Manuel Franqueira Dias

2013-2017: Licenciatura em Direito na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa.
2017-2018: Master of Laws -LLM, International Business Law concluído na Queen Mary University of London.
2023-2024: Pós-Graduação em Direito Imobiliário na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa.
2022-presente: Advogado Associado na área de prática de Direito Imobiliário na Miranda e Associados.


                                                                                                                                                I.            INTRODUÇÃO

O Alojamento Local adquiriu nos últimos anos uma dimensão preponderante no uso e exploração de imóveis destinados ao alojamento temporário de turistas, cuja singularidade é manifestada mediante a sua regulamentação própria que difere naturalmente, quer do arrendamento habitacional, quer da atividade hoteleira.

Sendo que uma das modalidades permitidas para a instalação da atividade de Alojamento Local consiste na fração autónoma integrante de prédio constituído em propriedade horizontal, importa entender como é realizada a compatibilidade entre o presente instituto e as regras referentes à propriedade horizontal constantes do Código Civil.

Ora, o escopo do presente artigo escrito é verificar como é feita a referida compatibilidade, ao abordar e esclarecer as questões suscitadas pelo Alojamento Local ao nível da propriedade horizontal, em concreto se afetação de fração autónoma à atividade de Alojamento Local é compatível com o fim habitacional e /ou de serviços, constante do título constitutivo de propriedade horizontal, do qual a fração é integrante, bem como possibilidade da assembleia de condóminos se poder opor ao exercício da atividade de Alojamento Local, mediante a interpretação do título constitutivo de propriedade horizontal.

                                                                                                                                                      II.             ANÁLISE

1.            A afetação de fração autónoma de prédio constituído em propriedade horizontal à atividade de alojamento local é compatível com o fim habitacional constante do título constitutivo de propriedade horizontal?

Neste ponto irei esclarecer o enquadramento e os motivos pelos quais a afetação de uma fração autónoma de prédio constituído em propriedade horizontal à atividade de alojamento local não é compatível com o fim habitacional constante do título constitutivo de propriedade horizontal, exceto no caso do registo de alojamento local ser precedido de decisão do condomínio para uso diverso de exercício da atividade de alojamento local.

O legislador, mediante o Pacote Legislativo Mais Habitação, aprovado pela Lei n.º 56/2023, de 6 de outubro (“Pacote Mais Habitação”), alterou entre outros o Regime Jurídico da Exploração de Alojamento Local aprovado pelo Decreto-Lei n. º 128/2014, de 29 de agosto (“RJAL”), que estabeleceu o regime jurídico aplicável à exploração dos estabelecimentos de alojamento local.

O Pacote Mais Habitação com a introdução do n.º 4 ao artigo 5.º do RJAL veio esclarecer que é necessária a autorização do condomínio no caso de instalação de um alojamento local em fração autónoma, cuja afetação no título constitutivo de propriedade horizontal se destine a uso habitacional. A referida autorização é tomada nos termos do n.º 1 do artigo 1419.º do Código Civil, de acordo com o n.º 5, do artigo 5.º do RJAL também introduzido pelo Pacote Mais Habitação, ou seja, mediante o acordo de todos os condóminos.

Consequentemente, em linha com as mencionadas alterações, a alínea f) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAL passou a dispor que a comunicação prévia para a instalação de alojamento local dever ser instruída com a “Ata da assembleia de condóminos autorizando a instalação, no caso de hostels, e dos alojamentos locais aprovados nos termos dos n.ºs 4 e 5 do artigo anterior”.

Deste modo, o legislador veio esclarecer que é necessária uma autorização por parte do condomínio para que se utilize a fração autónoma para finalidade de alojamento local, caso seja expressamente mencionado no título constitutivo de propriedade horizontal do prédio, no qual a fração autónoma se integra, que a referida fração se destina a habitação, tendo em conta que constitui um uso diverso da atividade de alojamento local. Assim sendo, o legislador quis pôr fim às situações de conflito que podiam ser levantadas quanto à admissibilidade do exercício da atividade de alojamento local numa fração afeta a habitação, nos termos do respetivo título constitutivo.

Anteriormente, era controvertida a questão de saber se era ou não necessária a autorização do condomínio no caso de instalação de alojamento local em fração autónoma, cujo uso estava afeto a habitação conforme menção do título constitutivo da respetiva propriedade horizontal, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 1418.º do Código Civil, pelo que foi objeto de várias decisões judiciais contraditórias que acabaram por levar à necessidade do Supremo Tribunal de Justiça proferir o Ac. n.º 4/2022, de 22 de março de 2022 (“Ac. n.º 4/2022”)[1].

O Ac. n.º 4/2022, o qual incidiu, sucintamente, se o exercício da atividade de alojamento local exercida numa — “(…) fração autónoma destinada a habitação, segundo menção constante do título constitutivo de propriedade horizontal do prédio em que esta se integra, nos termos do artigo 1418.º, n.º 2, alínea a) do Código Civil, constitui ou não uso diverso do fim a que essa fracção é destinada, vedado aos condóminos, nos termos e para os efeitos do preceituado no artigo 1422.º, n.º 2, alínea c) do mesmo código ——determinou que — “No o regime de propriedade horizontal, a indicação no título constitutivo, de que certa fração se destina a habitação, deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitida a realização de alojamento local.”[2]— é relevante na medida em que existem argumentos enunciados pelo Supremo Tribunal de Justiça para consubstanciar a decisão supra que se mantêm atuais e que irei enunciar.

Assim, entendo que o exercício da atividade de alojamento local numa fração autónoma integrante de prédio constituído em propriedade horizontal não é compatível com a afetação habitacional, constante do respetivo título constitutivo de propriedade horizontal, mesmo no caso de inexistência da alteração legislativa introduzida no n.º 4 do artigo 5.º do RJAL, pelo Pacote Mais Habitação, por diversas razões que irei numerar de seguida.

