresa ou estabelecimento que constitua uma unidade económica, nos termos dos n.º 1 ou 2 do artigo 285.º, quando aquela possa causar-lhe prejuízo sério, nomeadamente por manifesta falta de solvabilidade ou situação financeira difícil do adquirente ou, ainda, se a política de organização do trabalho deste não lhe merecer confiança». E o n.º 2 do mesmo preceito acrescenta: «A oposição do trabalhador prevista no número anterior obsta à transmissão da posição do empregador no seu contrato de trabalho, nos termos dos n.º 1 ou 2 do artigo 285.º, mantendo-se o vínculo ao transmitente».

2. Dualidade de fundamentos da oposição?

          Através deste novo art. 286.º-A, o nosso legislador veio, finalmente, reconhecer expressis verbis ao trabalhador o direito de oposição, na sua mais pujante dimensão: o trabalhador tem agora, inequivocamente, o direito de manifestar a sua oposição à transmissão da posição do empregador – mantendo-se, em princípio, o vínculo à entidade transmitente –, sendo que esse direito poderá assentar em um de dois fundamentos: ou porque a transmissão do estabelecimento se mostre suscetível de causar prejuízo sério ao trabalhador (desde logo, mas não apenas, em virtude de manifesta falta de solvabilidade ou situação financeira difícil do adquirente), ou então porque, independentemente de qualquer prejuízo sério, a política de organização do trabalho do adquirente não merece confiança ao trabalhador.

          É óbvio que estamos aqui perante fundamentos de índole bem distinta: num caso, o do prejuízo sério, trata-se de um fundamento racional, demonstrável e externamente sindicável, suscetível de prova e de contraprova, que poderá ser apreciado pelo tribunal, em função de dados objetivos que lhe permitam formular um juízo de prognose sobre se a transmissão poderia ou não causar ao trabalhador o aludido “prejuízo sério”; no outro caso, o da ausência de confiança, trata-se de um sentimento, de uma crença, de algo emocional e do foro puramente interno do trabalhador, algo insuscetível, enquanto tal, de ser demonstrado ou desmentido em tribunal, de ser comprovado pelo trabalhador ou de ser contestado pelo empregador.

          Crê-se que nem seria necessário o legislador buscar fundamentos distintos para o exercício deste direito de oposição por parte do trabalhador: a transmissão da empresa e a consequente mudança de entidade empregadora do trabalhador, por si só, já bastariam para que este pudesse exercer o seu direito de oposição a trabalhar às ordens de uma entidade com a qual não celebrou qualquer contrato de trabalho. Vale dizer, a tutela da dignidade do trabalhador, da sua autonomia, da sua liberdade contratual negativa, tudo aponta para que o trabalhador possa opor-se, possa dizer não, apenas e tão só porque não, sem necessidade de fundamentar a sua decisão – à imagem do que sucede no ordenamento germânico, ao abrigo do disposto no §613a do BGB. Assim sendo, creio que a melhor redação para o novo n.º 1 do art. 286.º-A bem poderia ser mais curta e sóbria, limitando-se a algo deste género: «O trabalhador pode exercer o direito de oposição à transmissão da posição do empregador no seu contrato de trabalho em caso de transmissão, cessão ou reversão de empresa ou estabelecimento, ou de parte de empresa ou estabelecimento que constitua uma unidade económica, nos termos dos n.º 1 ou 2 do artigo 285.º». Mas o nosso legislador, fiel às suas características inatas, revelou-se mais prolixo e palavroso, determinando que o trabalhador deverá comunicar ao empregador transmitente as razões da sua oposição.

          Significa isto que a teleologia do direito de oposição consagrado na nossa lei é distinta da acolhida no ordenamento germânico? Não creio. Parece-me que se trata, apenas, de uma distinta forma de legislar, mais rigorosa a germânica e mais palavrosa a lusitana; mas, no fim do dia, o resultado não é muito distinto, ou seja, de algum modo o nosso legislador acabou por “escrever direito por linhas tortas”, concedendo ao trabalhador o direito de oposição à transmissão da posição de empregador no seu contrato de trabalho, seja porque esta é suscetível de lhe causar prejuízo sério, seja porque, independentemente de tal prejuízo, a política de organização de trabalho do adquirente não lhe merece confiança.

