Victor Hugo Ventura

Licenciado em Direito pela Universidade Católica Portuguesa – Porto (2013) e Mestre em Direito do Trabalho pela Universidade Católica Portuguesa – Porto (2016). Iniciou o seu percurso profissional na Direcção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho (DGERT), foi Assistente Convidado no Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto (ISCAP).
É actualmente Advogado na Cuatrecasas, Gonçalves Pereira. Desenvolve investigação nas áreas do Direito do Trabalho, Direito do Desporto e Direito Civil, tendo sido distinguido, nesse contexto, com os prémios Professor João Baptista Machado (2017), Garrigues (2017) e Teresa Rosmaninho (2018).


Contrato de Trabalho do Jornalista é a mais recente obra de sua autoria. Obra publicada pelo Grupo Almedina e disponibilizada no mercado a 25 de Agosto 2022.

Consulte a obra neste link.


Poucas profissões nos contactam tão diuturnamente como a de jornalista. Em maior ou menor medida, consciente ou inconscientemente, ele está presente no nosso quotidiano. Esse contacto pervasivo cresceu e tornou-se mais patente à medida que se expandiram e se diversificaram os meios através dos quais ele nos chega. Certamente que o jornalismo foi um dos beneficiários modernos da máquina de imprensa de Guttenberg e a “fase industrial da imprensa”, que massificou e fez surgir a chamada penny press, permitiu alimentar o hábito generalizado de comprar o jornal. Mais tarde, a descoberta das ondas eletromagnéticas, outrora usadas para comunicações militares, permitiram que ele chegasse até nós através da rádio. Não foi preciso esperar muitas décadas para que as mesmas ondas eletromagnéticas, reconvertidas, inaugurassem o rito familiar de reunir em frente à televisão para assistir ao telejornal. E se, com maior ou menor custo, todos estes formatos se mantêm, o jornalismo multimédia permitiu, dando um salto no tempo, o contato instantâneo e constante nos equipamentos e dispositivos móveis que todos temos à disposição através do ciberjornalismo. A ubiquidade do jornalismo tornou-se, por todas estas razões, uma evidência.

É certamente esta imersão que faz desta profissão uma atividade tão influente. Um magistério capaz de condicionar não só a sociedade civil, mas também o poder político e económico, cobrando influência na leitura ideológica e no curso dos acontecimentos. Uma força a tal ponto poderosa que se tornou comum encará-la como a quarta potência da sociedade, ao lado dos poderes legislativo, executivo e judicial. Investido no papel de perseguir a verdade a todo o transe e denunciar as injustiças, públicas e privadas, o jornalista tornou-se, por direito que se tornou próprio, uma espécie de “cão de guarda público” (public watchdog).

Por todas estas razões, o jornalismo corresponde a uma profissão relativamente glorificada por uma certa perceção popular. O combate férreo às injustiças sociais, que pretende denunciar, o poder de mudar o mundo com uma notícia, o espírito de missão e a exposição a contextos de elevado risco (pense-se no “Jornalismo de Guerra”, no jornalista enviado “sob as bombas e armado do seu computador pessoal”), que, no limite, pode ter como preço a própria vida (impossível não rememorar a chacina de Charlie Hebdo), são elementos que criaram a imagem de uma profissão heroica e quase epopeica, frequentemente retratada na literatura e no cinema.

E, numa época em que a informação colocada a circular é ameaçada pela praga infrene das fake news e pelo crescimento dos fact-checkers, é esta permanente ameaça de deturpação da opinião pública que torna este profissional o derradeiro paladino da “verdade”, “provedor da informação”, “verificador” e “curador” das informações, uma espécie de porteiro da auto-estrada da informação, cuja nobre função é reduzir a incerteza na interação social.

O que sucede é que esta profissão, nascida da nata intelectual da sociedade (Eça de Queirós, Alexandre Herculano e Almeida Garret, para citar apenas os nomes mais conhecidos, foram jornalistas), consegue captar cada vez menos talentos e jovens. O problema não é certamente exclusivo da profissão de jornalista, mas aquela imagem idílica esconde, na verdade, uma outra realidade, sobretudo quando os aspirantes a jornalistas entram em rota de colisão com a crueza desta atividade.