Em primeiro lugar, as várias alterações efetuadas ao RJAL não introduziram modificações ao regime da propriedade horizontal constante do Código Civil no sentido, como refere o Ac. n.º 4/2022 — “(…) de se prescindir do controlo administrativo sobre o fim ou destino ou sobre as proibições de uso da fracção constantes do título constitutivo da propriedade horizontal ou de deliberações levadas a registo”. De facto, o registo de um estabelecimento de alojamento local está dependente da fração autónoma em causa dispor de “autorização de utilização ou título válido do imóvel”, nos termos da alínea a) do n.º 1, do artigo 6.º do RJAL. Mais ainda, como é afirmado pelos Juízes Conselheiros no Ac. n.º 4 /2022 — “(…) a existência de licença de utilização para um determinado uso de certa fracção não visa propriamente estabelecer as condições específicas ou sectoriais para o exercício de cada tipo de actividade económica que neles se pretenda instalar, mas tão só que se indica o fim, como categoria de utilização genérica ou aberta, no quadro dos usos urbanísticos dominantes admissíveis para cada zona territorial[3]. Consequentemente, não é imposta qual é designação específica que deve estar incluída em tal título.

Neste sentido, ainda que o exercício da atividade de alojamento local esteja de acordo com o destino amplo de habitação, conferido a um prédio urbano em regime de propriedade horizontal e às suas fracções autónomas, nos termos do respectivo projeto de construção e confirmado pela autorização de utilização, não obsta a que exercício da atividade de alojamento local tenha de ser aferido perante as regras da propriedade horizontal constantes do Código Civil. Aqui, refiro-me, em particular, ao título constitutivo da propriedade horizontal que contém a menção do fim a que se destina cada fração autónoma, de acordo com a alínea a) do n.º 2 do artigo 1418.º do Código Civil, assim como as eventuais proibições de praticarem determinados atos e atividades, aprovados por deliberação da assembleia de condóminos sem oposição, ao abrigo da alínea d) do n.º 1 do artigo 1422.º do Código Civil. Ainda que a menção do fim constante do título constitutivo, bem como as proibições constantes do mesmo estejam sujeitas a registo, de acordo com as alíneas b) e v) do n.º 1 do artigo 2.º do Código de Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224/84, de 6 de julho, pelo que assumem natureza real com eficácia erga omnes, consistem numa forma legítima de limitar pela via negocial o uso das frações autónomas integrantes de prédio constituído em propriedade horizontal.

Em suma, mesmo que o uso da fração autónoma para alojamento local seja permitido mediante a “autorização de utilização ou título válido do imóvel”, é necessário aferir se o mesmo uso é compatível face ao destino da fração conferido pelo respetivo título constitutivo de propriedade horizontal.

Em segundo lugar, as várias alterações efetuadas ao RJAL não vieram limitar os meios de tutela previstos no âmbito do regime da propriedade horizontal constante do Código Civil, que assistem a qualquer condómino de fração autónoma de prédio constituído em propriedade horizontal para reagir a limitações ao seu próprio direito. Com efeito, o condómino mantém a possibilidade de reagir caso qualquer fração autónoma do prédio constituído em propriedade horizontal seja afeta à atividade de alojamento local, em violação da finalidade prevista no título constitutivo de propriedade horizontal, ao abrigo das alíneas c) e d) do n.º 2 do artigo 1422.º do Código Civil.

A terceira e mais relevante razão é de o exercício da atividade de alojamento local numa fração autónoma integrante de um prédio constituído em propriedade horizontal não se insere dentro do conceito de habitação, conforme é conferido pelo respetivo título constitutivo de propriedade horizontal.

Deste modo, concordo com o Autor Rui Pinto Duarte quando destaca que a habitação de uma fração autónoma pelo respetivo proprietário ou mesmo pelo arrendatário consiste numa realidade totalmente distinta do alojamento temporário de turistas, afirmando o mencionado autor que — “O turista é por definição, alguém que está apenas num determinado local, que se desloca para conhecer ou visitar e que vai regressar ao espaço onde tem organizada a sua vida e onde, aí habita. Essa transitoriedade, diríamos até efemeridade (menos de 3 noites revelam as estatísticas), traduz-se em regra, num comportamento do turista bem mais descontraído ou relaxado que aquele que quotidianamente adota no local de onde provém e habitam. E isso traduz-se, tantas vezes nos horários praticados, no barulho, no respeito ou melhor dito falta dele – pelo sossego dos demais habitantes dos prédios onde se alojam[4].

A natureza efémera do alojamento local é manifestada no próprio RJAL, quando nos termos do seu n.º 9 do artigo 9.º dispõe que: — “A assembleia de condóminos pode determinar, por deliberação dos votos representativos do capital investido, que os estabelecimentos de alojamento local disponham de um número de contacto telefónico permanente de emergência, o qual deve ser facultado aos demais condóminos” —, dando a possibilidade aos condóminos de estabelecer um contacto com o estabelecimento de alojamento local, através de um número geral, o qual é utilizado independentemente da pessoa que utilize o estabelecimento de alojamento local, ao invés de estabelecer um contacto pessoal diretamente com o utilizador do estabelecimento de Alojamento Local (e. g. mediante a obtenção do seu contacto telefónico pessoal) para as situações de emergência.

Mais ainda, o facto de a utilização de um estabelecimento de alojamento local ser suscetível de criar perturbações a nível do ruído no condomínio é evidenciado através da obrigação do titular do estabelecimento local, instalado em fração autónoma integrante de prédio constituído em propriedade horizontal, ter de afixar, num local bem visível do referido estabelecimento local, uma sinalética com os horários previstos no Regulamento Geral do Ruído, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de janeiro, nos termos do n.º 10 do artigo 9.º do RJAL. Com efeito, o legislador sentiu-se na necessidade de obrigar o titular do estabelecimento de alojamento local, mediante o cumprimento da obrigação supra referida, a indicar ao utilizador do estabelecimento de alojamento local os períodos em que pode haver ruído, tendo em conta o presumível desconhecimento do referido utilizador em relação a estas normas.

