
Pedro Amauri de Oliveira
Doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (2024).
Visiting scholar na Columbia Law School, Columbia University – NYC (2022).
Consulte a sua obra neste link.
Mais uma vez o legislador interveio em matéria de transmissão de unidade económica.[1] Entre as alterações enunciadas no anteprojecto de Lei da reforma da legislação laboral de Julho de 2025, ao regime transmissivo constante dos artigos 285.º e seguintes do Código do Trabalho, está o direito de oposição do trabalhador, mais concretamente no artigo 286.º-A, sobre o qual nos iremos centrar.[2]
À luz da proposta legislativa, o n.º 1 do artigo 286.º-A passa a ter a seguinte redacção: «o trabalhador pode opor-se à transmissão da posição do empregador no seu contrato de trabalho em caso de transmissão, cessão ou reversão de parte da empresa ou estabelecimento, que constitua uma unidade económica, nos termos dos n.ºs 1, 2 ou 10 do artigo 285.º, mantendo-se o vínculo ao transmitente».[3]
O n.º 2, por seu turno, passa a dispor: «o direito de oposição deve ser feito por escrito e só é eficaz se existir fundamento relevante, nomeadamente por manifesta falta de solvabilidade ou situação financeira difícil do transmissário ou, ainda, objetiva falta de confiança do trabalhador no transmissário».
O n.º 3 enuncia: «o trabalhador deve manifestar a sua oposição à transmissão ao respetivo empregador, por escrito, no prazo de cinco dias úteis após o termo do prazo para a designação da comissão representativa, se esta não tiver sido constituída, ou após o acordo ou o termo da consulta a que se refere o n.º 2 do artigo 286.º, mencionando a sua identificação, a atividade contratada e o fundamento da oposição, de acordo com o n.º 2 do presente artigo.
E o n.º 4 remata: «nos casos de transmissão de unidade económica sem que exista negócio jurídico entre o transmitente e o transmissário, o direito de oposição deve ser exercido até cinco dias úteis a contar da receção da informação por parte do transmitente quanto à transmissão ou, no caso de não ter havido prestação de informação, a contar do conhecimento pelo trabalhador da transmissão».
Da comparação entre os preceitos propostos e o anterior figurino normativo constata-se, para além da alteração subtil do vocábulo «adquirente» para «transmissário»,[4] a opção do legislador pela inversão da ordem dos n.ºs 1 e 2 do artigo 286.º-A, ao introduzir no primeiro o corolário do direito de oposição do trabalhador (manutenção do vínculo com o transmitente) e no segundo os fundamentos densificadores do exercício desse mesmo direito.
Por outro lado, a reforma laboral, na esteira da recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça,[5] acrescenta um novo dispositivo ao regime transmissivo, o n.º 4 do artigo 286.º-A, que vem reforçar os direitos do trabalhador opositor no caso das chamadas transmissões de facto, rectius, aquelas em que inexiste vínculo contratual entre transmitente e transmissário. Nessas situações, em incontáveis casos, o transmitente não está em condições de prestar informações suficientes sobre as medidas projectadas em relação aos trabalhadores abrangidos pelo negócio transmissivo, limitando-se a comunicar-lhes a identificação do putativo transmissário. Assim, a ausência total ou parcial de informação pode justificar a oposição do trabalhador nesse caso concreto.[6]
No entanto, a mudança nuclear do regime reporta-se ao pressuposto do direito de oposição, cujas aporias suscitaram, como se sabe, um alargado debate doutrinal, com ressonância a nível da judicatura.[7] Recorde-se o essencial da discussão.
O ponto controvertido prendia-se com as dificuldades interpretativas em torno do teor literal da parte final do n.º 1 do artigo 286.º-A, do qual podiam emergir duas leituras. Numa primeira, a lei teria consagrado um fundamento único, recortado por uma cláusula geral: prejuízo sério, cláusula essa integrada normativamente por alguns elementos indiciários: manifesta falta de solvabilidade, ou situação financeira difícil do adquirente, ou a política de organização do trabalho do adquirente não merecer confiança ao trabalhador opositor. Os critérios são meramente indicativos (nomeadamente) da cláusula geral (prejuízo sério) e funcionam em alternatividade (como resulta da conjunção “ou” que delimita a enunciação).
