J. N. Cunha Rodrigues, entre outras funções, exerceu as de juiz de Direito, Procurador-Geral da República e juiz do Tribunal de Justiça da União Europeia. Preside, desde 2012, à Instância de Controlo Financeiro dos Clubes da UEFA. Tem oito livros publicados e escreveu mais de cem trabalhos ou artigos científicos.
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No livro que recentemente publiquei (“Memórias improváveis”), escrevi sobre o Direito e a Justiça, nos seus tempos e modos de contiguidade com a Política.
Abordei a dificuldade das sociedades actuais de lidarem com a contingência e a incerteza e o desaparecimento progressivo dos filtros que permitiam compreender a natureza, os objectivos e os limites do Direito e da Justiça. Falei sobre o “desconstrutivismo” e o aparecimento de “culturas profanas” que contestam ou desvalorizam os sistemas de valores, em nome de uma realidade económica que evocam como se tratasse da natureza das coisas. Referi os perigos de manipulação da transparência que, com a massificação e instantaneidade da informação, levam à destruição dos padrões de comparação e ao pensamento único. Evoquei os riscos de uma pós-modernidade que pretende superar a ambivalência com a a instalação da “clareza monossémica da uniformidade”.
Um simples olhar sobre os últimos acontecimentos da vida internacional e nacional (refiro-me aos episódios rocambolescos nos Estados Unidos e às irritações na política interna) mostram que se adensam nuvens e turbulências em três cruciais esferas da vida em comunidade: a liberdade, o poder e a verdade.
A rápida e crescente vulgarização do termo “democracias iliberais” corresponde à tendência para a catalogação que, sendo própria do pensamento científico, tem por efeito “normalizar” e fazer entrar no espírito do tempo ideias que não são mais que desconstruções e perversidades.
O conceito de “democracia iliberal” seca o plano de valores em que se desenvolveu a liberdade. Mantém os atributos formais, mas desvaloriza dois elementos primordiais: a dignidade essencial da pessoa humana e a liberdade de escolha.
A democracia só pode ser liberal. Utilizo o sentido histórico e não as emanações que foram sendo importadas por escolas económicas.
O liberalismo deve ser entendido como forma de colocar a liberdade em primeiro lugar e de assegurar a protecção dos mais vulneráveis contra as formas de servidão produzidas pela ordem do mercado. Trata-se de conceber uma nova idade do Direito, mas igualmente uma nova ordem do poder.
A organização do poder exige o respeito por regras específicas de organização do Estado, em que avultam a liberdade de escolher, o pluralismo da comunicação social, a transparência e o respeito pelas minorias.
Não menos importante é a Verdade.
O aforismo latino autoritas non veritas facit legem perdeu validade. A evolução traduzida pelas declarações revolucionárias e, depois, pelos instrumentos internacionais de protecção dos direitos do homem, impõe que os legisladores e os governos tenham a verdade como bússola e os juízes a mantenham como objectivo ontológico. A emergência de verdades alternativas e o impacto de fake news está a ser posto ao serviço de potenciais ditadores, actuais oportunistas e inescrupulosos políticos que utilizam a chantagem emocional ou o descontentamento social como métodos encantatórios de anestesia e desconstrução.
Valem-se da pantomina e do jamais vu como forma de atrair a atenção. O método é semelhante ao dos antigos bonequeiros de feira que chamavam a atenção dos circunstantes inventando fantasiosos escândalos e ridicularizando os próprios fantoches.
É estultícia insultá-los e pueril pensar que são néscios ou inconscientes. Não são. Sabem o que querem e, por vezes, chegam a acreditar nos seus poderes de predestinação social. Detestam a diferença, olham as minorias com desdém, apelam às religiões em vão. Manipulam a verdade e os sentimentos das camadas sociais mais indefesas. Em termos singelos, não têm vergonha na cara…
Transformam-se, porém, numa luz ao fundo do túnel para os pobres e para os novos pobres que não têm ou deixaram de ter liberdade de escolha.
O crepúsculo das ideias é uma ameaça nas sociedades hiper- modernas.
O racismo, o nacionalismo e o populismo têm cada vez mais como origem o menosprezo da universalidade que deveria unificar as sociedades de hoje. Independentemente da matriz ideológica, qualquer agenda autoritária entrava a emancipação do indivíduo e o desenvolvimento da cidadania.
Também por isso, é necessário discutir e escrever para evitar que a história das ideias seja objecto de interpretações avulsas e desatentas aos desafios de uma democracia construída segundo exigências estritas de liberdade, poder e verdade.