Assim, têm razão os Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça quando afirmam no Ac. n.º 4/2022 que — “O AL não é um simples habitar da fracção, equivalente à habitação que dele fazem os usuários não abrangidos pelo AL, ainda que possam aí pernoitar e descansar – sob o ponto de vista da destinação da coisa e da respectiva envolvência sócio-económica condominial, uma vivência habitacional é essencialmente diversa da sua utilização em alojamento de terceiros, com repercussões diversas no meio inter-habitacional ou condominial em que se desenvolvem[5].

Com efeito, a utilização de uma fração autónoma para uso habitacional tem um carácter profundamente personalizado e de tendencial estabilidade por parte do seu utilizador. Por outro lado, o uso de uma fração autónoma na qual é exercida a atividade de alojamento local por sucessivos e diversos utilizadores, com caráter transitório gera repercussões no condomínio. Estas repercussões, resultantes da intensificação da utilização das partes comuns do prédio provocadas pela rotatividade e a aleatoriedade dos utilizadores do alojamento local, provocam a perturbação ao descanso dos condóminos, insegurança, bem como o desgaste e sujidade das partes comuns do prédio, cujas despesas os condóminos contribuem mediante o pagamento das prestações de condomínio.

Consequentemente, não têm razão os Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto no Acórdão da Relação do Porto, de 27 de abril de 2017 quando incluem que o alojamento local está contido no conceito de habitação, constante do título constitutivo de propriedade horizontal ao afirmarem que — “Habitar é algo mais do que apenas alojar, mas inclui todos os actos e utilidades característicos do conceito de alojar. Proporcionar habitação é mais do que alojar, mas é também alojar. (…) porque a pessoa alojada não pratica no local de alojamento algo que nela não pratique quem nele habita: dorme, descansa, pernoita, tem as suas coisas. Acresce que os estabelecimentos de alojamento local não são equipamentos hoteleiros que tenham de dispor de equipamentos, serviços e funcionários para recepção dos turistas e prestação de outros serviços desejados pelos turistas (alimentação, limpeza, animação, piscina, spas, etc.). No alojamento local o prestador de serviço limita se a proporcionar ao turista o local de alojamento, os seus cómodos, mobiliário e equipamento doméstico, franqueando-lhe o acesso e a utilização do mesmo e cobrando a respectiva remuneração. (…) Nessa medida, ainda que de uma prestação de serviços se trate, no alojamento local o único serviço que é prestado é o próprio alojamento, como tal, o espaço é utilizado unicamente para alojamento”[6].

A posição manifestada supra não pode ser aceite,poiscomo vimos anteriormente, o alojamento por parte dos turistas, tendo em consideração a efemeridade da utilização do estabelecimento de alojamento local traz implicações ao condomínio, que os condomínios pretendem justamente evitar mediante o título constitutivo de propriedade horizontal. Por outro lado, a indicação de que o serviço de alojamento local é prestado unicamente num determinado “espaço” não é verdadeira, na medida existe uma consequente utilização das partes comuns do prédio constituído em propriedade horizontal, por parte dos utilizadores de alojamento local, tal como somente o uso da própria fração tem implicações para os restantes condóminos (e. g. ruído). Finalmente, ainda que o conteúdo principal da atividade alojamento local se refere à cedência do espaço, não é verdade que consiste no único serviço prestado aos utilizadores. De facto, como irei referir no ponto 2 infra, a atividade de alojamento local também presume a inclusão de serviços complementares como a limpeza.

Em quarto lugar o alojamento local é tratado fiscalmente como uma atividade de prestação de serviços, argumento que será desenvolvido no ponto 2. infra.

Em quinto lugar, a figura do alojamento foi autonomizada pelo legislador no RJAL, tendo em consideração motivações específicas, não sendo possível fazer paralelismos com outras figuras jurídicas, inclusive arrendamentos de habitação não permanentes para diversos fins regulados nos n.ºs 3 e 4 do artigo 1095. º do Código Civil.

O alojamento local veio dar resposta a um novo fenómeno no mercado turístico. Se como refere a Autora Maria Olinda Garcia[7], nos 80 e 90 do século XX, os turistas eram arrendatários, na sua maioria portugueses, que entravam em contacto direto com os proprietários ou através de agentes imobiliários locais, atualmente os turistas são predominantemente estrangeiros que “contratam” alojamento mediante a utilização plataformas eletrónicas internacionais. Por outro lado, concordo com a já citada Autora Maria Olinda Garcia[8] que houve “um certo esbatimento da marca de sazonalidade”. Se outrora, os arrendamentos particulares ocorriam em imóveis perto da praia e durante os meses de verão, agora os turistas procuram imóveis nos centros históricos das grandes cidades durante todo o ano.

Consequentemente, existiram e existem motivos justificados para o legislador ter autonomizado a figura do alojamento local no RJAL que presta um serviço de alojamento temporário a turistas, mediante remuneração, de acordo com o n.º 1 do artigo 2.º do mencionado diploma.

Em suma, é justificado o motivo pela qual alojamento local exercido numa fração autónoma não é compatível com a afetação habitacional constante do título constitutivo de um prédio constituído em propriedade horizontal, pelo que não se aplicam as soluções jurídicas atribuídas a outras figuras jurídicas como os arrendamentos de habitação não permanentes para diversos fins regulados nos n.ºs 3 e 4 do artigo 1095. º do Código Civil.