Porém, o teor literal da norma, que talvez merecesse maior cuidado de redacção, pode apontar para um outro sentido, o sentido de a lei ter consagrado um fundamento duplo. Isto é, o direito de oposição poderia fundar-se ou: 1) no prejuízo sério para o trabalhador, concretizado ou indiciado por um elemento (a manifesta falta de solvabilidade do adquirente ou a sua situação financeira difícil); ou (ainda, embora uma técnica redaccional mais apurada talvez recomendasse usar então) 2) a falta de confiança quanto à política de organização do trabalho do adquirente.
O uso de um infinitivo na formulação do segundo motivo: “ou, ainda, se a política de organização do trabalho deste não lhe merecer confiança” reforçaria esta leitura. Dois verbos: causar (prejuízo) / merecer (confiança), dois fundamentos distintos.
A favor dessa lógica binária, poder-se-ia dizer que o legislador de 2018 pretendeu diferenciar os fundamentos da oposição de acordo com a verificabilidade da prognose que lhes é inerente. Assim, teríamos um fundamento objectivo, que prescinde de prova (prejuízo sério), de uma parte, e, de outra, um fundamento subjetivo, uma “crença”, algo “insindicável” (falta de confiança)..
Mas se assim fosse, tornava-se legítimo perguntar qual o sentido do duplo fundamento? Se o elemento da desconfiança fosse um fundamento próprio, autónomo, qual o alcance, qual a necessidade de consagrar o elemento “prejuízo sério”? Não bastaria, pois, ao trabalhador invocar que não confiava na política de organização do trabalho do adquirente para beneficiar de imediato do direito de oposição?
O teor da norma permitia esta leitura, esvaziando, assim, parece, o alcance do primeiro fundamento: pois, repetindo o que acima se disse, qual seria o sentido para o trabalhador de invocar e provar um prejuízo sério para exercer o direito de oposição se o mesmo resultado se alcançaria com a mais simples e incontrolável razão de desconfiança? Aliás, os fundamentos conduziam na estrita formulação legal aos mesmos resultados, não só no que diz respeito à oposição que tem como consequência a continuação do vínculo com o transmitente, nos termos do artigo 286.º-A, n.º 2 do CT, quer no que concerne à resolução contratual e à compensação.
Procurando solucionar a questão, o recentíssimo anteprojecto vem consagrar um fundamento único para o exercício do direito de oposição, assente num requisito material, o fundamento relevante, requisito esse concretizado por três situações hipotéticas que não excluem outras: manifesta falta de solvabilidade, ou situação financeira difícil do adquirente, ou a desconfiança objectiva do trabalhador opositor no transmissário. Para que não subsistam dúvidas interpretativas, eliminam-se da nova versão do dispositivo os verbos «causar» prejuízo e «merecer» confiança.
A supressão da cláusula geral prejuízo sério, que dá agora lugar a do fundamento relevante, vem dar mais fôlego aos direitos dos trabalhadores afetados pelo negócio transmissivo. Trata-se, com efeito, de uma formulação mais ampla e, nessa medida, mais consentânea com os interesses do trabalhador opositor, desde logo por admitir a subsunção de uma panóplia de situações que mais dificilmente configurariam um prejuízo sério.
