Mileny Silva

Doutoranda em Criminologia na Faculdade de Direito da Universidade do Minho Portugal.
Mestre em Direito Penal e Ciências Criminais na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Investigadora, Técnica Superior da Faculdade de Direto da Universidade de Lisboa.


A violência de género e sexual continua a ser, ainda hoje, um dos mais inquietantes desafios enfrentados pelas sociedades contemporâneas. Longe de constituir um fenómeno isolado ou meramente criminal, trata-se de um problema sistémico que reflete desequilíbrios de poder profundamente enraizados nas estruturas sociais. A forma como esta violência é percecionada, tratada e combatida revela muito acerca dos valores dominantes e dos mecanismos — por vezes subtis, outras vezes explícitos — que perpetuam a desigualdade. Entre esses mecanismos, destacam-se os estereótipos e preconceitos de género, que exercem uma influência poderosa na maneira como a sociedade vê tanto as vítimas como os agressores.

Por definição, os estereótipos de género são generalizações sobre características, comportamentos e papéis considerados apropriados para homens e mulheres. Estas ideias preconcebidas são frequentemente aceites como verdades universais e inquestionáveis, ainda que não resistam ao escrutínio da razão ou da experiência. Formam-se e reproduzem-se ao longo do tempo, sendo alimentadas por práticas culturais, religiosas, familiares e mediáticas. Segundo Emanuela Cardoso Onofre de Alencar (2015–2016, p. 29), os estereótipos funcionam como atalhos mentais que associam grupos de pessoas a determinados traços ou comportamentos. Esta categorização automática pode facilitar respostas rápidas, mas frequentemente conduz a julgamentos injustos, ao ignorar a complexidade e diversidade do ser humano.

Maria Teresa Féria de Almeida (2018, p. 83) reforça esta ideia ao explicar que o processo de categorização mental leva à ativação de um conjunto de expectativas padronizadas assim que uma pessoa é identificada como pertencente a determinado género. Assim, uma mulher que denuncia uma agressão pode ser imediatamente avaliada à luz de ideias preconcebidas sobre feminilidade, sexualidade e moralidade. Em vez de ser tratada como uma pessoa que sofreu uma violação dos seus direitos, é muitas vezes julgada com base em suposições infundadas: “Estava vestida de forma provocadora?”, “Estava alcoolizada?”, “Terá provocado o agressor?”. Estas questões não buscam justiça, mas antes a culpabilização da vítima.

Neste contexto, a reflexão de Teresa Quintela de Brito  (2020, p. 181), torna-se especialmente pertinente. Ao abordar os estereótipos sexuais, a autora denuncia a existência de uma dupla moral que tolera e até glorifica a promiscuidade masculina, enquanto condena severamente qualquer expressão de sexualidade feminina que se desvie dos padrões tradicionalmente aceites. O estereótipo da mulher “promíscua” é utilizado como arma de descrédito, não apenas nos tribunais, mas também no debate público e nos meios de comunicação. Quando uma mulher é agredida, o seu passado sexual, muitas vezes, assume mais relevância do que os atos do agressor. Esta inversão de responsabilidades constitui uma das formas mais insidiosas de violência simbólica e institucional.

As consequências deste quadro não são meramente teóricas. Têm efeitos reais, mensuráveis e devastadores na vida das vítimas. A resposta institucional — que deveria garantir acolhimento, proteção e justiça — frequentemente falha, contaminada por preconceitos de género. A revitimização é um fenómeno amplamente documentado: vítimas tratadas com desconfiança, forçadas a reviver o trauma em múltiplas instâncias, ou mesmo dissuadidas de apresentar queixa. Tudo isto alimenta uma cultura de silêncio e impunidade, onde os agressores permanecem protegidos por um sistema que, em teoria, os deveria responsabilizar.

Importa, ainda, reconhecer que os estereótipos moldam também a perceção dos agressores. Homens considerados respeitáveis, influentes ou carismáticos são muitas vezes beneficiados por uma presunção automática de credibilidade. Quando acusados de violência, os seus atos tendem a ser minimizados, racionalizados ou negados. Em muitos casos, a vítima é obrigada a provar o óbvio, enquanto o agressor é tratado como inocente até prova em contrário — uma presunção raramente estendida à vítima.

Neste sentido, combater a violência de género exige muito mais do que reformas legais. Exige uma transformação cultural profunda e sustentada. É necessário desconstruir os estereótipos de género desde a infância, nos espaços educativos, nos meios de comunicação, nos discursos políticos e, sobretudo, nas instituições de justiça e segurança. Impõe-se a formação contínua de profissionais que lidam com vítimas — desde agentes policiais a juízes, assistentes sociais e profissionais de saúde — para que reconheçam os seus próprios preconceitos e atuem com empatia, respeito e sensibilidade.