Em sexto lugar, a garantia do direito à propriedade privada nos termos do artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa não impede que o legislador não o possa limitar, nos termos do artigo 1305.º do Código Civil. Assim, os direitos de propriedade singular sobre as frações autónomas podem ser limitados no âmbito do regime da propriedade horizontal, em particular a limitação da alínea c), do n.º 2 do 1422.º do Código Civil — “Dar-lhe uso diverso do fim a que é destinada”.

Deste modo, conforme refere o Autor Conselheiro J. Pinto Furtado — “O direito de compropriedade de um dos condóminos é, naturalmente, comprimido pelo direito de cada um dos outros. Mas o direito de propriedade singular sobre cada fração autónoma sofre também, naturalmente, compressões ao seu exercício, derivadas das relações de vizinhança a elas inerentes e análogas às que, em geral, se estabelecem para prédios vizinhos nos artigos 1346 ss CC, expressamente mandadas aplicar na parte final do artigo 1422-1 CC” [9].

Em suma, a lei ao impedir que o proprietário de uma fração autónoma integrante de um prédio constituído em propriedade horizontal possa instalar um estabelecimento de alojamento local na referida fração, tendo em conta que o respetivo título constitutivo de propriedade horizontal destina a referida fração a habitação, está legitimamente a optar pela prevalência do direito dos condóminos e comproprietários das áreas comuns em relação ao direito do proprietário sobre a fração autónoma. Direito de propriedade este que é limitado de forma proporcional, sem violar quer o artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa, quer o artigo 1305.º do Código Civil.

Finalmente e em sétimo lugar, a tutela conferida aos condóminos pelo n.º 2 do artigo 9.º do RJAL, o qual permite à assembleia de condóminos adoptar deliberação em que se opõe ao exercício da actividade de alojamento local em fracções autónomas, por mais dois terços da permilagem exceto quando constar do título constitutivo expressamente a utilização da fração para fins de alojamento local ou tiver havido deliberação da assembleia de condóminos a autorizar o mesmo, não preclude a possibilidade de os condóminos limitaram, no título constitutivo de propriedade a afetação das frações autónomas a habitação. Como podemos verificar pela letra da lei o mecanismo previsto pelo n.º 2 do artigo 9.º do RJAL está dependente da afetação que foi conferida no título constitutivo de propriedade horizontal, mas não o substitui. Este mecanismo será abordado com maior detalhe no ponto 4 infra.

Em suma, tendo em consideração que o n.º 4 do artigo 5.º do RJAL e os argumentos expostos supra, o exercício da atividade de alojamento local numa fração autónoma integrante de um prédio constituído em propriedade horizontal não é compatível com a menção habitacional constante do respetivo título constitutivo, de acordo com a alínea a) do n.º 2 do artigo 1418.º do Código Civil, exceto no caso do registo de alojamento local ser precedido de decisão do condomínio para uso diverso de exercício da atividade de alojamento local.

2.            A afetação de fração autónoma de prédio constituído em propriedade horizontal à atividade de alojamento local é compatível com o fim serviços constante do título constitutivo de propriedade horizontal?

Neste ponto irei esclarecer as razões pelos quais a afetação de uma fração autónoma de prédio constituído em propriedade horizontal à atividade de alojamento local é compatível com o fim habitacional constante do título constitutivo de propriedade horizontal.

O n.º 1 do artigo 2.º do RJAL considera estabelecimentos de alojamento local “aqueles que prestam serviço de alojamento temporário, nomeadamente a turistas, mediante remuneração (…)”, desde que cumpridos os requisitos impostos pelo RJAL. Já o n.º 1 do artigo 4.º do RJAL faz corresponder a exploração de estabelecimento de alojamento local “ao exercício, por pessoa singular ou coletiva, da atividade de prestação de serviços de alojamento.

Deste modo, como referem os Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 7 de novembro de 2019 — “O alojamento local é inquestionavelmente uma prestação de serviços. Foi o próprio legislador que insofismavelmente o qualificou como tal ao definir os estabelecimentos de alojamento local como «aqueles que prestam serviços de alojamento temporário, nomeadamente a turistas, mediante remuneração.» (Art.º 2º nº 1 do RJAL) e reforçou essa vertente de prestação de serviços no art.º 4º n.º 1 do mesmo diploma de forma absolutamente clara, ao estipular que «para todos os efeitos, a exploração de estabelecimento de alojamento local corresponde ao exercício, por pessoa singular ou colectiva, da actividade de prestação de serviços de alojamento»[10]. Teremos, então, que determinar o que é abrangido por estes serviços de prestação de alojamento local. Ainda que se possa concordar com o Autor Miguel Fernandes Freitas quando afirma que o essencial da prestação dos serviços de alojamento local se refere à cedência do espaço[11], estes serviços também presumem a inclusão de serviços complementares como a limpeza, tendo em conta a alínea b) do n.º 2 do artigo 4.º do RJAL e a obrigação de que os estabelecimentos de alojamento local terem sempre de reunir condições de higiene e limpeza, imposto pelo n.º 4 do artigo 12.º do RJAL.