Várias razões podem explicar este êxodo profissional. Desde logo, e como resulta, em parte, do que já se adiantou, o jornalista vê atualmente disputada a sua função por novas formas de transmissão de informação propiciadas pela internet e pela blogosfera, verdadeiros pontos de erupção de informação não validada. Se, outrora, “produtor de notícias” e “agentes produtores directos de informação” eram sinónimos de jornalista, o que acontece é que ele se vê agora numa arena global com outros atores desconhecidos ou, pelo menos, desconhecidos até há pouco tempo, que disputam o seu papel. Neste novo “ecossistema informativo”, nesta “era das testemunhas digitais”, a massificação tecnológica possibilitou o aparecimento do cidadão já não como consumer, mas como prosumer, o chamado “cidadão-jornalista”. Neste chamado “jornalismo do cidadão”, “os cidadãos integram o processo produtivo de notícias”, isto é, o cidadão produz, pelos seus próprios meios, conteúdo pretensamente informativo. Se é verdade, como dissemos supra, que este fenómeno até valoriza o jornalista, na medida em que apenas ele é capaz de desempenhar, de forma credenciada, essa atividade, o que também é certo é que esses fenómenos representam, bem ou mal, uma concorrência factual que sai em prejuízo dos jornalistas.

Por outro lado ― embora, segundo pensamos, como consequência deste primeiro aspeto ―, o jornalista tem sido vítima de um consumo cada vez menor da imprensa escrita, que conheceu uma quebra significativa nas últimas décadas, justamente pelo aparecimento dos conteúdos multimédia que, como facilmente se compreende, não só produzem o mesmo conteúdo, como de forma mais rápida e mais diversificada e, por isso mesmo, mais atrativa. E sempre se poderia acrescentar a praga da pirataria, cujo desmantelamento é cada vez mais complexo pela sua difusão em rede.

Estes dois fatores tiveram uma repercussão óbvia na profissão, alimentando um círculo vicioso difícil de reverter. A redução significativa do consumo gerou a falta de visibilidade da imprensa escrita que, por sua vez, e consequentemente, tem de lidar com uma falta de investimento que é cada mais evidente. A “descapitalização” desta atividade repercute-se, como também se pode intuir facilmente, na própria condição profissional do jornalista.

Do ponto de vista da pura gestão empresarial, o jornalismo já não é diferente das demais áreas de atividade. Perante uma acentuada falta de investimento, também os empresários do setor já bradam pela necessidade de mecanismos de flexibilização, invocando o argumento ad terrorem da sobrevivência do setor. Também nesta indústria, e talvez em maior medida, se disseminou o recurso à contratação a termo e, sobretudo, ao contrato de prestação de serviço. Em suma, também nesta área o jornalista se vê muitas vezes enredado em “situações contratuais dúbias”, vítima de estratégias laborais que mais não pretendem do que explorar os “interstícios da lei”.

Por outro lado, a necessidade de reduzir custos é também conseguida à custa de baixos salários e de maratonas informativas (verdadeiras tours de force) que os rentabilizem na máxima medida, sujeitando também o jornalista a uma “cultura de multitarefa” ― há quem falte de um “jornalista multi-usos” ― em que “os ofícios técnicos e intelectuais tendem a diluir-se”. Fala-se, em síntese, de um “jornalismo low cost” ou de aquilo que alguém já descreveu como uma “precariedade material e subjectiva”.

E, claro está, a precariedade potencia um jornalista subserviente. É certo que a precariedade não é um traço exclusivo desta atividade. O que acontece é que a credibilidade do jornalista depende justamente, em grande medida, da sua independência real, o mesmo é dizer, do distanciamento face a pessoas, instituições e interesses e o preço a pagar aqui é porventura alto, porque a precariedade pode muitas vezes redundar, como redunda, num sacrifício dos deveres deontológicos, em prejuízo de todos (“a nossa precariedade é a vossa desinformação”), sobretudo porque, numa afirmação que provavelmente peca por excessiva, “se os jornalistas têm um código deontológico, os patrões não o têm”. Na realidade das salas de redação, é difícil ao jornalista impor o cumprimento dos seus deveres deontológicos ao empregador quando é um trabalhador precário, necessitado do seu emprego e dos seus rendimentos e em que, portanto, como diz o provérbio alemão, wes Brot ich ess, des Lied ich sing. Nessa situação profissional, ficam reunidas as condições para “fabricar o consentimento para o inaceitável”, pois, como diz Fernando Correia, “a precariedade não consente grandes (ou pequenos…) desalinhamentos…”. E, de certa forma, o sistema está cada vez mais desenhado para que os desvios deontológicos sejam premiados e para que isso funcione, ainda que veladamente, como critério último para distinguir os jornalistas com maior êxito.