Trata-se não apenas de proteger as vítimas, mas de afirmar, inequivocamente, que todas as pessoas têm o direito de viver livres de violência, independentemente do seu género, aparência, passado ou comportamento. Tratar cada caso com atenção, reconhecer a complexidade de cada história e agir com justiça e humanidade são passos fundamentais para construir uma sociedade mais equitativa e solidária.

A influência dos estereótipos e preconceitos na perceção das vítimas de violência de género e sexual não é um mero problema académico — é uma questão urgente de justiça social. Persistir numa visão distorcida das vítimas, enraizada em preconceitos sobre género e sexualidade, é perpetuar a violência e tornar cúmplice o próprio sistema que a deveria erradicar.

Num mundo que se pretende cada vez mais igualitário e justo, é inaceitável que ainda se questionem as motivações, a conduta ou o passado de quem denuncia uma agressão, enquanto se procura preservar a imagem ou reputação do agressor. Esta inversão de prioridades denuncia uma sociedade que ainda não rompeu com os seus alicerces mais discriminatórios.

É, portanto, essencial educar para a empatia, para a escuta ativa e para a desconstrução crítica dos papéis de género. Esta educação não se limita às escolas; deve estender-se às instituições públicas, aos meios de comunicação social, às famílias e, especialmente, ao sistema judicial. Reconhecer que estereótipos inconscientes influenciam decisões e perceções é o primeiro passo para corrigi-los.

Não podemos esperar mudanças estruturais enquanto persistirem a cultura do silêncio, a culpabilização da vítima e a desculpabilização do agressor. É fundamental criar uma cultura de responsabilização, onde a dignidade da vítima seja preservada e a sua voz ouvida com seriedade.

A luta contra a violência de género e sexual é, em última instância, uma luta pelos direitos humanos. E só será verdadeiramente eficaz se for acompanhada de um esforço coletivo para desmontar os preconceitos que sustentam a desigualdade. Esta é uma responsabilidade de todos — e uma urgência que não pode mais ser adiada.

Vivemos numa sociedade em que os crimes de violência sexual e de género continuam, muitas vezes, a ser julgados mais com base em preconceitos sociais do que em factos concretos. A construção social dos estereótipos da vítima e do agressor não é apenas uma consequência da cultura dominante — é um mecanismo ativo que influencia profundamente a forma como estes crimes são compreendidos, investigados e julgados. Tais estereótipos alimentam o preconceito, obscurecem a verdade e, em última análise, perpetuam a injustiça.

É crucial compreender que a figura da “vítima ideal” — inocente, submissa, emocionalmente abalada e cumpridora dos códigos morais convencionais — é uma ficção. Essa imagem, ainda amplamente difundida no imaginário social e até em instituições judiciais, exclui inúmeras vítimas reais. Mulheres que estavam alcoolizadas, que usavam roupas consideradas “provocantes”, que conheciam o agressor ou que hesitaram em denunciar a agressão veem, muitas vezes, a sua credibilidade colocada em causa. Esta tendência para culpabilizar a vítima é não apenas moralmente inaceitável, como extremamente perigosa. Enfraquece a confiança no sistema judicial e desencoraja denúncias, silenciando precisamente aquelas que mais precisam de proteção.

Lynn Hecht Schafran  (1985, pp. 12-17) em, numa análise marcante, identificou três arquétipos femininos frequentemente projetados sobre mulheres nos tribunais: Eva, Maria e a Supermulher. Eva representa a mulher sedutora e manipuladora, cuja palavra é imediatamente posta em dúvida; Maria simboliza a mulher pura, passiva e moralmente irrepreensível — qualquer desvio deste ideal é penalizado; e a Supermulher é aquela que tudo concilia — carreira, maternidade, aparência — sendo qualquer falha interpretada como sinal de fraqueza. Estes estereótipos, mesmo operando inconscientemente, influenciam a atuação de magistrados, advogados e demais profissionais da justiça. Por isso, Schafran defende a necessidade de uma educação judicial crítica e contínua, capaz de desconstruir estes preconceitos.

As ideias sobre o que constitui “comportamento adequado” para mulheres permanecem profundamente marcadas por uma lógica patriarcal. Como observa Susan Scott (1986), espera-se que as mulheres assumam a responsabilidade pela sua própria segurança, numa sociedade que continua a desculpar comportamentos abusivos dos homens. Este duplo padrão perpetua a ideia de que a vítima “provocou” a violência que sofreu, seja pela sua roupa, atitude ou decisões pessoais. Crenshaw (1991) evidenciou como esta discriminação não atua de forma isolada: fatores como classe social, raça, identidade de género e orientação sexual interseccionam-se, agravando o julgamento moral e institucional que recai sobre determinados grupos.