A prestação de serviços de alojamento local numa fração autónoma de um prédio constituído em propriedade horizontal consiste assim na cedência temporária da referida fração, geralmente mobilidade, e na disponibilização de serviços complementares à cedência do espaço como a limpeza. O facto do conteúdo principal desta obrigação consistir na disponibilização de um espaço não aproxima a figura do alojamento local ao do arrendamento habitacional, tendo em consideração que tal como foi explicado no ponto 1. supra, a utilização que os turistas fazem de uma fração autónoma afeta ao alojamento local é manifestamente diferente da utilização que um arrendatário faz de uma fração autónoma objeto de um contrato de arrendamento. A própria obrigação da existência de um livro de reclamações nos estabelecimentos de alojamento local, previsto no artigo 20.º do RJAL, assim como a obrigação de afixação de uma placa identificativa do mesmo, de acordo com o artigo 18.º do RJAL contribuem para enaltecer que a prestação deste serviço não se assemelha a um arrendamento de imóveis. Consequentemente, a obrigação da existência de livro de reclamações permite aos utilizadores do alojamento local reclamarem que o serviço de alojamento local não foi adequadamente prestado, na medida em que a reclamação é enviada à ASAE para subsequente tramitação (cfr. n.º 2 do artigo 20 do RJAL constitui uma característica identificadora de uma prestação de serviços. Por outro lado, a obrigação de existência de uma placa identificativa de alojamento local permite, numa fração autónoma de um prédio constituído em propriedade horizontal, diferenciá-la de uma fração autónoma afeta a habitação, seja pelo seu proprietário, ou por terceiro, ou por um arrendatário.

Mais ainda, o estabelecimento de alojamento local é tratado fiscalmente como uma prestação de serviços como é salientado pelos Juízes Desembargadores, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27 de abril de 2017 quando afirmam — “Neste novo conceito de estabelecimento de alojamento local há, sem dúvida, o exercício de uma actividade de prestação de serviços de alojamento que, para além da locação do espaço (temporariamente e por curtos períodos), inclui serviços complementares como a limpeza e a recepção. E como se trata de actividade de prestação de serviços de alojamento, exercida por pessoas singulares, no âmbito da categoria B de IRS, é sempre exigido a apresentação da declaração de início de actividade nas finanças, ou a sua alteração para quem já tenha outra actividade. Este enquadramento na categoria B de IRS, em detrimento da categoria F (arrendamento residencial) determina uma alteração na forma de determinação dos rendimentos tributáveis, passando a ser possível a dedução de todos os encargos relacionados com o imóvel, incluindo a depreciação do valor de aquisição do imóvel e encargos financeiros com essa aquisição, quando se opte pelo regime de tributação com base na contabilidade. (…) Este regime fiscal acentua a diferença entre o alojamento local e o arrendamento residencial. Enquanto este é considerado uma locação passiva, aquele é considerado uma locação activa, que inclui prestações de serviços complementares à mera locação do espaço[12].

Com efeito, a classificação da atividade do titular da exploração do estabelecimento para o exercício da prestação de serviços de alojamento local como “Alojamento mobilado para turistas” ou “Outros locais de alojamento de curta duração”, correspondentes à secção I, subclasses 55201 ou 55204 da Classificação Portuguesa de Atividades Económicas, Revisão 3, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 381/2007, de 14 de novembro, de acordo com a alínea e) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAL, justifica um tratamento fiscal (e não só) diverso dos arrendamentos habitacionais. Por outro lado, o legislador incluiu os arrendamentos na atividade económica de “Arrendamento de bens imobiliários” correspondente à seção L, subclasse 68200 d Classificação Portuguesa de Atividades Económicas, Revisão 3.

Em suma, tendo em consideração que o estabelecimento de alojamento local consiste numa atividade de prestação de serviços, nos termos do RJAL e tendo em conta os argumentos expostos supra, o exercício desta atividade numa fração autónoma integrante de um prédio constituído em propriedade horizontal não é só compatível com a menção serviços, constante do respetivo título constitutivo, de acordo com a alínea a) do n.º 2 do artigo 1418.º do Código Civil, como a menção de serviços é que mais se adequa a esta atividade (com a exceção da menção específica para fins de alojamento local).

        i.             O exercício da atividade de alojamento local pode ser considerado como um ato de comércio?

Neste ponto iremos abordar se o exercício da atividade de alojamento local pode ser considerado um ato de comércio, tendo em consideração que a questão já foi levantada pela doutrina e jurisprudência.

Ora, no âmbito do Ac. n.º 4/2022 é referido que o Acórdão Recorrido — “entendeu que a actividade de alojamento local consubstancia objectivamente um acto de comércio, ainda que não se mostre especificamente disciplinado no Código Comercial (artº. 2º do CC)[13] — tendo por base uma interpretação atualista do artigo 2.º do Código Comercial.

Por outro lado, o Autor Conselheiro J. Pinto Furtado entende que o titular do estabelecimento de alojamento local constitui uma “empresa de alojamento local” ao reunir um “complexo de bens e serviços” quando proporciona acomodação[14]. Mais ainda, o mencionado Autor refere em relação à natureza da prestação de serviços de alojamento quando exercida por uma “empresa” que: — “Da sua natureza mercantil, no alojamento local, não poderá duvidar-se minimamente. Com efeito, servindo-se de estabelecimento preparado para o efeito, controlado a posteriori pela entidade competente; vigiado pelos serviços que fiscalizam a indústria do alojamento, em que por lei se encontra integrado; exercido no âmbito de uma empresa e por um empresário, integra irrecusavelmente, para quem identifica que o Direito comercial como o Direito da empresa, uma atividade comercial.”[15]. Neste sentido, o mencionado Autor concluiu que o alojamento local consiste numa “atividade comercial que tem por objeto, mediante remuneração, prestar acolhimento e os serviços com ele conexos a turistas ao público em geral, em estabelecimento para o efeito e como tal registado[16].

Ora, vejamos, em primeiro lugar, ainda que o exercício da atividade de alojamento local tenha algumas semelhanças com a atividade prosseguida pelos estabelecimentos hoteleiros, nos termos do n.º 1 do artigo 11.º do Regime Jurídico da Instalação, Exploração e Funcionamento dos Empreendimentos Turísticos, aprovado pelo Decreto-Lei, de 7 de março (“RJET”), na medida em que ambas proporcionam alojamento temporário e outros serviços, subsistem acentuadas diferenças entre ambas, daí a regulação em dois regimes distintos.