O que também não é menos certo é que, como acontece noutras profissões, sobretudo naquelas que gozam de projeção mediática, como nos espetáculos e no desporto, será necessário distinguir, pelo menos num plano sociológico, os jornalistas vedetas, que gozam de um estatuto e de um poder negocial que lhes permite escapar a este quadro de precariedade. Estes profissionais, happy few, são até, por vezes, envolvidos em “transferências” entre estações televisivas de fazer corar de inveja alguns desportistas, fruto do seu carisma, estatuto, selling-power, funcionando como verdadeiros anchor-man das empresas jornalísticas. No entanto, esse nicho de profissionais não corresponde à realidade generalizada da profissão…

Seja como for, já não é possível dissociar o exercício desta profissão de uma cada vez mais patente mercantilização e comercialização da atividade. Neste market-driven and profit-oriented journalism, as notícias já não se dão, vendem-se. A informação passou a ser vista como uma mercadoria, o jornalismo já não visa produzir informação, mas sim conteúdo, e o verbo informar foi substituído pelo verbo comunicar. Nas palavras contundentes de Rogério Soares, “como o pão das padarias, é fabricado mais pelas suas qualidades de venda que pelo seu valor nutritivo”. De facto, o interesse público convive cada vez mais com uma pressão económica e quase darwinista aos press players a operar no mercado. Engolidos por uma avassaladora “filosofia do sucesso”, por uma culto da imagem, useiros e vezeiros das breaking news, do click-baiting e das publicações com finalidade meramente incendiária, envolvidos numa luta desenfreada pelas audiências, sujeitos a uma tirania das métricas (número de cliques, as views, as audiências, o market share), a performance e o pragmatismo a todo o custo (embora, muitas vezes, não por causa da volúpia do lucro, mas com a finalidade da sobrevivência das empresas jornalísticas) tornaram as exigências de retidão, transparência e objetividade um mero clichê. Em suma, constata-se a “supremacia do setor comercial sobre o poder editorial”.

O que também se explica porque há um interesse cada vez mais premente por parte dos leitores na tempestividade da informação (wins who reports first). E, por isso, instalou-se a ideia de que já não se pede a procura da verdade, mas sim apenas “um bom balanço entre rapidez e verdade”. Aquilo que outrora era tratado em dias ou horas, agora deve ser tratado em minutos. As redações encontram-se frequentemente perante o dilema entre noticiar e confirmar posteriormente ou confirmar prévia e devidamente o conteúdo, mas perder a oportunidade e o timing para a concorrência ou, até, como já se disse, para as redes sociais… E, para justificar este novo paradigma, logo se alega que, pese embora o jornalista deva desempenhar a sua atividade de forma objetiva, o que é certo é que não há uma “verdade jornalística” nos mesmos moldes em que, por exemplo, há uma “verdade formal ou material” no Direito…

Por todas estas razões, o jornalista presta hoje a sua atividade num quadro geral de marcada precariedade. À primeira vista, a precariedade sistémica dos jornalistas estaria relacionada com a pretensa falta de laboralidade desta relação de trabalho. Isto porque a autonomia e independência, demandadas pela própria natureza da atividade, fariam do jornalista um típico trabalhador independente. Por outras palavras, tudo levaria a crer que essa autonomia e independência do jornalista seriam tendencialmente incompatíveis com a existência de um contrato de trabalho. Por outro lado, a natureza laboral da atividade jornalística sairia prejudicada pela velhinha ideia de que no contrato de trabalho o trabalhador se obriga a prestar uma atividade, ao passo que no contrato de prestação de serviço o prestador se obriga a um resultado. Intuitivamente, é nesta última situação que melhor se enquadraria o jornalista, cujo trabalho consiste, muitas vezes, na produção de um resultado bem definido, como peças, reportagens, etc.

No entanto, há mais e melhores razões para acreditar que a independência e a autonomia reclamam a estabilidade e garantias do trabalhador subordinado, a palavra forte do Direito do Trabalho, para garantir a plena realização dos seus fins sociais. Por sinal, também não deixa de ser interessante constatar que os primeiros regimes legais reguladores do “Estatuto do Jornalista” definiam jornalista como aquele que exercia uma atividade com contrato de trabalho ou, sendo prestador de serviço, tendo uma relação (estável) de pelo menos quatro anos. Não raro, certas políticas repressivas tinham também em mente a estabilidade dos trabalhadores e, de resto, a proibição expressa dos despedimentos de jornalistas sempre foi uma reivindicação do movimento sindical. Mais recentemente, e como medida para estimular a contratação laboral dos jornalistas, chegou a propor-se limites à densidade dos prestadores de serviços nas empresas jornalísticas.

Claro está que ser titular de um contrato de trabalho não garante necessariamente a independência deontológica efetiva do jornalista. As razões deixam-se adivinhar: os baixos salários, o recurso disseminado à contratação a termo e o risco de ser incluído num despedimento no contexto de uma crise económica (despedimento coletivo ou por extinção do posto de trabalho) são razões que periclitam o poder real para recusar as ordens da entidade empregadora…