          Este ponto carece de ser enfatizado, para evitar aquilo que constituiria um inequívoco estiolamento do direito de oposição: segundo a lei, o trabalhador pode exercer o direito de oposição se a política de organização de trabalho do adquirente não lhe merecer confiança; ora, só o trabalhador sabe se a política de pessoal do adquirente lhe merece confiança ou desconfiança, só ele e mais ninguém (muito menos o tribunal) experimenta essa sensação e vivencia esse sentimento; a lei não obriga, portanto, o trabalhador a invocar e a provar quaisquer factos que, externamente ponderados, possam fundamentar ou justificar a ausência de confiança do trabalhador no adquirente; a lei basta-se, e muito bem, com a circunstância de o trabalhador, independentemente da causa, não sentir confiança no adquirente da empresa – note-se: um estranho para o trabalhador, com o qual ele não celebrou qualquer contrato – e não pretender, por isso, passar a trabalhar sob a sua autoridade.

          Ou seja, e ainda que utilizando uma técnica legislativa rudimentar, a nossa lei conseguiu alcançar o resultado final que importava alcançar: o trabalhador pode dizer não à transmissão da sua posição contratual para o adquirente/transmissário da unidade económica; e pode fazê-lo sem ter que invocar fundamentos exigentes e suscetíveis de controlo jurisdicional (como será a alegação e prova da possibilidade de “prejuízo sério” para si emergente da transmissão); pode fazê-lo, apenas, invocando não sentir confiança no adquirente/transmissário, pessoa com a qual, reitere-se, o trabalhador não celebrou qualquer contrato de trabalho; pode, assim, dizer não porque não. E, assim sendo, assim está bem. Porque, justamente, ele é um trabalhador, não um servo, alguém sem palavra a dizer quanto à entidade empregadora para a qual presta serviços.       

3. Progresso civilizacional!

          Sem prejuízo das dúvidas interpretativas que suscita, a nova lei merece aplauso, pelo salto civilizacional que representou, ao reconhecer, após décadas de discussão doutrinal e jurisprudencial, que o trabalhador pode opor-se à transmissão automática da sua posição contratual, na hipótese de se verificar uma transmissão da empresa no seio da qual vem laborando. Na verdade, com este diploma o ordenamento evoluiu e, dir-se-ia, afinou a sua sensibilidade: de uma tutela centrada na salvaguarda da continuidade da relação de trabalho, em que a questão da identidade do empregador era, de algum modo, subalternizada, a lei transitou para um outro patamar, no qual a continuidade do emprego e a identidade do empregador são, ambas, valorizadas. Assim, o trabalhador não vê a manutenção do seu contrato ser posta em xeque pela transmissão da empresa, mas agora ele passa a dispor da faculdade de se opor, conservando o vínculo contratual com a sua entidade empregadora – o transmitente.

          Isto porque, afinal, o que aqui sobretudo está em causa é mesmo uma questão de princípio, que se traduz na necessidade de tratar o trabalhador como uma pessoa e não como uma coisa, como um sujeito e não como um mero objeto. Porque, justamente, se o estado de alma do trabalhador vai no sentido de não querer trabalhar para um terceiro com o qual não assumiu qualquer compromisso contratual, a Ordem Jurídica de um país que não equipare o trabalho a mercadoria nem reduza o trabalhador à condição de objeto de negócios deve reconhecer-lhe esse direito.

4. Retrocesso civilizacional?

          Acontece, todavia, que, talvez fruto da deficiente técnica legislativa adotada pela lei de 2018, aquilo que parecia representar um salto em frente, um avanço civilizacional, veio, afinal, tendo em conta alguma doutrina produzida em torno daquele diploma, a constituir um autêntico retrocesso. Isto porque, segundo essa doutrina, a nova lei teria vindo sim consagrar o direito de oposição do trabalhador, em caso de transmissão de estabelecimento, mas isto apenas na eventualidade de a mudança de empregador lhe poder causar prejuízo sério.