De facto, uma das diferenças entre estas duas atividades, entre outras, é que a componente dos serviços acessórios ou de apoio à cedência do espaço de alojamento temporário assume uma relevância fulcral na atividade prosseguida pelos estabelecimentos hoteleiros, enquanto, a relevância que os serviços complementares detêm na cedência do espaço no âmbito da atividade de alojamento local é substancialmente menor. Mais ainda, ao passo que os serviços de alojamento prestados no âmbito do RJET são prosseguidos através da constituição de empreendimentos turísticos, mediante o cumprimento dos requisitos impostos pelo referido diploma, numa lógica empresarial, os titulares do estabelecimento local podem consistir numa pessoa singular, vulgarmente o proprietário da fração autónoma afeta ao alojamento local, que pode afetar a referida fração autónoma ao alojamento local com maior ou menor frequência.

Deste modo, o RJAL ao permitir que a atividade de alojamento local não seja exercida por uma pessoa coletiva e gerida por “empresário” cria dúvidas na qualificação da mesma conforme referem os Juízes Conselheiros no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de março de 2022 quando afirmam: — “Considerando que no alojamento local podem estar envolvidas organizações de actividades económicas de dimensão diversa – desde a empresa societária ao sujeito individual, proprietário de espaço que aloca ao alojamento local, com maior ou menor frequência (podendo ser marginal mesmo ou acessória de uma qualquer outra actividade não comercial, o que sempre levaria a excluí-la da natureza comercial), a qualificação como acto de comércio tout court pelo intérprete, sem cabal enquadramento legal inequívoco, não se apresenta isenta de dúvidas (…)[17].

Assim, enquanto é inequívoco que a atividade prosseguida de alojamento temporário mediante a constituição de estabelecimentos hoteleiros consiste numa atividade de natureza comercial, no seu sentido económico, o mesmo já não sucede com o alojamento local.

Contudo, a relevância de classificar a atividade de alojamento local como sendo ou não comercial é diminuta, tendo em consideração que para distinguir esta atividade do fim habitação a qual a fração autónoma integrante do prédio constituído em propriedade horizontal foi afeta, nos termos do respetivo título constitutivo de propriedade horizontal, não é necessário recorrer à referida classificação.

Em suma, nos termos do exposto no ponto 1. supra é possível determinar que atividade de alojamento local exercida numa fração autónoma não é compatível com a menção habitação inserida no título constitutivo de propriedade horizontal, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 1418.º do Código Civil tendo em conta a lei (n.º 4 do artigo 5.º do RJAL) e a própria natureza da mesma face ao conceito de habitação, que a permite, classificá-la inequivocamente como uma atividade de prestação de serviços.

3.            Possibilidade da assembleia de condóminos se poder opor ao exercício da atividade de alojamento local mediante a interpretação do título constitutivo de propriedade horizontal

Neste ponto irei abordar as questões suscitadas pela possibilidade da assembleia de condóminos se poder opor ao exercício da atividade de Alojamento Local mediante a interpretação do título constitutivo de propriedade horizontal, tendo em conta o disposto no n.º 2 do artigo 9.º do RJAL.

A presente redação do n.º 2 do artigo 9.º do RJAL conferida pela alteração promovida pelo Pacote Mais Habitação dispõe que: — “No caso de a atividade de alojamento local ser exercida numa fração autónoma de edifício ou parte de prédio urbano suscetível de utilização independente, a assembleia de condóminos, por deliberação de pelo menos dois terços da permilagem do edifício, pode opor-se ao exercício da atividade de alojamento local na referida fração, salvo quando o título constitutivo expressamente preveja a utilização da fração para fins de alojamento local ou tiver havido deliberação expressa da assembleia de condóminos a autorizar a utilização da fração para aquele fim.”. Deste modo, a atual redação do n.º 2 do artigo 9.º do RJAL permite à assembleia de condóminos adotar uma deliberação em que se opõe ao exercício da atividade de alojamento local em frações autónomas integradas em prédios constituídos em propriedade horizontal, por mais de dois terços da permilagem, exceto quando constar do título constitutivo expressamente a utilização da fração para fins de alojamento local ou tiver havido deliberação da assembleia de condóminos a autorizar o mesmo.

Ora, vejamos, a presente redação do n.º 2 do artigo 9.º do RJAL é substancialmente diversa da anterior redação do mesmo preceito conferida pela Lei n.º 62/2018, de 22 de agosto, a qual disponha: — “No caso de a atividade de alojamento local ser exercida numa fração autónoma de edifício ou parte de prédio urbano suscetível de utilização independente, a assembleia de condóminos, por decisão de mais de metade da permilagem do edifício, em deliberação fundamentada, decorrente da prática reiterada e comprovada de atos que perturbem a normal utilização do prédio, bem como de atos que causem incómodo e afetem o descanso dos condóminos, pode opor-se ao exercício da atividade de alojamento local na referida fração, dando, para o efeito, conhecimento da sua decisão ao Presidente da Câmara Municipal territorialmente competente.”

Com efeito, na anterior redação do n.º 2 do artigo 9.º do RJAL era conferida aos condóminos uma tutela reativa de modo a salvaguardarem os seus interesses, mediante uma deliberação tomada por mais de metade da permilagem do prédio fundamentada na prática reiterada de actos comprovadamente perturbadores da normal utilização do prédio e/ou do descanso dos condóminos. Era assim tomada uma decisão a nível da assembleia de condóminos e, portanto, entre privados que poderia vir a ter consequências públicas se o presidente da câmara municipal territorialmente competente decidisse a favor do cancelamento do registo. De facto, nos termos do n.º 3 do artigo 9.º do RJAL, na sua redação conferida pela Lei n.º 62/2018, de 22 de agosto (esta norma foi revogada nos termos das alterações promovidas pelo Pacote Mais Habitação), o cancelamento do registo de alojamento local estava dependente da decisão do presidente da câmara competente, ou seja, no âmbito de decisão de uma entidade pública. Deste modo, o presidente da câmara competente teria que confirmar se os pressupostos para qual a assembleia de condóminos se opôs à atividade de alojamento local se encontravam verificados, ou seja, que se verificava que: (i) a decisão foi tomada por mais de metade da permilagem do edifício, e (ii) existência de prática reiterada de atos perturbadores da normal utilização do prédio ou que causassem incómodo ou afetassem o descanso dos condóminos.