Como não poderia deixar de ser, no conceito dilatado de fundamento relevante integram-se também os motivos associados à desconfiança objectiva na entidade transmissária. Sem dúvida, as razões que decorrem da situação financeira do transmissário são motivos de maior densidade objectiva, de mais elementar demonstração. Julgamos, porém, que um fundamento relevante para o trabalhador decorre não somente desse tipo de razões, mas de tantas, tantas outras e, entre elas, da forma de organização que a estrutura empresarial pode vir a assumir no futuro sob a nova gestão. Suponhamos ser conhecido que no modelo estratégico do adquirente, por ela já aplicado noutras empresas suas, a política corrente é de rotatividade horária, ou que o dia de folga é também ele variável, ou que os trabalhadores podem ser alocados a outros polos da empresa. Não será legítimo em situações como as descritas que, mesmo sendo excelente a situação financeira do transmissário, o trabalhador anteveja que a sua integração na nova relação poderá, passado algum tempo, conhecer alterações que afinal lhe sejam desfavoráveis (a nível familiar, p. ex.)? Em nosso entender, o incumprimento do dever procedimental de informação que recai sobre o transmitente poderá também servir, à semelhança do que sucede nas situações em que entre ele e o adquirente inexista relação contratual (novo n.º 4 do artigo 286.º-A), como motivo justificativo da falta de confiança objectiva do trabalhador opositor.
Uma última nota conclusiva relativa à justa causa de resolução do trabalhador. A versão em vigor da alínea d) do n.º 3 do artigo 394.º do Código do Trabalho reza o seguinte: “transmissão para o adquirente da posição do empregador no respectivo contrato de trabalho, em consequência da transmissão da empresa, nos termos dos n.ºs 1 ou 2 do artigo 285.º, com o fundamento previsto no n.º 1 do artigo 286.º-A”. Este normativo passa a ter a seguinte redacção: “transmissão para o transmissário da posição do empregador no respectivo contrato de trabalho, em consequência da transmissão da empresa, nos termos dos n.ºs 1 ou 2 do artigo 285.º, com o fundamento previsto no n.º 1 do artigo 286.º-A”. Também aqui, o termo «adquirente» foi substituído por «transmissário». Manteve-se, porém, a remissão para o n.º 1 do artigo 286.º-A, pese embora o fundamento do direito de oposição tenha sido incorporado, como vimos, no n.º 2 do mesmo dispositivo. Terá sido um lapso do legislador? Será isso relevante?
[1] Note-se que a recente intervenção legislativa não está confinada à disciplina da transmissão de unidade económica, antes incidindo sobre múltiplas disposições do Código do Trabalho. A reforma, segundo a exposição de motivos do anteprojecto, visa «não apenas a adequação da legislação laboral à economia 4.0, mas também o fomento e a dinamização da contratação coletiva, o combate a precaridade laboral e, ainda, uma conciliação equilibrada entre a vida pessoal e privada e a vida profissional».
[2] Até à entrada em vigor da Lei 14/2018, de 19 de Março, o ordenamento jurídico nacional não concedia expressamente ao trabalhador esta faculdade na recusa da prossecução do seu contrato de trabalho com a entidade transmissária, mantendo-se vinculado ao seu primevo empregador. Na tradição jurídica lusitana, perfilhava-se o entendimento segundo o qual a transmissão da unidade económica operava uma mera alteração subjetiva nos contratos de trabalho (de empregador primevo para empregador transmissário), pelo que não afetava a substância dos vínculos laborais existentes, como se para o trabalhador nada tivesse se passado. Importa referir, porém, que o problema não era de modo algum desconhecido ou ignorado, quer da jurisprudência quer da doutrina. Para mais desenvolvimentos, v. Pedro Oliveira, “Ainda sobre o direito de oposição do trabalhador no caso de transmissão de empresas”, Prontuário de Direito do Trabalho 2020, I, pp. 303 e ss.
[3] O legislador procurou acautelar esta solução no n.º 5 do artigo 286.º-A: “constitui contraordenação grave a violação do disposto no n.º 1”.
[4] Verifica-se o mesmo na redacção de outros dispositivos constantes da proposta legislativa, designadamente nos artigos 285.º, n.º 1, 287.º, n.º 2, 394.º, n.º 2, d) e 498.º, n.º 1 e 2.
[5] Acórdão de 06.03.2024 (Proc. 889/21.0T8EVR.E1.S1) do Relator Júlio Gomes.
[6] Veja-se também o disposto no novo n.º 12 do artigo 286.º-A.
Sobre o ponto, cf. Pedro Oliveira, «O(s) pressuposto(s) do direito de oposição do trabalhador: breves notas sobre a jurisprudência recente», Revista do Ministério Público, 173, pp. 163-174. [7]