          Ou seja, segundo esta leitura da nova lei, esta teria consagrado o direito de oposição do trabalhador em moldes extremamente limitados. Em bom rigor, o legislador não teria atribuído tal direito ao trabalhador em caso de transmissão de unidade económica, em nome da sua autonomia, dignidade e liberdade contratual negativa. O legislador teria, apenas, consagrado tal direito na hipótese, quiçá remota, de o trabalhador alegar e provar que a transmissão do seu contrato para o adquirente da empresa lhe poderia causar um “prejuízo sério”. Vale dizer, seria este “prejuízo sério” (rectius, a sua previsibilidade, a idoneidade da transmissão para o provocar) que legitimaria a oposição do trabalhador, e não propriamente a mudança de entidade empregadora e a legítima falta de vontade do trabalhador de se manter vinculado a alguém com quem nunca celebrou contrato…

          Pela minha parte, sempre me opus a esta leitura do novo diploma. Nesta matéria, os valores primaciais em jogo reclamam, e a letra da lei autoriza ou impõe mesmo, uma outra leitura: uma leitura que dê a palavra ao trabalhador, quando houver uma transmissão da unidade económica em que labora, no sentido de este, livremente, dizer se pretende ou não passar a trabalhar para outra entidade, uma entidade com a qual não celebrou contrato mas que agora, por força de negócios transmissivos incidentes sobre a unidade económica em causa, surge como sua potencial entidade empregadora. O trabalhador deve ter o direito de dizer não! E não porquê? Porque não! E tal é permitido, ainda que em moldes algo enviesados, pela atual lei, ao indicar que o trabalhador poderá invocar a ausência de confiança no adquirente para exercer o seu direito de oposição.

5. O anteprojeto “Trabalho XXI”: clarificador, mas regressivo!

          Aqui chegados, e quanto a este ponto, crê-se que o anteprojeto é cristalino: de um lado, clarifica, esclarece as dúvidas e divergências interpretativas geradas pela atual redação do art. 286.º-A – o que, convenhamos, tem um lado positivo. Com efeito, a nova redação proposta para o n.º 2 desse preceito é a seguinte: «O direito de oposição deve ser feito por escrito e só é eficaz se existir fundamento relevante, nomeadamente por manifesta falta de solvabilidade ou situação financeira difícil do transmissário ou, ainda, objetiva falta de confiança do trabalhador no transmissário».

          Eis o lado negativo da proposta: como decorre do teor da norma em causa, a transmissão da empresa, por si só, não constitui fundamento bastante para que o trabalhador disponha do direito de se opor à transmissão do seu contrato para um novo empregador. Não basta não querer passar a trabalhar para outrem, não basta não confiar nesse outrem. O direito de oposição só existirá se para tal existir “fundamento relevante”, isto é, algo que possa causar um prejuízo sério ao trabalhador (por exemplo, a falta de solvabilidade do transmissário) ou algo de que se extraiam motivos objetivos para que o trabalhador não confie no transmissário (a mencionada, e algo nebulosa, “objetiva falta de confiança”). Não se verificando um tal “fundamento relevante”, o trabalhador não disporá, afinal, de qualquer direito de oposição à transmissão da sua posição contratual para o adquirente da empresa. O que, convenhamos, atesta como este anteprojeto, mais do que centrar-se na tutela da pessoa que trabalha e das suas liberdades fundamentais – designadamente a liberdade contratual, no que à seleção da pessoa para quem se trabalha diz respeito –, cuida, sobretudo, da empresa, da sua funcionalidade, daquilo que se mostre mais conveniente para a mesma, ainda que correndo o risco de tratar o trabalhador como uma peça de mobília, que acompanha a empresa sempre que esta seja objeto de alienação…