Por outro lado, com a redação atual do n.º 2 do artigo 9.º do RJAL é conferido aos condóminos uma tutela independentemente de existir um motivo admissível e sem dependência de uma decisão de uma entidade pública. Desta forma, basta que a assembleia de condóminos decida, com maioria de pelo menos dois terços da permilagem do prédio constituído em propriedade horizontal, opor-se ao registo de alojamento local que é cancelado o registo de alojamento local sob a fração em causa, produzindo tal decisão efeitos 60 (sessenta) dias após o envio da respetiva deliberação ao presidente da câmara municipal competente, de acordo com n.º 4 do artigo 9.º do RJAL. A presente solução legislativa permite, assim, que uma decisão não unânime de condóminos produza efeitos numa fração autónoma de um prédio constituído em propriedade horizontal sem o controlo por parte de uma entidade pública.

Conforme foi referido no ponto 1. supra, é aceitável que o direito de propriedade sobre uma fração autónoma de um prédio constituído em propriedade horizontal possa sofrer limitações, nos termos do artigo 1305.º do Código Civil em particular, decorrentes do próprio regime da propriedade horizontal. Contudo, a solução prevista no n.º 2 do artigo 9.º do RJAL é substancialmente mais restritiva para o proprietário de uma fração autónoma integrante de um prédio constituído em propriedade horizontal, do que o estabelecido no regime da propriedade horizontal estabelecido no Código Civil.

Com efeito, o uso e/ou os atos ou atividades que possam ser exercidos nas frações autónomas de prédios constituídos em propriedade horizontal podem sofrer limitações (i) decorrente do título constitutivo, de acordo com a alínea a) do n.º 2 do artigo 1418.º do Código Civil e alínea c) do n.º 2 do 1422.º do Código Civil; (ii) do regulamento de condomínio inserido no título constitutivo, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 1418.º do Código Civil (o regulamento aprovado nos termos do n.º 1 do artigo 1429.º-A do Código Civil apenas pode disciplinar o uso, a fruição e conservação das partes comuns); (iii) por deliberação da assembleia de condóminos aprovada sem oposição, de acordo com a alínea d) do n.º 1 do artigo 1422.º do Código Civil.

Por outro lado, caso a norma do atual n.º 2 do artigo 9.º do RJAL seja interpretada no sentido de permitir a oposição ao exercício da atividade de alojamento local em relação a todos os fins, exceto quando o título constitutivo preveja a utilização da fração para fins de alojamento local ou tenha havido deliberação do condomínio nesse sentido, está a incluir a oposição à atividade de alojamento local quando a fração autónoma esteja afeta a serviços, o que é excessivamente restritivo do direito de propriedade sob a fração autónoma em causa. O presente raciocínio é justificado pelo facto de a afetação da fração autónoma a serviços, constante do título constitutivo de propriedade horizontal, é a afetação que melhor se adequa à atividade de alojamento local (excluindo obviamente a específica afetação à atividade de alojamento local), conforme foi explicitado no ponto 2 supra.

Vejamos, agora, qual foi o objetivo do legislador com a introdução da presente redação do n.º 2 do artigo 9.º do RJAL. Ora, nos termos do n.º 1 do artigo 1.º do Pacote Mais Habitação o seu objeto é estabelecer “medidas com o objetivo de garantir mais habitação”. Contudo, concordo com as Autoras Fernanda Paula Oliveira e Dulce Lopes[18] quando afirmam que a presente redação do n.º 2 do artigo 9.º do RJAL não vai necessariamente promover mais habitação. Este juízo tem por base que a oposição da assembleia de condóminos ao exercício da atividade de alojamento local numa fração autónoma afeta a fins não habitacionais, não vai garantir que, após a cessação da atividade de alojamento local, o proprietário tenha que destinar a referida fração autónoma a habitação. Por outro lado, considero que a presente redação do n.º 2 do artigo 9.º do RJAL, vem antes tutelar a posição dos condóminos do prédio constituído em propriedade horizontal, no sentido de restringir a atividade de alojamento local.

Assim sendo, considero que a interpretação da norma contida no n.º 2 do artigo 9.º do RJAL, no sentido de que permite a oposição ao exercício da atividade de alojamento local no caso de a fração autónoma integrante de prédio constituído em propriedade horizontal estar afeta a serviços, nos termos do respetivo título constitutivo de propriedade horizontal e, como tal, permitida pelo mesmo, impõe uma restrição ao direito de propriedade sob a mencionada fração autónoma, que não se afigura proporcional face a ponderação que tem que ser realizada com o outro interesse que a lei visa proteger (i. e. o dos condomínios mediante a restrição da atividade de alojamento local). Em suma, considero a referida interpretação abusiva e que não deve ser constitucionalmente aceite.

                                                                                                                                            III.            CONCLUSÃO

A exposição e análise supra das questões suscitadas pelo estabelecimento de Alojamento Local a nível da propriedade horizontal permite-me chegar a várias conclusões.

Em primeiro lugar, tendo em consideração o n.º 4 do artigo 5.º do RJAL e os argumentos expostos no ponto 1 supra, o exercício da atividade de alojamento local numa fração autónoma integrante de um prédio constituído em propriedade horizontal não é compatível com a menção habitacional constante do respetivo título constitutivo, de acordo com a alínea a) do n.º 2 do artigo 1418.º do Código Civil, exceto no caso do registo de Alojamento Local ser precedido de decisão do condomínio para uso diverso de exercício da atividade de alojamento local.