Mulheres negras, pobres, migrantes ou trans enfrentam, frequentemente, um estigma reforçado — são vistas como menos credíveis, menos merecedoras de empatia e mais facilmente responsabilizadas pela violência que sofrem. A socióloga Patricia Hill Collins (2000) sublinhou que a forma como a sociedade percebe a violência varia conforme a posição social da vítima. A justiça, que se deseja cega, continua a ver — e a julgar — através das lentes do preconceito.

Por outro lado, o estereótipo do agressor também é marcado por simplificações perigosas. A ideia do “estranho perigoso” — um homem de aparência suspeita, desconhecido da vítima — ainda domina o imaginário coletivo. Contudo, os dados demonstram que a maioria dos crimes sexuais é cometida por pessoas conhecidas das vítimas: parceiros íntimos, familiares, colegas ou amigos. Esta falsa perceção dificulta o reconhecimento de relações abusivas, sobretudo em contextos conjugais.

A masculinidade, como nos alerta R. W. Connell (2005), é frequentemente construída em torno de ideias de poder, controlo e domínio. Estas conceções normalizam atitudes agressivas e tornam a violência uma expressão “aceitável” de masculinidade em certas culturas. Além disso, como mostrou Erving Goffman (1963), a tendência para desindividualizar os agressores, colocando-os numa categoria genérica e estigmatizada, impede uma análise mais profunda e contextual dos seus comportamentos — não para justificar a violência, mas para compreendê-la e preveni-la de forma eficaz.

Narrativas culturais como a “crise de ciúmes” ou o “descontrolo momentâneo” funcionam como mecanismos de desculpabilização do agressor e são reproduzidas nos tribunais, nos media e nas conversas do quotidiano. Como sublinha Carol Vance (1984), estas narrativas reforçam a cultura da violação e transferem para a vítima a responsabilidade de evitar a violência, em vez de responsabilizar o agressor pelos seus atos.

O impacto destes estereótipos é devastador. Como bem documenta Campbell (2006), vítimas que não se encaixam no perfil idealizado enfrentam descredibilização e tratamento negligente por parte das autoridades. O sistema, ao reproduzir os preconceitos sociais, torna-se parte do problema, provocando revitimização institucional e agravando o trauma das vítimas.

Conclusão

Urge Romper o Ciclo de Preconceito

Desconstruir os estereótipos da vítima e do agressor não é uma tarefa académica ou teórica — é uma urgência ética, política e social. A justiça só poderá ser verdadeiramente justa quando escutar, acolher e proteger todas as vítimas, independentemente da sua aparência, comportamento, classe ou identidade.

É fundamental promover uma transformação cultural profunda, com educação crítica nas escolas, sensibilização nos meios de comunicação, formação contínua para operadores judiciários e políticas públicas baseadas na equidade e evidência. A responsabilização do agressor e o respeito pela dignidade da vítima não podem ser condicionados por preconceitos sociais.

A luta contra a violência de género e sexual não se trava apenas nos tribunais ou nas ruas — realiza-se, sobretudo, na forma como escolhemos olhar o outro. E essa escolha começa com o simples, mas poderoso, gesto de ouvir sem julgar.

Obras Citadas

Alencar, E. C. O. d., 2015-2016. Mujeres y estereotipos de género en la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Eunomía. Revista en Cultura de la Legalidad, Volume 9, pp. 26-48.

Almeida, M. T. F. d., 2018. Provas e preconceitos. Julgar sob perspectiva de género, pp. 79-91.

Brito, T. Q. d., 2020. Estereótipos prejudiciais de género na prática jurídica: denegação do acesso ao direito e aos tribunaisa. Anatomia do Crime, Volume 11, pp. 167-217.

Campbell, J. L., 2006. Institutional Analysis and the Paradox of Corporate Social Responsibility. Volume 49 (7).

Collins, P. H., 2000. The black feminist thought. London: Routledge.

Connell, R. W., 2005. Globalization, imperialism, and masculinities.. In Handbook of studies on men& masculinities, 71(edited by M. S. Kimmel, J. Hearn, and R. W. Connell.).

Crenshaw, K., 1991. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence against Women of Color. Stanford Law Review, Volume 43 (6), pp. 1241-1299.

Goffman, E., 1963. Stigma. Notes on the Management of Spoiled Identity. London: Penguin Books.

Schafran, L. H., 1985. Eve, Mary, Superwoman: How Stereotypes About Women Influence Judges. ORIGINALLY PUBLISHED IN THE JUDGE’S JOURNAL, Volume 24, pp. 12-52.