Em segundo lugar, uma vez que o estabelecimento de Alojamento Local consiste numa atividade de prestação de serviços, nos termos do RJAL e tendo em conta os argumentos expostos no ponto 2. supra, o exercício desta atividade numa fração autónoma integrante de um prédio constituído em propriedade horizontal é compatível com a menção serviços, constante do respetivo título constitutivo, de acordo com a alínea a) do n.º 2 do artigo 1418.º do Código Civil.

Finalmente, e em terceiro lugar, a interpretação da norma contida no n.º 2 do artigo 9.º do RJAL, no sentido de que permite, por parte da assembleia de condóminos, a oposição ao exercício da atividade de alojamento local no caso de a fração autónoma integrante de prédio constituído em propriedade horizontal estar afeta a serviços, nos termos do respetivo título constitutivo de propriedade horizontal é abusiva e não deve ser constitucionalmente aceite.

                                                                                                                                        IV.            BIBLIOGRAFIA

  • Almeida, Aristides Rodrigues de “A atividade de exploração de estabelecimentos de alojamento local” in Revista Electrónica de Direito, 2017, págs. 1-30;
  • Duarte, Rui Pinto, A Propriedade Horizontal, Almedina, novembro 2019;
  • Duarte, Rui Pinto, Curso de Direitos Reais, 4.ª edição revista e aumentada, Princípia, setembro 2020;
  • Freitas, Miguel Fernandes; com a colaboração de Félix, Sara; Apresentação, Rui Ferreira d’; Sousa, Ana Paula, “Alojamento Local em Apartamentos – Da (Des)Necessidade de Autorização dos Condóminosin Ipso Jure, N.º 95 abril 2017;
  • Furtado, Jorge Pinto, “Do Alojamento Local, na sua relação com a propriedade horizontal” in Revista de Direito Civil, Ano 2017, n.º 3, págs. 529-574;
  • Garcia, Maria Olinda, “Arrendamento de curta duração a turistas: um (impropriamente) denominado contrato de alojamento local” in Revista Eletrónica de Direito, 2017, págs. 1-23;
  • Oliveira, Fernanda Paula; Dulce, Lopes, “A Lei n.º 56/2023 e o Alojamento Local: Mais habitação ou mais confusão?” in Revista de Direito Administrativo, A AFDL Editora, janeiro > abril 2024, págs. 91-102;
  • Oliveira, Fernanda Paula; Passinhas, Sandra; Dulce, Lopes, Alojamento Local e Uso de Fração Autónoma, Almedina 2017.

                                                                                                                                     V.            JURISPRUDÊNCIA


[1] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de março de 2022, Juíza Relatora Fátima Gomes, processo n.º 24471/16.4T8PRT.P1.S2-A

[2] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de março de 2022, Juíza Relatora Fátima Gomes, processo n.º 24471/16.4T8PRT.P1.S2-A

[3] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de março de 2022, Juíza Relatora Fátima Gomes, processo n.º 24471/16.4T8PRT.P1.S2-A

[4] Cfr. Curso de Direitos Reais, 4.ª edição revista e aumentada, Princípia, setembro 2020, pág. 165

[5] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de março de 2022, Juíza Relatora Fátima Gomes, processo n.º 24471/16.4T8PRT.P1.S2-A

[6] Crf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15 de setembro de 2016, Juiz Relator Aristides Rodrigues de Almeida, processo n.º 4910/16.5T8PRT-A.P1

[7] Cfr. “Arrendamento de curta duração a turistas: um (impropriamente) denominado contrato de alojamento local” in Revista Eletrónica de Direito, 2017, págs. 6-7;

[8] Cfr. “Arrendamento de curta duração a turistas: um (impropriamente) denominado contrato de alojamento local” in Revista Eletrónica de Direito, 2017, págs. 6-7;

[9]Cfr.“Do Alojamento Local, na sua relação com a propriedade horizontal” in Revista de Direito Civil, Ano 2017, n.º 3, pág. 550.

[10] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de novembro de 2019, Juíza Relatora Fátima Gomes, processo n.º 25192/16.3T8PRT.P1.S1

[11] Cfr. Freitas, Miguel Fernandes; com a colaboração de Félix, Sara; Apresentação, Rui Ferreira d’; Sousa, Ana Paula, “Alojamento Local em Apartamentos – Da (Des)Necessidade de Autorização dos Condóminos” in Ipso Jure, N.º 95 abril 2017;

[12] Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27 de abril de 2017, Juíza Relatora Ana Lucinda Cabral, processo n.º 13721/16.7T8PRT.P1

[13] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de março de 2022, Juíza Relatora Fátima Gomes, processo 24471/16.4T8PRT.P1.S2-A

[14] Furtado, Jorge Pinto, “Do Alojamento Local, na sua relação com a propriedade horizontal” in Revista de Direito Civil, Ano 2017, n.º 3, pág. 545

[15] Furtado, Jorge Pinto, “Do Alojamento Local, na sua relação com a propriedade horizontal” in Revista de Direito Civil, Ano 2017, n.º 3, pág. 548

[16] Furtado, Jorge Pinto, “Do Alojamento Local, na sua relação com a propriedade horizontal” in Revista de Direito Civil, Ano 2017, n.º 3, pág. 549

[17] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de março de 2022, Juíza Relatora Fátima Gomes, processo 24471/16.4T8PRT.P1.S2-A

[18] “A Lei n.º 56/2023 e o Alojamento Local: Mais habitação ou mais confusão?” in Revista de Direito Administrativo, A AFDL Editora, janeiro > abril 2024, pág. 94